- Back to Home »
- Capítulos Adicionais , Capsakid Sem Dentes , Contos de Paldea »
- A Lenda do Capsakid Sem Dentes – Oneshot #01
Vez ou outra,
ouvia-se o pigarrear de alguém, o terlintar de dinheiro a ser contado, o
suspiro de homens cansados, ou o bater do cartão dos caixotes de arrumação a
serem fechados, mas poucos ousavam conversar entre si, apesar da troca de
olhares desconfiados que uns punham nos outros.
Depois da
gritaria normal que preenchia cada bancada do grande mercado de Porto Marinada,
silêncio era sempre um elemento bem convidativo aos ouvidos de todos, enquanto
os comerciantes cansados faziam os últimos preparativos para o dia seguinte,
apesar de um certo nível de tensão que pairava o ar.
Um deles,
homem com cerca de cinquenta anos, passou um pano húmido por cima de sua
bancada, por uma última vez, e aproximou o nariz da sua superfície. Não, já não
cheirava mais ao odor intenso dos filetes de Veluza, postas de Barraskewda e
muito menos a sangue derramado de Magikarp. Depois confirmou o stock existente na sua arca frigorífica,
anotando em uma prancheta as encomendas de produtos frescos que chegariam no
dia seguinte.
Sabendo que
estava tudo limpo, desinfectado e organizado no seu local de trabalho, o
peixeiro lavou e removeu as luvas. Dava aquele dia como terminado, e finalmente
podia regressar a casa à vontade, casa esta que ainda ficava a uns bons metros de
distância.
Mas antes de
se retirar totalmente após fecharem as luzes do mercado, o homem parou uns
instantes em frente de uma pequena estátua que existia numa das extremidades da
sua bancada, pensativo.
Várias cópias
daquela mesma estátua de porcelana existiam entre os comerciantes, tornando-se
marca comum da cultura local, espalhadas que nem um amuleto de boa sorte. Cada
uma, de certa forma ou outra, era uma estátua adornada á sua própria maneira,
transmitindo uma personalidade única através da forma como as ilustrações na
sua superfície brilhante eram expostas em termos de pintura.
Esta estátua
era um pequeno Capsakid.
Em vez de ser
verde, sua cor natural, era pintado ao todo de preto, enfeitado com traços
irregulares, bolinhas, flores ou corações de inúmeras cores, com as patas
azuis.
Uma luxuosa
peça artesanal, que já fizera sucesso entre os turistas que ali vinham, logo se
encantando com a imagem. E assim não era visto como um simplório Capsakid igual
àqueles que são diariamente esbarrados nas beiras das estradas sem querer, por
serem pequenos demais e muitos se apanharem desprevenidos quando estes passam à
frente dos pés numa correria.
O que mais se
realçava naquele tipo de estátua particular era o facto dele não ter um dente
na frente, crescendo em seu bico.
Muitos molhos
usados na gastronomia dão uso aos dentes dos Capsakid. Todos bem sabemos que os
dentes que crescem nos bicos destes pequenos Pokémon Malagueta são um dos seus
elementos mais marcantes, pois, quando esfarelados, tornam-se ingredientes
cruciais em muitos pratos tradicionais Paldeanos, dando-lhes um toque único de
picante.
O homem foi
com a mão á bolsa do seu casaco, colocou um cigarro na boca e acendeu-o com um
isqueiro.
Um dos seus
colegas da bancada ao lado aproximou-se, ambos não pareciam muitos diferentes
em termos de fisionomia, mas este era bem mais novo que ele. O peixeiro esticou-lhe
o seu maço de tabaco.
Mas o outro rejeitara
a oferta.
Não lhe
apetecia fumar.
Estava
demasiado ocupado a analisar os restantes comerciantes e a trocar observares,
já que aquele bando de desconfiados não tirava os olhos de cima dos seus
ombros, isso fazia com que sentisse um enorme peso a cada passo que seus
movimentos de aproximação realizavam.
– Parece que
necessitamos de um Capsakid sem dentes para provar a tua inocência. – o mais
velho começou a rir na brincadeira, enquanto soltava uma lufada do fumo do
cigarro.
– Vamos mas é
embora daqui antes de ficar-mos totalmente às escuras. – comentou o homem mais
novo, com tom zangado.
Depois de uns
últimos preparos, os dois puseram, juntos, os seus pés fora do mercado, mesmo a
tempo antes das últimas lâmpadas serem desligadas e o edifício ser inundado
pela escuridão.
Seguiram, sem
diálogos, as ruas desérticas de Porto Marinada, caracterizadas por suas casitas
coloridas banhadas pela luz suave do crepúsculo.
O cheiro a sal
vindo das docas conseguia purificar o nariz da dupla de peixeiros, o que era um
refresco após um dia inteiro a cheirar o peixe que vendiam, se bem que tal ar
puro não valia muito a pena, se o mais velho continuasse a poluir seus pulmões sendo
um fumador.
