PARTE 8 – Novo Lar (PARTE FINAL) - A Fada, o Corvo, e o Baleeiro


– Olhem! Ela está a se mexer! – Ouviu uma voz.


Podia estar a sonhar, mas era a voz do Slaking que conhecera no tal barracão assustador, que para sempre ficaria conhecido por Barracão do Baleeiro, devido ao escândalo que a morte dos Cetitans e outros Pokémon ali causara.


A notícia não tardou a correr Zapapico, e todos os responsáveis foram presos pelas autoridades locais. Mais de quinhentos litros de combustível à base de resíduos orgânicos foram apreendidos. Apesar disso, sem dúvidas que muitos envolvidos conseguiram escapar, e o incêndio ficaria para sempre na memória daquela gente de tal comunidade, que viu o céu negro e pressentiu todos os dias o cheiro a podridão.


– Ei, senhorita Tinkatuff, consegues ouvir-me? – Falou uma voz. Esta, a fada não conhecia de lado algum, junto com a outra que se seguiu.


– Fala mais baixo, Cleo. Ela deve estar com uma dor de cabeça depois de tudo o que ocorreu, tadinha…


– Calar? Jade, odeio quando me mandar calar. Eu ainda tenho voz ativa aqui dentro!


– Eu não te mandei calar. Só disse para baixares um pouco mais a bolinha aí por causa da situação frágil de nossa convidada…


– Baixo? Mas eu estou falando baixo!


– Não. Não estás. Sabes que, às vezes, falas alto demais.


– Meninas. Podem parar de discutir, por favor? Ela está abrindo os olhos. – o Slaking rebateu, envergonhado pelo comportamento das duas. – Será que ela tem fome? Vai buscar comida, Cleo, sê mais útil e incomoda menos.


E ela lá foi, a resmungar.


A Tinkatuff abriu os olhos lentamente. Seu corpo estava cheio de hematomas. O braço encontrava-se imóvel, fixado por uma faixa branca e espessa que lhe impedia os movimentos, mas sentia-o melhor, muito melhor. Ao seu lado, como uma recordação de toda a vida, sua pá se mantinha, imóvel, por cima das cobertas. Pelo menos, ela fora limpa por sabe-se lá quem antes de ali exposta, mas seus arranhões ficariam para sempre gravados no cabo de madeira.


Cicatrizes… Gosto disso. Espero que também tenha ficado com algumas.


Tentou se erguer. Mas não conseguiu. Era uma cama confortável de um material que cheirava bem. Muito bem. Um aroma doce, constante, lembrando um mar infinito de Oran Berries suculentas.


Ao pensar em berries, seu estômago começou a roncar alto de imediato, mas logo acalmou quando um dos Pokémon presentes no espaço entregou-lhe uma taça cheia de uns quadradinhos castanhos, pequenos, conhecidos por ração para Pokémon, bem apetitosos. Faminta, pegou nestes aos punhados e enfiou-os boca abaixo. Duros ao início, mas muito saborosos ao longo do mastigar, pois derretiam a cada dentada numa crocância efervescente.


Não se comparava a nada do que ela já comera em toda a sua vida. Fora como um manjar lhe servido diretamente pelos deuses. Aqueles pedaços deviam conter nutrição completa, pois logo na primeira dentada, a energia do seu corpo fora revigorada.


Aconchego…


Que bom que era recordar o que era aconchego.


Saciada, foi nesse instante que se lembrou de tudo o que ocorreu, e deixou-se desabar em lágrimas.


– Eu… Eu morri?...  Isto é o reino de Arceus?


– Não, garota. – O Slaking tomou uma aproximação, com uma caixa que tinha um frasquito de xarope e uns quantos comprimidos na palma da mão. – Mas agradece a Arceus por estares viva. Agora que já te alimentaste, está na altura da medicação. Jade, dá-lhe aquele copo com água que está ali em cima.


E assim a outra Pokémon obedeceu, buscando o copo com água que estava posicionado numa mesa logo à frente. A Tinkatuff aceitou o copo com água de bom grado, reparando na outra de perto. Ela tinha um ar semelhante aos dos humanos, pois se tratava de uma Tsareena de expressão simpática.


– Agora, amorzinho. Bebe e engole isto. Vais sentir-te muito melhor. – A Tsareena falou em tom doce, pegando num lenço de papel para também lhe entregar. – E enxuga essas lágrimas. Sei o quanto custa… Mas… Já passou… E agora deves-te focar somente na tua recuperação.


Bebeu, e cada gole do líquido divino conseguiu a acalmar quase que milagrosamente. Os medicamentos também transferiram uma leveza quase imediata à sua tristeza. As lágrimas desapareceram, enxugadas pelo material macio entregue pela outra, consoante as instruções desta, pois ela lhe teve que explicar de modo breve como o lenço funcionava entre cada uma das outras coisas. Na natureza da montanha, nada daquilo existia.


Desejou questionar mais coisas, mas por hora, não o fez.


Reajustou o corpo nas cobertas e no travesseiro, reconhecendo o facto de estar a ser ajudada por Pokémon tão gentis.


– Obrigado… – Foi tudo o que conseguiu dizer, antes de, abraçada a sua pá, ser inundada por uma sensação súbita de tranquilidade, que a fez voltar a adormecer.



