Posted by : Shiny Reshiram 16 de jul. de 2024

 


Vez ou outra, ouvia-se o pigarrear de alguém, o terlintar de dinheiro a ser contado, o suspiro de homens cansados, ou o bater do cartão dos caixotes de arrumação a serem fechados, mas poucos ousavam conversar entre si, apesar da troca de olhares desconfiados que uns punham nos outros.


Depois da gritaria normal que preenchia cada bancada do grande mercado de Porto Marinada, silêncio era sempre um elemento bem convidativo aos ouvidos de todos, enquanto os comerciantes cansados faziam os últimos preparativos para o dia seguinte, apesar de um certo nível de tensão que pairava o ar.


Um deles, homem com cerca de cinquenta anos, passou um pano húmido por cima de sua bancada, por uma última vez, e aproximou o nariz da sua superfície. Não, já não cheirava mais ao odor intenso dos filetes de Veluza, postas de Barraskewda e muito menos a sangue derramado de Magikarp. Depois confirmou o stock existente na sua arca frigorífica, anotando em uma prancheta as encomendas de produtos frescos que chegariam no dia seguinte.


Sabendo que estava tudo limpo, desinfectado e organizado no seu local de trabalho, o peixeiro lavou e removeu as luvas. Dava aquele dia como terminado, e finalmente podia regressar a casa à vontade, casa esta que ainda ficava a uns bons metros de distância.


Mas antes de se retirar totalmente após fecharem as luzes do mercado, o homem parou uns instantes em frente de uma pequena estátua que existia numa das extremidades da sua bancada, pensativo.


Várias cópias daquela mesma estátua de porcelana existiam entre os comerciantes, tornando-se marca comum da cultura local, espalhadas que nem um amuleto de boa sorte. Cada uma, de certa forma ou outra, era uma estátua adornada á sua própria maneira, transmitindo uma personalidade única através da forma como as ilustrações na sua superfície brilhante eram expostas em termos de pintura.


Esta estátua era um pequeno Capsakid.


Em vez de ser verde, sua cor natural, era pintado ao todo de preto, enfeitado com traços irregulares, bolinhas, flores ou corações de inúmeras cores, com as patas azuis.

 

 

Uma luxuosa peça artesanal, que já fizera sucesso entre os turistas que ali vinham, logo se encantando com a imagem. E assim não era visto como um simplório Capsakid igual àqueles que são diariamente esbarrados nas beiras das estradas sem querer, por serem pequenos demais e muitos se apanharem desprevenidos quando estes passam à frente dos pés numa correria.


O que mais se realçava naquele tipo de estátua particular era o facto dele não ter um dente na frente, crescendo em seu bico.


Muitos molhos usados na gastronomia dão uso aos dentes dos Capsakid. Todos bem sabemos que os dentes que crescem nos bicos destes pequenos Pokémon Malagueta são um dos seus elementos mais marcantes, pois, quando esfarelados, tornam-se ingredientes cruciais em muitos pratos tradicionais Paldeanos, dando-lhes um toque único de picante.


O homem foi com a mão á bolsa do seu casaco, colocou um cigarro na boca e acendeu-o com um isqueiro.


Um dos seus colegas da bancada ao lado aproximou-se, ambos não pareciam muitos diferentes em termos de fisionomia, mas este era bem mais novo que ele. O peixeiro esticou-lhe o seu maço de tabaco.


Mas o outro rejeitara a oferta.


Não lhe apetecia fumar.


Estava demasiado ocupado a analisar os restantes comerciantes e a trocar observares, já que aquele bando de desconfiados não tirava os olhos de cima dos seus ombros, isso fazia com que sentisse um enorme peso a cada passo que seus movimentos de aproximação realizavam.


– Parece que necessitamos de um Capsakid sem dentes para provar a tua inocência. – o mais velho começou a rir na brincadeira, enquanto soltava uma lufada do fumo do cigarro.


– Vamos mas é embora daqui antes de ficar-mos totalmente às escuras. – comentou o homem mais novo, com tom zangado.


Depois de uns últimos preparos, os dois puseram, juntos, os seus pés fora do mercado, mesmo a tempo antes das últimas lâmpadas serem desligadas e o edifício ser inundado pela escuridão.


Seguiram, sem diálogos, as ruas desérticas de Porto Marinada, caracterizadas por suas casitas coloridas banhadas pela luz suave do crepúsculo.


O cheiro a sal vindo das docas conseguia purificar o nariz da dupla de peixeiros, o que era um refresco após um dia inteiro a cheirar o peixe que vendiam, se bem que tal ar puro não valia muito a pena, se o mais velho continuasse a poluir seus pulmões sendo um fumador.