A cada passo,
ele brincava com uma pequena bolsa, atirando-a ao ar que nem uma bola de
basebol. Sempre que ele a apanhava, ouvia-se o terlintar de moedas chocando
entre si no seu interior.
Atrás dele, o
outro homem bufou, ainda tenso.
– Calma filho.
Tudo irá se resolver, no tribunal, claro. – o fumador murmurou, dando um trago
no seu cigarro.
Era óbvio que
aquelas não eram as melhores palavras para consolar o outro.
– Quem me
dera. – foi a sua resposta sucinta. – Pai, sabes como são os outros
comerciantes.
O mais velho
acenou com a cabeça, e o restante da viagem nada mais disse.
Passado cerca
de uma hora, a dupla, por fim, chegara a seu lar, quando o sol desaparecera por
completo e o mar agora não passava de um manto negro e borbulhante camuflado
contra o céu estrelado, quebrado, ocasionalmente, pela poderosa luz do farol do
topo do promontório.
Era uma casita
pacata numa das últimas ruas que subiam por um morro, que saía de Porto
Marinada. Apesar de fazer parte da rua principal, aquela vila era tão
silenciosa durante a noite que pouquíssimos carros e pessoas passaram por eles.
Se os dois
tivessem transporte, ali chegavam em menos tempo. Mas ambos pareciam gostar
bastante de fazer aquela longa caminhada, para relaxarem do trabalho com a
vista magnífica que Porto Marinada lhes proporcionava, quer fazia chuva, quer
fazia sol.
A porta
abriu-se num ranger depois de ser destrancada e as luzes ascenderam-se. O homem
pousou o seu pesado casaco escuro nas costas de uma poltrona na sala e
sentou-se para descansar as pernas que já pesavam com a idade, enquanto contava
os lucros que trazia consigo dentro da sacola. Já o mais novo dirigiu-se à
cozinha, diretamente ao frigorífico, procurando qualquer coisa para trincar.
Muravam por
ali sozinhos, mais uma mulher que raramente dava as caras naquela hora, e o
recheio do interior denunciava bastante o estilo de vida atarefado de ambos
quando estavam sozinhos em casa. Um amontoado de roupas fedorentas por lavar,
os móveis empoeirados, pratos, copos e talheres sujos acumulados no lavatório,
e inúmeros utensílios de pesca espalhados aqui e acolá por cima da mesa da sala
de jantar. Num canto, uma viola tinha sido esbarrada com violência contra a
parede, e ali, ainda jazia aos pedaços.
Quando o mais
novo foi de encontro ao pai, trazia consigo um prato com umas quantas fatias de
pizza requentadas.
– Queres? –
questionou, ao se sentar numa poltrona ao lado da dele, e lhe esticando uma
fatia.
O homem torceu
o nariz ao ver um pedaço de chouriço deslizar lentamente na superfície do
queijo derretido, ameaçando cair e sujar o chão, criando mais uma nódoa no
tapete igual a tantas outras nele enfeitadas.
– Agora não.
Não vez que eu estou contando dinheiro? E dinheiro é algo sujo, garoto? –
disse-lhe, ainda a empilhar as suas moedas na mesinha de centro da sala,
removendo-as, uma a uma, da sacola. – Sabe-se lá onde aquela escumalha andou
com estas moedas todas enfiadas…
– Vê lá se não
te falta lucro. Já que, pelos vistos, eu como o ganha pão do mundo inteiro.
O mais velho
soltou uma gargalhada, e a distração súbita o fez derrubar sem querer com o
cotovelo um dos seus montes de moedas e perder-se na conta.
Muitas delas
rebolaram até o chão, perdendo-se debaixo da mesa, da estante da televisão, das
prateleiras, das poltronas e do sofá da sala.
– Porra! Lá
vou ter eu que contar isto tudo outra vez… Mas não precisavas de me baralhar o
raciocínio. És mesmo engraçado por ainda estares chateado com aquela gente
mesquinha e não os teres esquecido.
– Porque
haveria de ter esquecido? Fui erradamente acusado daquele roubo.
– Já disse.
Arranja um Capsakid sem dentes para provar a tua inocência quando fores ao
tribunal.
– Como se uma
peça simples de decoração me conseguisse ajudar.
– Não sabes…
Até pode dar-te sorte amanhã. Agora ajuda ai o teu velho com um belíssimo favor
e ajunta essas moedas... – ordenou. – HAi… HAi… Minhas costas…
O mais novo
soltou um suspirou, enfiou o resto da pizza pela garganta abaixo em uma
dentada, e começou então a caçar as moedas caídas, contra a sua vontade. Era uma
tarefa que se provara uma autêntica caça ao tesouro. As moedas por serem tão
minúsculas se espalhavam em qualquer canto com facilidade, e a pouca iluminação
da sala também não era algo que ajudasse a desbravar os desafios que uma busca
naquele ambiente impunham.