Dormiu toda a noite. Dormiu como uma pedra. Há anos que ela não tinha um sono tão reparador como aquele. Ela podia se acostumar facilmente a acordar todas as manhãs assim.


– PEQUENO ALMOÇO!


Uma pena que o seu despertador não fora o melhor. De qualquer forma, sentiu-se bem-disposta e revigorada.


Sentou-se na cama, esfregou os olhos ensonados. Para sua surpresa, não se encontrava sozinha.


– Cleo, olha o que fizeste! Acordaste-a! Quantas vezes tenho que dizer para falares mais baixo!


– Mas eu estou CHEIA DE FOME!


– Vocês as duas vão começar a discutir outra vez?


Desta vez, a Tinkatuff conseguiu ter um vislumbre da Pokémon barulhenta que acompanhava a Tsareena e o Slaking. Uma avestruz conhecida por Espathra encontrava-se a caminhar de um lado a outro, com sua própria barriga a roncar em alto e bom som.


– Ena, ela já acordou. Significa que já podemos ir comer? – O entusiasmo da Espathra acabou por arrancar um sorriso da fada. – Tem bolo de Red Velvet!


O gorila encarou a fada.


– Tens fome? Consegues ir sozinha até a sala de jantar?


A Tinkatuff acenou, com passos vagarosos, elevou-se da cama. Não precisava de ninguém para a carregar no colo, sendo que tal não passava de uma ideia bem desagradável para ela. Sentiu uma pontada de pena ao abandonar aquele sítio tão confortável, mas, tal como a avestruz, também acordara faminta.


Foi guiada pelos três Pokémon, indo atrás deles e tomando atenção àquele lar. Os habitats dos humanos eram cheios de coisas esquisitas para ela, pois era a primeira vez que estava dentro de uma casa, apesar de que, no geral, aquela casa era como qualquer outra casa humana de Zapapico. Quando o Slaking, a Espathra e a Tsareena adentraram a sala, ouviu-se vozes humanas a comentarem entre si.


Ela está mesmo com um óptimo ar. – Ouviu-se uma voz feminina, cheia de alívio.


Sim, vai recuperar rápido e a operação correu bem no Centro Pokémon. – Disse outra, também feminina.


Podia ter ficado melhor se não a tivesses atropelado. – Um tom masculino cortou o ar de modo trocista.


HEY! Ela é que não parou de correr no meio do caminho e bateu no carro! Eu travei a tempo! – Defendeu-se uma outra voz, esta também com uma tonalidade masculina.


Quatro seres humanos estavam presentes. Dois homens e duas mulheres já se serviam, trocando bolinhos, pedaços de frutas aleatórias de ar apetitoso, pão, torradas, folhados de salchichas, e uns quantos cafés que recheavam o local com um aroma bem agradável.


A Tinkatuff reconheceu as mulheres. Eram as mesmas humanas que a tinham salvado lá no barracão. A que tinha uma argola dourada na orelha e cabelo curto aproximou-se dela, ajoelhando-se para coincidir com o tamanho da fada em plena igualdade.


Eu capturei-te quando estavas inconsciente. Foi a maneira mais rápida de te carregar. – Começou a dizer. Sua voz era doce, e transmitia uma serenidade surreal. – Vou cuidar de ti enquanto estiveres debilitada. Depois, voltarás à natureza, se tal for a tua vontade, é claro.


A Tinkatuff fez uma cara esquisita, e a humana entendeu logo o que tal expressão sugeria.


Não te preocupes, ninguém aqui te vai fazer mal. E as pessoas horríveis que te maltrataram serão punidas. A maioria já foi a julgamento neste preciso momento.


As autoridades Paldeanas já foram informadas do sucedido. Estamos atrás dos responsáveis pela organização. – Falou um dos dois homens, e, nesse instante, a Tinkatuff notou como estes carregavam uniformes alusivos aos tais carros policiais que haviam ao longo do trilho. Afinal, os dois eram policiais chamados ao local, e um dos automóveis lhes pertenciam. – Há muito que desconfiávamos que algo não batia certo devido ao mau cheiro a pairar as redondezas, mas ali a nossa amiga deu o alerta necessário para iniciar a investigação quando o Slaking foi roubado. Esse grandalhão costumava viver sempre no jardim dela. E bem… Acho que o resto, já sabes.


Mas tem algo que nós todos gostaríamos de saber. Que é conhecer-te… – Começou a humana de cabelo curto, com um sorriso no rosto. Ela estendeu-lhe a mão, apertando-lhe os dedos rechonchudos e rosados. – Meu nome é Haruka. Qual o teu? Deves ter um nome, estou correta?


Os três Pokémon a fitaram, atentos, também interessados naquela pequenita revelação. A fada ainda demorou muito tempo a responder, sem saber ao certo se devia confiar naquelas figuras em particular para partilhar tal informação tão intima.


Mas eles a ajudaram imenso, e a entregaram muito conforto e pedaços deliciosos de comida.


Sem se aperceber, as palavras saíram-lhe, quase que automaticamente.


– Gordinha… Minha família me tratava por Gordinha. Mas acho que, a partir de hoje, vocês podem me tratar por Brites.


Brites. Uma bela homenagem à cria de Wohali que o Corvo havia sufocado com um pedaço de gelo no coração tantos anos atrás. Fazia um bom tempo que ninguém lhe questionava sobre sua identidade. A palavra apenas lhe saiu, como se já tivesse tal no seu subconsciente há muito tempo, esperando a época certa para se expor.