A cada passo, ele brincava com uma pequena bolsa, atirando-a ao ar que nem uma bola de basebol. Sempre que ele a apanhava, ouvia-se o terlintar de moedas chocando entre si no seu interior.


Atrás dele, o outro homem bufou, ainda tenso.


– Calma filho. Tudo irá se resolver, no tribunal, claro. – o fumador murmurou, dando um trago no seu cigarro.


Era óbvio que aquelas não eram as melhores palavras para consolar o outro.


– Quem me dera. – foi a sua resposta sucinta. – Pai, sabes como são os outros comerciantes.


O mais velho acenou com a cabeça, e o restante da viagem nada mais disse.


Passado cerca de uma hora, a dupla, por fim, chegara a seu lar, quando o sol desaparecera por completo e o mar agora não passava de um manto negro e borbulhante camuflado contra o céu estrelado, quebrado, ocasionalmente, pela poderosa luz do farol do topo do promontório.


Era uma casita pacata numa das últimas ruas que subiam por um morro, que saía de Porto Marinada. Apesar de fazer parte da rua principal, aquela vila era tão silenciosa durante a noite que pouquíssimos carros e pessoas passaram por eles.


Se os dois tivessem transporte, ali chegavam em menos tempo. Mas ambos pareciam gostar bastante de fazer aquela longa caminhada, para relaxarem do trabalho com a vista magnífica que Porto Marinada lhes proporcionava, quer fazia chuva, quer fazia sol.


A porta abriu-se num ranger depois de ser destrancada e as luzes ascenderam-se. O homem pousou o seu pesado casaco escuro nas costas de uma poltrona na sala e sentou-se para descansar as pernas que já pesavam com a idade, enquanto contava os lucros que trazia consigo dentro da sacola. Já o mais novo dirigiu-se à cozinha, diretamente ao frigorífico, procurando qualquer coisa para trincar.


Muravam por ali sozinhos, mais uma mulher que raramente dava as caras naquela hora, e o recheio do interior denunciava bastante o estilo de vida atarefado de ambos quando estavam sozinhos em casa. Um amontoado de roupas fedorentas por lavar, os móveis empoeirados, pratos, copos e talheres sujos acumulados no lavatório, e inúmeros utensílios de pesca espalhados aqui e acolá por cima da mesa da sala de jantar. Num canto, uma viola tinha sido esbarrada com violência contra a parede, e ali, ainda jazia aos pedaços.


Quando o mais novo foi de encontro ao pai, trazia consigo um prato com umas quantas fatias de pizza requentadas.


– Queres? – questionou, ao se sentar numa poltrona ao lado da dele, e lhe esticando uma fatia.


O homem torceu o nariz ao ver um pedaço de chouriço deslizar lentamente na superfície do queijo derretido, ameaçando cair e sujar o chão, criando mais uma nódoa no tapete igual a tantas outras nele enfeitadas.


– Agora não. Não vez que eu estou contando dinheiro? E dinheiro é algo sujo, garoto? – disse-lhe, ainda a empilhar as suas moedas na mesinha de centro da sala, removendo-as, uma a uma, da sacola. – Sabe-se lá onde aquela escumalha andou com estas moedas todas enfiadas…


– Vê lá se não te falta lucro. Já que, pelos vistos, eu como o ganha pão do mundo inteiro.


O mais velho soltou uma gargalhada, e a distração súbita o fez derrubar sem querer com o cotovelo um dos seus montes de moedas e perder-se na conta.


Muitas delas rebolaram até o chão, perdendo-se debaixo da mesa, da estante da televisão, das prateleiras, das poltronas e do sofá da sala.


– Porra! Lá vou ter eu que contar isto tudo outra vez… Mas não precisavas de me baralhar o raciocínio. És mesmo engraçado por ainda estares chateado com aquela gente mesquinha e não os teres esquecido.


– Porque haveria de ter esquecido? Fui erradamente acusado daquele roubo.


– Já disse. Arranja um Capsakid sem dentes para provar a tua inocência quando fores ao tribunal.


– Como se uma peça simples de decoração me conseguisse ajudar.


– Não sabes… Até pode dar-te sorte amanhã. Agora ajuda ai o teu velho com um belíssimo favor e ajunta essas moedas... – ordenou. – HAi… HAi… Minhas costas…


O mais novo soltou um suspirou, enfiou o resto da pizza pela garganta abaixo em uma dentada, e começou então a caçar as moedas caídas, contra a sua vontade. Era uma tarefa que se provara uma autêntica caça ao tesouro. As moedas por serem tão minúsculas se espalhavam em qualquer canto com facilidade, e a pouca iluminação da sala também não era algo que ajudasse a desbravar os desafios que uma busca naquele ambiente impunham.