– Nunca entendi
a história desse pinto… – começou o mais novo, mais murmurando o pensamento
para si do que outra coisa. – Só sei que esse bicho minúsculo é quase sempre
espezinhado por essas estradas a fora… Porcaria de Pokémon inútil não sabe se
desviar das pessoas distraídas e do trânsito.
Para não se
voltar a perder na contagem, o pai, desta vez, anotava tudo numa pequena folha
á parte, que já se encontrava cheia de rabiscos e números. O filho tinha
certeza absoluta que ainda não tinha nem encontrado metade das moedas caídas,
portanto, como mantinha o seu olhar fixo no chão, não notara o súbito observar
incrédulo que seu pai lhe botava em cima.
– Impossível.
Todos aqui em Porto Marinada conhecem a lenda do Capsakid sem dentes.
– Como se tu
me tivesses contado muitas histórias quando eu era criança. – ele resmungou
entredentes, tentando esticar o braço debaixo do sofá para alcançar uma das
moedas, que muito dificilmente seus dedos conseguiam ajuntar.
– Isso era
trabalho da tua mãe. – e recebeu um olhar de desdém. – Pronto… pronto… Não me
olhes assim. Eu não tenho culpa dela ser uma piloto de aviões e estar sempre
ausente. Mas é impossível não teres ouvido um zum zum por ai.
– Sim, talvez
ouvi um zum zum aqui ou ali, não
nego, afinal, essas estátuas andam em todo o lado a minha vida inteira. Mas
ninguém me explicou nada a sério. – encolheu os ombros. – De qualquer forma, eu
nunca procurei respostas.
– Então, qual
o teu interesse súbito por essa velha história? Até parece que estás com medo e
que és mesmo o ladrão. – o velho peixeiro provocou-o, fitando-o intensamente.
– Mencionas-te
esse Capsakid hoje, duas vezes. – e
franziu o sobrante, realçando bastante duas
vezes com sua pronuncia típica da Província Ocidental de Paldea.
Pelo tom da
conversa, ambos não se davam lá muito bem de vez em quando, mas o adulto não
parecia surpreendido pelas dúvidas que o seu velho punha no ar. Ele raramente
confiava nele.
O homem mais
velho fez uma pausa breve em seu serviço deixando a folha e a caneta de lado e
o dinheiro organizado de forma a se recordar do ponto onde estava quando
retornasse a contagem.
Esticou as
costas na sua poltrona, juntando as mãos sobre a barriga, olhando para cima,
pensativo e relaxado.
– Aconteceu há
muitos anos, é uma lenda, ninguém sabe se é verdade. Mas, tal como tu esta
semana, envolveu um homem erradamente acusado de roubo aqui em Porto Marinada.
– Continue. –
ele disse, num tom melancólico. Era difícil traduzir pela sua voz se ele estava
mesmo interessado em saber os detalhes. – Não é como se isso me fosse mesmo
ajudar a sair da merda e provar que estou inocente.
– Bom. Naquela
época, as pessoas podiam ser bem extremas. E levaram o homem á forca em praça
pública, já que ele não admitia ser o responsável pelo roubo.
Levantou-se de
súbito, e olhou para o pai com cara séria. A história tinha ficado bem
interessante de um momento ao outro.
Rápido, até
demais.
Será que valia
a pena continuar a ouvi-la?
O homem
entendeu o olhar do filho como um sim.
– Antes de o
largarem, pendurado pela corda ao pescoço, o homem gritou aos céus, com todas
as suas forças ‘’é tão certo eu estar inocente, como é tão certo um Capsakid
sem dentes aparecer no vosso caminho quando me enforcarem!’’, enquanto gritava,
apontava para um galinheiro de Capsakid que existia no quintal de uma casa
próxima.
– Não me digas
que apareceu mesmo um Capsakid sem dentes no meio dos outros? Ou esse homem só
estava louco com as galinhas da vizinha?
Ele formou um
sorriso no canto de boca.
– Sim. Pouco
depois do homem ser largado, avistaram o pinto defeituoso bem a tempo de o desprenderem
antes deste morrer asfixiado.
– Que
palhaçada… Não existem Capsakid sem dentes.
– Ouve quem
dissesse que o Capsakid fora uma bênção de Arceus. – o mais novo revirou os
olhos com tamanha informação que para si mais parecia uma barbaridade. – E
desde esse dia, que esse bendito Capsakid é mascote da nossa terra. E verdade
seja dita, ele faz bastante dinheiro como souvenir
entre os turistas, logo, foi uma invenção que deu certo.
– E porquê as
cores? Julgo que era um Capsakid de cor normal, e não uma malagueta que levou
com pingos de tinta em cima.