Haruka acenou, endireitando os seus cabelos castanhos, enquanto lhe fitava os profundos olhos.


Brites. É um nome bem particular… Gosto dele. É bem a tua cara.


A Tinkatuff não soube ao certo como aquela humana conseguira compreender suas palavras, mas tal fazia agora parte de uma nova fase em sua jornada.


Olhou pela janela, fitando a montanha, enquanto deixava Haruka mudar a faixa que cobria o seu braço para uma nova. Sabia que talvez nunca se recuperaria totalmente nos movimentos, mas por agora, tal não importava lá grande coisa, se ela continuasse sendo forte e astuta.


Toda a vida sentiu-se predestinada a ser a heroína daquela terra, mas tudo saíra do seu controlo e avançou por limites muito além dos seus. Esperava que os pequenos Cetoddles descobrissem o caminho de regresso ao vale em paz, e que sua família estivesse segura de uma coisa ou de outra que as forças malignas do universo impunham naquele mundo. E, se novo mal surgisse, ela iria descobrir para os proteger, caso chegasse a altura certa para tal.


Ainda existia responsáveis pela tragédia à solta, e a Tinkatuff não iria descansar enquanto não os descobrir. Um dia, quando tivesse a garantia de que cumprira a 100% a missão, regressaria ao seu cantinho na montanha e voltaria a abraçar os Cetitans e Cetoddles gorduchos que tanto cuidaram bem dela e que tanto a amavam.


Entretanto, aproveitaria a falta de preocupações em sua nova jornada, que dera uma reviravolta e tanto, e sentar-se-ia na mesma mesa que aquelas pessoas e Pokémon comiam da mesma comida e bebiam do mesmo líquido, no meio de risos e conversas agradáveis.


A palavra aconchego e a palavra lar nunca antes lhe tinham ressoado de maneira tão diferente… Tão viva.



Uma Tsareena e uma Espathra no vale não era propriamente uma visita confortável. Depois da era de terror com o Corvo, e do desaparecimento do velho Cetitan desdentado e suas crias, o vale tornara-se um pouco mais fechado a estranhos do que antes nos anos que se seguiram.


De qualquer modo, aceitaram a encomenda que estas duas traziam de bom grado. Principalmente, depois de descobrirem a identidade da responsável que enviara tal coisa até aquele espaço remoto perto do topo da montanha.


Um Cetitan enorme de pele negra como rocha basáltica levou o embrulho até as profundezas de uma das mais complexas redes de grutas da montanha. Ali, bem no fundo de um túnel gelado, um outro Cetitan extremamente velho repousava, de olhos semicerrados e barriga para cima.


Tentou esboçar um sorriso em seus lábios gretados ao ver o filho, e seus olhos se encheram de lágrimas ao notar o embrulho feito em folhas de árvores e paus. Não foi preciso palavras para descobrir quem o havia feito.


O mais novo ajudou o mais velho a desembrulhar o embrulho, e foi um espanto encontrarem um bolo de pastelaria no meio de tudo aquilo com um pequeno brinquedo que era uma bela recordação. Uma pequena Tinkatink feita de peluche ao redor de muitas berries suculentas. A maioria eram Oran Berries, como se no interior de um grande cesto de vime. No prato de cartão que suportava aquela bela confeição, apesar de escrito em língua humana, existia a seguinte descrição: Feito por uma Gordinha, com muito Amor. Padaria Sonhos de Dachbun.


Por estar muito fraco e já não se alimentar sozinho, o Cetitan Shiny levou uma das bagas à boca do pai, junto com a massa sinistra e o creme que a encobria, mas que cheirava muito bem e era adequado à alimentação e nutrição de Pokémon.


Mastigou vagarosamente, e feliz, o jantar lhe servido, grato ao universo por mil e uma coisas inimagináveis.


Adormeceu, com sua pequena nova Gordinha de peluche ao seu lado.


E nessa mesma noite, as portas de Arceus lhe foram abertas.


Uma ave negra sobrevoou o topo da montanha, que raiava em sol. O Cetitan fitou-o, sem palavras, apenas com um olhar sereno e de compreensão. O Corviknight acenou-lhe, com um certo amargo a arrependimento na sua expressão, deixando ali mesmo uma pequena bolinha negra em meio da neve.


Wohali mal podia acreditar no que via.


A pequena Cetoddle correu até o Cetitan mais velho, para o abraçar, enquanto a enorme ave se distanciava no céu do horizonte.


Ai, se apercebeu que na vida pacata que levou, mesmo envolto de medos e perigos, não teve nada melhor do que aproveitar cada momento e seus pequenos prazeres da rotina.


Notas da Autora #17 - Capitulo Especial - A Fada, o Corvo, e o Baleeiro

   


Sempre vi os meus amigos com Capítulos Especiais que podiam ir até aos 10 Capítulos, ou menos, ou mais, dependendo do caso. Acho que estava a chegar a minha vez de criar algo assim. Escrever  A Fada, o Corvo, e o Baleeiro ensinou-me várias coisas preciosas no mundo da escrita, entre elas o facto de que, escrever um pouquinho todos os dias, sendo persistente contra qualquer que seja o bloqueio que enfrentamos pelo caminho, pode atingir resultados maravilhosos.