– Nunca entendi a história desse pinto… – começou o mais novo, mais murmurando o pensamento para si do que outra coisa. – Só sei que esse bicho minúsculo é quase sempre espezinhado por essas estradas a fora… Porcaria de Pokémon inútil não sabe se desviar das pessoas distraídas e do trânsito.


Para não se voltar a perder na contagem, o pai, desta vez, anotava tudo numa pequena folha á parte, que já se encontrava cheia de rabiscos e números. O filho tinha certeza absoluta que ainda não tinha nem encontrado metade das moedas caídas, portanto, como mantinha o seu olhar fixo no chão, não notara o súbito observar incrédulo que seu pai lhe botava em cima.


– Impossível. Todos aqui em Porto Marinada conhecem a lenda do Capsakid sem dentes.


– Como se tu me tivesses contado muitas histórias quando eu era criança. – ele resmungou entredentes, tentando esticar o braço debaixo do sofá para alcançar uma das moedas, que muito dificilmente seus dedos conseguiam ajuntar.


– Isso era trabalho da tua mãe. – e recebeu um olhar de desdém. – Pronto… pronto… Não me olhes assim. Eu não tenho culpa dela ser uma piloto de aviões e estar sempre ausente. Mas é impossível não teres ouvido um zum zum por ai.


– Sim, talvez ouvi um zum zum aqui ou ali, não nego, afinal, essas estátuas andam em todo o lado a minha vida inteira. Mas ninguém me explicou nada a sério. – encolheu os ombros. – De qualquer forma, eu nunca procurei respostas.


– Então, qual o teu interesse súbito por essa velha história? Até parece que estás com medo e que és mesmo o ladrão. – o velho peixeiro provocou-o, fitando-o intensamente.


– Mencionas-te esse Capsakid hoje, duas vezes. – e franziu o sobrante, realçando bastante duas vezes com sua pronuncia típica da Província Ocidental de Paldea.


Pelo tom da conversa, ambos não se davam lá muito bem de vez em quando, mas o adulto não parecia surpreendido pelas dúvidas que o seu velho punha no ar. Ele raramente confiava nele.


O homem mais velho fez uma pausa breve em seu serviço deixando a folha e a caneta de lado e o dinheiro organizado de forma a se recordar do ponto onde estava quando retornasse a contagem.


Esticou as costas na sua poltrona, juntando as mãos sobre a barriga, olhando para cima, pensativo e relaxado.


– Aconteceu há muitos anos, é uma lenda, ninguém sabe se é verdade. Mas, tal como tu esta semana, envolveu um homem erradamente acusado de roubo aqui em Porto Marinada.


– Continue. – ele disse, num tom melancólico. Era difícil traduzir pela sua voz se ele estava mesmo interessado em saber os detalhes. – Não é como se isso me fosse mesmo ajudar a sair da merda e provar que estou inocente.


– Bom. Naquela época, as pessoas podiam ser bem extremas. E levaram o homem á forca em praça pública, já que ele não admitia ser o responsável pelo roubo.


Levantou-se de súbito, e olhou para o pai com cara séria. A história tinha ficado bem interessante de um momento ao outro.


Rápido, até demais.


Será que valia a pena continuar a ouvi-la?


O homem entendeu o olhar do filho como um sim.


– Antes de o largarem, pendurado pela corda ao pescoço, o homem gritou aos céus, com todas as suas forças ‘’é tão certo eu estar inocente, como é tão certo um Capsakid sem dentes aparecer no vosso caminho quando me enforcarem!’’, enquanto gritava, apontava para um galinheiro de Capsakid que existia no quintal de uma casa próxima.


– Não me digas que apareceu mesmo um Capsakid sem dentes no meio dos outros? Ou esse homem só estava louco com as galinhas da vizinha?


Ele formou um sorriso no canto de boca.


– Sim. Pouco depois do homem ser largado, avistaram o pinto defeituoso bem a tempo de o desprenderem antes deste morrer asfixiado.


– Que palhaçada… Não existem Capsakid sem dentes.


– Ouve quem dissesse que o Capsakid fora uma bênção de Arceus. – o mais novo revirou os olhos com tamanha informação que para si mais parecia uma barbaridade. – E desde esse dia, que esse bendito Capsakid é mascote da nossa terra. E verdade seja dita, ele faz bastante dinheiro como souvenir entre os turistas, logo, foi uma invenção que deu certo.


– E porquê as cores? Julgo que era um Capsakid de cor normal, e não uma malagueta que levou com pingos de tinta em cima.


O outro encolheu os ombros.