O outro
encolheu os ombros.
– Nesse
quesito, preto é uma cor profunda e fria que simboliza a morte, de resto,
acredito que os aldeões da época apenas quiseram dar asas á imaginação e
homenagear o monstrinho com um pouco mais de cor para lhe dar vida. Sabes como
são os crentes…
– Isto é
ridículo. Sinto que perdi o meu tempo ouvindo uma história infantil idiota.
– Tem fé na
lenda. Ele apareceu para salvar um inocente. Ninguém sabe se, para ti, ele
poderá aparecer ou não de alguma maneira, também para te salvar da prisão. – o
velho sorriu, com ar enigmático, voltando a sua atenção para a mesinha central
da sala.
Revirou os
olhos, outra vez. Bem lá no fundo, o seu velho definitivamente não acreditava
nada na verdade de que ele não era o culpado, e o mais novo sabia muito bem disso.
– Só vou
acreditar se eu vir mesmo um Capsakid negro com meus próprios olhos, mas este
tem que vir com dentes então, e não sem dentes. Se isso te deixa feliz. –
cuspiu as palavras. – Se eu sou inocente, e se tal realmente existe, que Arceus
então envie um desses até mim!
O outro riu,
mas não entraram em mais detalhes, e assim, ambos voltaram aos seus anteriores
afazeres, sem conversarem muito mais. E o mais novo voltou a bufar, frustrado.
Tinha mesmo a
certeza que vira mais moedas rebolar pelos mais estreitos recantos do chão da
sala, e continuou a procurar as mesmas naquela tarefa que não parecia ter
qualquer fim à vista, pois nenhuma delas podia ser perdida por questões de
contabilidade.
Cerca de dez
minutos mais tarde, viu um brilho por debaixo da mesinha de centro, e, sem
pensar duas vezes, correu até lá e esticou os dedos na fissura, tentando
segurar a moeda perdida com a ponta dos seus dedos.
Para sua
surpresa, removera, não uma moeda, mas algo maior.
Algo mais
pesado.
Uma bem-dita
réplica de uma daquelas estátuas de Capsakid!
Ele ainda ficou
a analisar o pequeno objeto perdido em mãos durante muito tempo, a assimilar
aquele achado e o peso que o mesmo significava. Lhe apetecia partir aquele
Capsakid, deixando seus destroços como simplório lixo igual a todos os outros
espalhados pelo chão.
Mas quando
reparou melhor, algo o conteve de desfazer suas frustrações.
Aquele
exemplar de porcelana em particular parecia bem diferente no formato que todos
os outros exemplares adotavam e do que todas as histórias contavam. O objeto
cintilava sob a luz pálida do candeeiro da sala, e as pinceladas coloridas da
tinta formavam efeitos sinuosos, como se fossem penas coloridas despontando em
sua pele escura.
O artista
pintara uma pequena mancha branca na ponta do seu bico, representando um dente.
Um pequeno dente
a crescer.
Este Capsakid
negro não era desdentado.
Não era igual
a todos os outros Capsakid sem dentes.
– Ora… Ora…
Então o meu filho não é mesmo o Gimmighoul que todos andam á procura! – seu pai
olhou o Capsakid, igualmente surpreendido com aquele achado.
O outro não
reagiu lá muito bem a tal tom de voz cheio de escárnio do pai, e deixou ali em
cima da mesa o objeto exposto, o pousando com uma certa ferocidade sob o tampo
de mármore, junto com todas as outras moedas perdidas, que logo seu pai voltou
a contar, cheio de dúvidas em sua cabeça.
Não lhe
apetecia continuar a procurar, e acreditando já estarem todas recuperadas, o
peixeiro mais novo afastou-se. Tinha coisas mais importantes a pensar agora,
tal como a maneira que iria provar sua inocência no dia seguinte. Tinha que se
preparar para o momento, ensaiando mentalmente um estratagema nas palavras que
iria utilizar para conseguir dar a volta ao juiz.
Foi até a
janela da sala. Através do vidro embaciado, olhou para o céu escuro e o mar
distante, muito para além do porto comercial de Porto Marinada.
Não acreditava
muito no poder de Arceus, mas esperou que aquela bizarra coincidência fosse mesmo
algum sinal de sorte.
Fechou o
punho.
Só queria
fazer a boca dos outros comerciantes engolir todas as palavras proferidas dos
últimos dias.
Depois das
moedas já contadas, o homem segurou no Capsakid, o colocando ao nível dos
olhos, observando-o de perto em todos os seus ângulos possíveis.
– Estranho. Não
me lembro de comprar isto… Como será que isto veio aqui parar?
– Ah… Cala-te, velho inútil. Já chega de histórias por hoje – o mais novo soltou, ainda atordoado, removendo um cigarro do seu maço de tabaco.