Estive em volta deste Especial em torno de dois meses, combatendo a preguiça e tentando criar, nem que fosse apenas 100 palavras por dia, um desafio pessoal concluído com sucesso que ainda parece tudo um sonho kkk. Não vou mentir, existiu alturas em que tive vontade de botar tudo fora, mas continuei a lutar  e lutar para acabar com os bloqueios criativos. E consegui!


Acho que nunca tinha escrito tanto na minha vida em tão curto espaço de tempo...


Não era suposto este Especial ter atingido as 25 500 palavras (divididas entre as suas 8 partes). Meu objetivo original era ser um oneshot simplória com apenas 5 000 palavras sobre uma fadinha que via seu martelo roubado e nunca o conseguiria obter. Mas que mudança louca, certo? O que aconteceu? 


As ideias apenas foram surgindo naturalmente.


Fazia um bom tempo que eu tinha num documento da fanfic a seguinte proposta ''escrever uma oneshot sobre este Pokémon fada perdendo o martelo''. Tal ideia surgiu através de um livro aleatório que eu estava a (re)ler na época, onde a personagem procura vingança de um dragão que matou seu pai e destruiu sua vida, mas não o consegue matar, pelo contrário, encontra inimigos maiores em sua jornada e terá que aceitar tal natureza do mundo.


Achei interessante criar uma história com uma mensagem semelhante, usando a personagem Brites. Quem esteve mais atento sabe que ela é uma das Pokémon da Padaria Sonhos de Daschbun (e que personagem!... com alguns planos para o futuro).


Sobre o especial propriamente dito, bem... espero que eu não tenha traumatizado ninguém! Mentira, eu estava com saudades de escrever algo mais pesadito, pois serei sincera, estamos numa fase da fanfic principal meia chatinha hehehe Vou me certificar que tranco a porta da minha casa a partir de hoje, vai que alguns malucos não apareçam para se vingarem dos pesadelos que eu acabei lhes causando.


Enfim, podem conhecer um pouco mais sobre futuros antagonistas da fanfic entre as linhas. (Ai como eu amo assaltar o Anime com ideias). Não é grande coisa, mas soltando pinga aqui, pinga acolá, é que a história se vai construindo.


Já agora, curiosidade rápida, a Lenda da Lechonk foi inspirada num conto do Arquipélago dos Açores. Bem... O que os Açores tem haver com Paldea? Açores nem sequer faz parte da Espanha! Bom... O nome Zapapico faz referencia a uma das ilhas, e na versão Alemã do jogo, a cidade chama-se Pinchores e parece ser uma referencia louca ao arquipélago.... então eu apenas viajei um pouco na maionese como costume.


Até a próxima!


Capitulo 12 – O Dormitório Número Onze



– Isto vai dar muitooo errado… Muito mesmo… – murmurou um dos jovens para o outro. – Vamos ter problemas se nos apanharem!


             – Todos vão pensar que foi aquela escumalha da Team Star, não tem nada que dar errado para nós. Vai ser a maior partida do século! – exclamou o outro numa grande azafama.


              – Tens certeza que sabes fazer isto?...


– Claro. Eu vi aquela rapariga estranha ontem, acho que sei como ela fez.


– Mas não sabes o porquê. Vê lá onde estás a te meter.


– Calma mano. Só quero testar.


Após mexer nuns botões na lateral usando um padrão específico, o rapaz conseguiu aceder a um painel secreto na tela do computador. A grande quantidade de dados era uma confusão enormíssima que nem todos conseguiam compreender, pois o rapaz estava a mexer diretamente nas configurações do sistema do mapa da Academia.


– O que estás fazendo, mano?? – questionou um outro jovem, assustado ao ver aquela barafunda de símbolos e números na tela.


– Caramba, está mesmo funcionando! – disse um outro que analisava todos os movimentos do companheiro com máxima atenção.


– Vou trocar o número das salas em cada região da Academia, não é genial?! – exclamou ele, com empolgação.


O grupo mostrou-se um tanto relutante à ideia, mas logo tornaram-se cúmplices, inundando o silêncio do local com mais confusão e risinhos constantes.


– Achas que alguém vai cair mesmo nessa? – questionou um deles às gargalhadas.


– Os novatos sim. Vai ser demais!


Apesar da demora causada pela difícil compreensão do código do sistema, o grupo lá conseguiu trocar alguns números de porta e nomes de cada sala no mapa, porém, apesar dos minutos ali gastos, não terminaram o serviço como gostariam.


Um outro adolescente do grupo, que estava a espiar atrás de um dos pilares no corredor que nem um sentinela, logo chamou-lhes a atenção quando sentiu passos vindos naquela direção.


– Shhhh… Vem ai alguém! CORRAM!


              A jovem que atravessava o corredor na companhia de um crocodilo de areia e mochilas de bagagem, parou de repente, deslumbrando um grupinho às correrias, mal sua presença surgiu. As passadas pesadas do momento de fuga vibraram todas as paredes, até, por fim, esconderem-se num dormitório longínquo, bem no final da ala.


Tamar arqueou a sobrancelha, desconfiado.


Já Juliana limitou-se a resmungar, mal humorada, com dores nas pernas e nas costas devido a sua longa travessia até aquele local.


              – Além de mais escadas, também tenho que levar com mais idiotas… – resmungou ela.