– Nesse quesito, preto é uma cor profunda e fria que simboliza a morte, de resto, acredito que os aldeões da época apenas quiseram dar asas á imaginação e homenagear o monstrinho com um pouco mais de cor para lhe dar vida. Sabes como são os crentes…


– Isto é ridículo. Sinto que perdi o meu tempo ouvindo uma história infantil idiota.


– Tem fé na lenda. Ele apareceu para salvar um inocente. Ninguém sabe se, para ti, ele poderá aparecer ou não de alguma maneira, também para te salvar da prisão. – o velho sorriu, com ar enigmático, voltando a sua atenção para a mesinha central da sala.


Revirou os olhos, outra vez. Bem lá no fundo, o seu velho definitivamente não acreditava nada na verdade de que ele não era o culpado, e o mais novo sabia muito bem disso.


– Só vou acreditar se eu vir mesmo um Capsakid negro com meus próprios olhos, mas este tem que vir com dentes então, e não sem dentes. Se isso te deixa feliz. – cuspiu as palavras. – Se eu sou inocente, e se tal realmente existe, que Arceus então envie um desses até mim!


O outro riu, mas não entraram em mais detalhes, e assim, ambos voltaram aos seus anteriores afazeres, sem conversarem muito mais. E o mais novo voltou a bufar, frustrado.


Tinha mesmo a certeza que vira mais moedas rebolar pelos mais estreitos recantos do chão da sala, e continuou a procurar as mesmas naquela tarefa que não parecia ter qualquer fim à vista, pois nenhuma delas podia ser perdida por questões de contabilidade.


Cerca de dez minutos mais tarde, viu um brilho por debaixo da mesinha de centro, e, sem pensar duas vezes, correu até lá e esticou os dedos na fissura, tentando segurar a moeda perdida com a ponta dos seus dedos.


Para sua surpresa, removera, não uma moeda, mas algo maior.


Algo mais pesado.


Uma bem-dita réplica de uma daquelas estátuas de Capsakid!


Ele ainda ficou a analisar o pequeno objeto perdido em mãos durante muito tempo, a assimilar aquele achado e o peso que o mesmo significava. Lhe apetecia partir aquele Capsakid, deixando seus destroços como simplório lixo igual a todos os outros espalhados pelo chão.


Mas quando reparou melhor, algo o conteve de desfazer suas frustrações.


Aquele exemplar de porcelana em particular parecia bem diferente no formato que todos os outros exemplares adotavam e do que todas as histórias contavam. O objeto cintilava sob a luz pálida do candeeiro da sala, e as pinceladas coloridas da tinta formavam efeitos sinuosos, como se fossem penas coloridas despontando em sua pele escura.


O artista pintara uma pequena mancha branca na ponta do seu bico, representando um dente.


Um pequeno dente a crescer.


Este Capsakid negro não era desdentado.


Não era igual a todos os outros Capsakid sem dentes.


– Ora… Ora… Então o meu filho não é mesmo o Gimmighoul que todos andam á procura! – seu pai olhou o Capsakid, igualmente surpreendido com aquele achado.


O outro não reagiu lá muito bem a tal tom de voz cheio de escárnio do pai, e deixou ali em cima da mesa o objeto exposto, o pousando com uma certa ferocidade sob o tampo de mármore, junto com todas as outras moedas perdidas, que logo seu pai voltou a contar, cheio de dúvidas em sua cabeça.


Não lhe apetecia continuar a procurar, e acreditando já estarem todas recuperadas, o peixeiro mais novo afastou-se. Tinha coisas mais importantes a pensar agora, tal como a maneira que iria provar sua inocência no dia seguinte. Tinha que se preparar para o momento, ensaiando mentalmente um estratagema nas palavras que iria utilizar para conseguir dar a volta ao juiz.


Foi até a janela da sala. Através do vidro embaciado, olhou para o céu escuro e o mar distante, muito para além do porto comercial de Porto Marinada.


Não acreditava muito no poder de Arceus, mas esperou que aquela bizarra coincidência fosse mesmo algum sinal de sorte.


Fechou o punho.


Só queria fazer a boca dos outros comerciantes engolir todas as palavras proferidas dos últimos dias.


Depois das moedas já contadas, o homem segurou no Capsakid, o colocando ao nível dos olhos, observando-o de perto em todos os seus ângulos possíveis.


– Estranho. Não me lembro de comprar isto… Como será que isto veio aqui parar?


– Ah… Cala-te, velho inútil. Já chega de histórias por hoje – o mais novo soltou, ainda atordoado, removendo um cigarro do seu maço de tabaco.



Leave a Reply

Subscribe to Posts | Subscribe to Comments

- Copyright © 2022 - 2023 Aventuras em Paldea - Escrito por Shiny Reshiram (Shii) - Powered by Blogger - Designed by CanasOminous -