Os arruaceiros espreitaram vez ou outra, mas logo o bater da porta foi sentido com mais força, seguindo-se do seu tranque. Eles não sairiam assim tão cedo do dormitório que agora era seu longínquo esconderijo.


Juliana prosseguiu então seus afazeres.

 


              O dormitório número onze não ficava muito longe do computador do corredor, nem da porta de saída da Ala Amarela da Academia. Juliana respirou fundo, quando Tamar guiou-a até a porta, onde ficou, analisando todos os seus detalhes, desde as marcas da velha madeira até a maçaneta roída pelo tempo.


Alguém sujara aquela porta antiga de tinta e desenhara, em traços encarnados, um coração partido perto do número que a identificava, diferenciando a porta das demais ao lhe dar um ar mais engraçado, como se o antigo dono do dormitório tivesse sofrido uma decepção amorosa no passado e a quisesse imortalizar. Pelo menos, o coração desenhado iria ajudar a jovem a diferenciar sua porta das demais com facilidade nos tempos que viriam.


              Juliana procurou a chave do dormitório no seu bolso, e inseriu-a na fechadura.


Antes de virar a maçaneta, olhou para o seu crocodilo. Depois acariciou as suas Pokéballs no bolso.


– Prontos para conhecerem a nossa nova casa?


Tamar encarou a treinadora com seu sorriso gentil, pois ela estava tão nervosa que parecia ser mais adequado se fosse ele a lhe fazer aquela mesma pergunta.


E assim, Juliana rodou a chave.


– Estranho… Acho que já estava aberta… – analisou ao ouvir o trinque e ver que a porta ainda se mantinha trancada.


 Virou a maçaneta outra vez e tentou empurrar a porta para dentro.


Quando por fim a mesma se abriu, após diversas tentativas desajeitadas que requereram um pouco de força, a jovem conseguiu deslumbrar parte daquele que seria o seu novo lar a partir daquele dia.


A primeira coisa que Juliana notou mal entrou no local, foi a forma agradável como o ar era fresco graças ao ar condicionado, nada comparado ao mofo de antiguidade da biblioteca. Como ela própria gostava de velas aromáticas e ambientadores no seu quartinho em Cabo Poco, agradou-lhe imenso o perfume subtil que o espaço emanava.


Mas não tardou muito tempo a atender-se aos detalhes.


Detalhes estes que seriam bem significativos e mudariam logo a sua primeira impressão.


O hall de entrada do dormitório não passava de um pequeno corredor, cuja parede contava com uma longa fileira de ganchos destinados ao pendurar de mochilas e casacos, e os mesmos, estavam, notoriamente ocupados com alguns apetrechos, que incluíam uma toalha de banho e uma mala de praia cheia de protetor solar e maquilhagens.


No lado direito, duas portas para um armazém e casa de banho privada. Uma onda de vapor saia por debaixo da porta que seria a da casa de banho, fazendo o espaço inundar-se em nevoeiro.


Juliana arqueou a sobrancelha ao presenciar a onda de vapor.


– Estranho… Parece que alguém deixou suas coisas aqui e está tomando banho… – analisou.


E o Krokorok concordou com ela.


Ela engoliu a seco.


– V… Vamos arrumar nossas coisas e depois vemos se tem mesmo alguém… – sugeriu, trémula, sentindo uma onda de medo percorrer-lhe o corpo em relação ao que mais ai vinha. Tamar também posicionou-se de um modo mais hostil, pronto para enfrentar o perigo eminente.


Este corredor estreito, apesar de apertado, seguia até um espaço mais amplo, e por ser o primeiro local que avistara ao abrir a porta, era óbvio que a cozinha seria o primeiro local para onde a jovem e seu Pokémon se iriam dirigir.


A cozinha era bem equipada, recheada de bens necessários para ali dentro fazer-se uma vida, apesar de, em parte, esses bens encontrarem-se um pouco desorganizados.


A situação não era crítica ao ponto de se imaginar a passagem de um forte vendaval ali horas antes, mas como Juliana e Tamar estavam acostumados à cozinha da padaria, sempre um ambiente muito bem limpo e organizado, com todo o equipamento a cintilar de tal modo que refletiam suas figuras, estranharam uma cozinha com tamanha desorganização, logo a pouca sujidade que esta tinha tornara-se notável nos seus observares.


Juliana pousou suas coisas por cima da bancada, que estava infestada de latas de refrigerante vazias empilhadas, guardanapos amarrotados e embalagens de comida instantânea seladas, concentradas numa das extremidades. O fogão do espaço encontrava-se com um grande tacho cheio de esparguete com queijo e natas, de mau aspeto, como se tivesse ali à dias.


Não tinha cogitado a possibilidade de, mal chegasse, por mãos à obra na limpeza, organização e desinfecção devida de todo o espaço.


Se bem que o estado das coisas podia ser muito pior… Pelo menos para o gosto dela. Tamar sentiu náuseas ao ver a condição das grades e a superfície queimada do fogão, pois, por sua vez, fitava todos os lados da cozinha, horrorizado, sentindo o seu lado de mordomo despertar.


Quando Juliana deu por si, lá estava o pobre crocodilo com o saco de lixo em mãos em busca de lixívia ou algum outro produto de limpeza poderoso de todo tipo nas prateleiras debaixo ou por cima do lavatório.


Por Arceus, isto está um nojo… Olha só isto! Que grande sorte a nossa, Lady Juliana, o antigo dono não limpou antes de deixar o espaço… – grunhiu o crocodilo.


– Tamar… Acho que estás exagerando. É só umas migalhas, coisa fácil de limpar… Não é o fim do mundo. – a jovem disse-lhe, quando o viu calçar umas luvas descartáveis que, apesar de serem para mãos humanas, couberam nas suas garras com perfeição.


Duas grandes janelas deixavam todo o espaço bem iluminado, além de entregarem uma bela vista para parte dos edifícios da praça central de Mesagoza. A cozinha se localizava mesmo ao lado de uma dessas janelas do cómodo. Juliana fitou distraidamente a vista para o exterior, pois Mesagoza era uma cidade bem bonita e apelativa avistada dali de cima.


Só então encarou o restante dormitório com mais atenção.


Por instantes, Juliana julgou olhar para um país distinto.


Entre as duas janelas do cómodo, era notável uma grande secretária cor-de-rosa, cuja superfície encontrava-se enfeitada de peluches dos Pokémon mais fofinhos que se podiam imaginar, desde ursinhos, gatinhos a cachorrinhos, alguns deles com roupinhas personalizadas e portanto notáveis cinturões de wrestling. Afixado na parede, por cima dos bonecos, um horário de treino e uma roda alimentar com anotações e dicas de dieta, apesar de ser um tanto irónico bons hábitos alimentares com o tipo de alimentos pouco saudáveis encontrados na bancada da cozinha.


No outro lado, umas quantas prateleiras com livros e cadernos rabiscados, recheadas de figuras de magos, dragões, lobisomens, dados e pedras preciosas de diversas cores, muitos posters de reinos fictícios famosos do entretenimento e mapas em exibição, como se o espaço pertencesse a alguma cartógrafa apreciadora de Role-playing games.


Mesmo ao lado da secretária, um grande armário de madeira carregado de desenhos abstractos e recortes de revistas. Os recortes eram relacionados a assuntos banais de qualquer adolescente como maquilhagem, moda e algumas bandas e cantores bem conhecidos. Estas últimas podiam ser do interesse de Juliana se não fossem os adornos que os enfeitavam: autocolantes assustadores relacionados a heróis sangrentos durante guerras medievais, caveiras e símbolos bizarros que pareciam construir um ritual de invocação a Giratina, e, mais uma vez, remetiam aos universos populares dos jogos RPG.


O principal naquela paisagem peculiar era as duas camas, sendo que uma delas estava desfeita e num estado de confusão total, com mais e mais peluches em cima das suas cobertas, e muitos destes caídos e espalhados por todo o chão.


Espera…


Duas camas?


– Eu vou partilhar o quarto com UMA ESTRANHA???? – Juliana exclamou, dando um pulo para trás e sentindo todo seu mundo acabar por desabar quando se apercebera da realidade.


A dura realidade…


Estava tão distraída a pensar em vários assuntos envoltos na sua ansiedade, tal como a hora do almoço, que até então não tinha pensado numa questão deveras importante: se seu quarto era, ou não, um dormitório partilhado. Sua mãe, nem ninguém, mencionaram nada sobre o assunto, por isso ela sempre pensou que teria o seu cantinho de privacidade.


Como reação à sua voz súbita de surpresa, um dos maiores peluches da cama desfeita moveu-se.


E com o movimento súbito, Juliana sentiu a espinha arrepiar-se.


Um dos peluches estava vivo.


A enorme criatura humanóide ergueu a cabeça, movendo-a devagar na direção de Juliana, fitando-a com seus grandes olhos brilhantes que pareciam a seguir a cada movimento.


Era peluda e adornada de diversos tons azuis, de orelhas pontudas, focinho longo e uma mascara de ladrão, lembrando em muito o Pokémon Lucario, mas mais expressivo e com um sorriso bem alegre. Muitas das características do fato eram exageradas, tais como as patas rechonchudas e almofadadas que cobriam as mãos. Um destaque especial dava-se a sua longa e felpuda cauda de lobo, que conseguia ser maior que o fato inteiro.


Juliana recuou alguns passos, ainda processando o que estava ocorrendo.


– Um… Um… Um cão…


Ela nunca estava pronta para socializar com completas estranhas, muito menos viver com elas.


Ainda mais saber que a sua companheira de quarto era, literalmente, alguém que portava uma fatiota de cachorro.


Juliana estava prestes a dar meia volta numa corrida para fugir dali, mas Tamar agarrou a treinadora imediatamente, antes desta cometer uma loucura face àquela visão. Tentou-a acalmar, pois Juliana ficara mesmo alterada como era usual quando enfrentava seu maior medo.


O Krokorok abraçou-a com mais força, enquanto lágrimas começaram a escorrer pela face da treinadora.


– Quem conturba o território de Lord Lucas, o Lucario? Manifeste-se! Humana vulgar! – exclamou a criatura humanóide, ao pôr-se em pé, fora da cama. Sua voz forçava um tom galã.


Naquele novo ângulo, os peluches diversos enfileirados atrás de si pareciam formar um exército de cãezinhos como se ela fosse a sua comandante. No lugar onde esta estivera, era notável um jogo de tabuleiro com várias figuras derrubadas e peças soltas por cima de folhas de cálculo e dados.


Mas a confusão era tamanha na mente de Juliana que ela ainda não notara esse detalhe por cima das cobertas.


Por obséquio, Lord Lucas, o Lucario! Tira essa roupa, tira imediatamente – Tamar põe-se então a rosnar contra a estranha.


A figura entre os peluches ainda era portadora de bom senso, por isso, notou rápido o pânico da recém-chegada. Vendo que a situação era mesmo séria, de acordo com a reação furiosa do Pokémon que a acompanhava, decidiu que era altura de parar a brincadeira.


Tirou a cabeça do seu fursuit, pondo-a de lado, revelando um enorme tufo de cabelos negros cacheados.


– És a minha nova companheira de quarto?! – ela questionou entusiasmada, com um grande sorriso estampado na sua face, a olhando de cima a baixo.


Juliana queria negar e dar meia volta, fugindo dali o mais depressa possível, mas não podia, o senso de obrigação era mais forte, como também os braços do Krokorok que a envolviam e continham de correr porta fora.


Assim, fez sim com a cabeça, confirmando, ainda com lágrimas escorrendo e o corpo trémulo. Iria demorar a recuperar aquela visão.


– Lamento… Estava no meio de um jogo com meus amigos. – e ela apontou para o tabuleiro e os cadernos entre os peluches. Juliana ficou mais assustada ainda do que já estava.


Ela está falando com aqueles bonecos?…


 – Eu tenho muito medo do escuro, por isso sei bem como são as fobias… Dá-me só um momento! Já conversamos! – a estranha acrescentou.


Atirou-se então para a cama, enterrando-se no amontoado de peluches que a cobriam. Juliana arrepiou-se outra vez com a quantidade de réplicas quase perfeitas de vários Pokémon caninos ali expostos e espalhados. Era uma colecção de peluches impecável.


Tamar foi à cozinha, colocando um copo no microondas para depois entregar água quentinha com açúcar a Juliana, para ver se ela se recuperava daquele susto mais depressa.


A desconhecida era, de momento, a única presente, mas a torneira da casa de banho ainda podia ser sentida, logo ela não devia estar totalmente só. Sua cabeça de Lucario debaixo do braço ainda era um elemento muito assustador, mas vista sem aquilo na cabeça, a figura tornara-se apenas mais uma jovem vulgar.


Ao notar que a recém-chegada fitava a máscara intensamente, decidiu deixá-la na cama, escondida da vista dela entre toda a bonecada. Depois agarrou no seu Rotom Phone. Estava gravando alguma coisa com a câmara do telemóvel, assim reparou que ela estava em direto com mais umas quantas pessoas.


– Lord Atticus, senhor de tantos títulos e tantos nomes. Mestre de todas as enfermidades... Infelizmente terei que abandonar nossa demanda…


Juliana ouviu um tom de uma voz masculina pronunciando frases recheadas de palavras caras que não conseguiu decifrar, e logo depois de mais umas trocas breves de palavras formais, a videochamada foi desligada.


Um Croagunk com uma fatiota de Lucario, semelhante à da sua treinadora, ao lado de um Riolu genuíno, moveram-se entre os peluches e fizeram Juliana soltar mais uma gota de suor por não ter notado neles antes de tão bem camuflados estavam, porém, a treinadora rapidamente os colocou de volta na Pokéball para ficarem as duas mais à vontade, agora que o jogo fora dado como terminado.


– Desculpe a desarrumação… Não esperávamos que o lugar da Carmine fosse preenchido assim tão cedo. – e depois apontou para a outra cama do cómodo. – Aquela é a cama que era a dela. Espero que seja confortável para ti! Já agora, espero que não te importes de dormir com luz ligada. Eu não consigo dormir sem minha luz de presença.


Depois de entregar a água a Juliana, que bebeu em segundos, com a mão a tremer, o Krokorok foi o primeiro a avançar para explorar o território com precisão, com cuidado em cada uma das suas passadas para não tropeçar nos peluches espalhados por todo o pavimento.


A desarrumação que existia no restante cómodo era algo que ele conseguia organizar em menos de uma hora. Pisar algum dos bonecos podia fazer Juliana entrar em pânico outra vez, e isso era uma ideia desagradável, por isso, ele ajuntou o máximo que conseguiu, apesar do tempo estar a passar, entregando á proprietária destes.


– Obrigado pela ajuda, meu caro. Mas deixe estar, meu exército é minha responsabilidade. – comentou a rapariga, puxando seus peluches para debaixo da sua cama.


Tanto o Krokorok como Juliana carregaram, então, suas coisas naquela direção agora com o caminho mais livre.


A cama que agora seria a sua ficava encostada á parede da casa de banho, e ela conseguiu ouvir distintivamente o som de água a correr no outro lado, calculando que alguém estava a tomar um duche demorado. O aroma delicioso do quarto devia emanar de lá, sendo o gel de banho que esta utilizava a pairar no ar.


Não existia divisão com paredes, então, algo que, mal por mal, lhe agradou no espaço, foi a forma como a aquela cama parecia mais distante em comparação à outra.


A cama de Carmem ficava encostada à parede das janelas. Uma das janelas situava-se mesmo adjacente, e esta, sentada entre as cobertas, fitava o exterior, toda sorridente. Organizava suas figuras e utilizava o parapeito como uma espécie de mesa cabeceira onde guardava outros pertences seus e um abajur em formato de Ninetales.


– Chamo-me Carmen. – e ouviu então ela a dizer. – Já que somos colegas de quarto, acho que precisava de me apresentar.


– Carmen… Carmine?... Mas ela não disse que essa tal Carmine tinha ido embora? Primeiro falou com os peluches, agora isto… Ela só pode ser maluca… – Juliana murmurou, pensando se estava ou não a raciocinar bem o ocorrido.


– Desculpe… Eu não percebi o que disseste. – ouviu a voz dela, outra vez.


Encolheu os ombros de súbito ao se aperceber do que dissera, e tentou se corrigir.


– J… Juliana!… Meu nome é Juliana… P… Prazer… – apresentou-se, gaguejando. Ao lado da treinadora, Tamar realizou uma vénia educada. – E… e este Krokorok aqui é o Tamar…


– Dom Tamar! Já notei que ele é um Pokémon a quem se deve respeito! Ai ajudando-te com a bagagem e o pessoal da Academia deixaram que tu andasses com ele fora da Pokéball nos corredores!… Mas repteis não fazem muito o meu tipo… Sou mais para raposinhas fofas e cãezinhos musculosos.


Tamar não se mostrou ofendido, pelo contrário, sorria face a tal simpatia. Pelo menos a jovem não aparentava ter vergonha de seus interesses.


– Reparei… Até demasiado… – a recém-chegada murmurou, analisando os movimentos da outra e todos os peluches que lhe cobriam a cama.


Carmen arrumou então sua cabeça de Lucario numa caixa no parapeito da janela com o máximo dos cuidados possíveis, e começou a despir as restantes peças do fato num movimento um tanto lento e sedutor.


Juliana corou.


Precisava de continuar a arrumar suas coisas, mas não conseguiu desviar o olhar dos gestos da estranha. A lingerie dourada que ela portava por debaixo do fursuit contrastava elegantemente com sua pele negra, corpo bem definido e seios desenvolvidos. O material fino contava com padrões estrelados em renda, que realçavam imenso os seus lábios carnudos e olhos castanhos, os deixando numa tonalidade mais cor de mel.


– Fica à vontade, Juliana, nós não mordemos. Quer dizer… Eu pelo menos não. – e ela soltou uma gargalhada, se referindo a sua colecção de peluches. – Eu sou cão que ladra, mas não morde. Meus peluches mordem se eu não os abraçar quando estou dormindo.


A recém-chegada abriu a boca para dizer algo, mas não conseguiu. Sentia-se demasiado constrangida com tudo o que estava a viver para falar, muito menos era o tipo de pessoa de fazer amizades e começar diálogos por iniciativa própria. Ver alguém com tamanha beleza escondendo-se numa fatiota de cão era uma novidade perturbadora que dificilmente se esquece.


Infelizmente, a outra notara sua reação.


 – O que se passa? Pareces um Fuecoco de tanto vermelha que estás. Tem calma. Somos só mulheres aqui. Se estás assim tímida com minha presença então espera só quando conheceres as nossas novas colegas! Meus novos peluches e figurinhas de RPG devem chegar na próxima semana!


Saber aquela informação não era propriamente o que Juliana queria ouvir e muito menos a acalmava.


Notara a ansiedade da recém-chegada, por isso, queria que esta se sentisse o mais confortável possível para ganhar confiança, porém, Carmen não era propriamente a jovem melhor para o serviço. Pode-se dizer que ela era do género tagarela, semelhante à recepcionista da biblioteca da Academia. De facto, ambas tinham uma fisionomia parecida.


– Há uns dias atrás chegou umas coisas, estão ali guardadas no armário e devem ser as tuas. Não sei se vais querer organizar melhor à tua maneira. Mais logo depois das aulas, podemos dividir tarefas com mais calma.


Tamar continuou a escarafunchar na bagagem, a arrumar o conteúdo em várias gavetas existentes debaixo da cama, gavetas estas que possibilitavam um maior espaço para arrumação no dormitório. Deixou o uniforme e coisas da escola por cima das cobertas, para não passarem esquecidos.


Enquanto isso, Juliana posicionou na sua mesa cabeceira algumas pedrinhas e conchas decorativas, velas aromáticas, plantas de plástico e uma suculenta falsificada que emitia um cheirinho bom a morango, um pequeno boneco de Cyclizar, seu diário para anotações de músicas, com uma nota musical na capa encarnada, e uma estátua bem pequena de Arceus – não soube bem o porquê de ter uma estátua religiosa entre os pertences que decidiu trazer, talvez algo de sua mãe, mas tinha certeza que em tal ambiente estranho sentia-se mais confortável perto da energia protetora daquele Pokémon.


Carmen notou a maneira como Juliana pareceu relutante, e, num impulso, virou-se de barriga para cima. Com os pés começou a bater na parede, numa área cuja madeira já tinha a marca de uma grande amassadela de pontapés.


– RIRI! ESTÁS QUASE? – questionou, bem alto, ao ritmo das suas pancadas, e a outra voz respondeu em tom abafado. – A minha colega nova quer privacidade e precisa da casa de banho para mudar de roupa!!!


– N… Não precisa… – Juliana gaguejou como resposta, pois não queria incomodar nem apressar ninguém.


E depois de acabar de organizar sua mesa cabeceira, lá dirigiu-se ao armário.


O grande armário do quarto era composto por uma porta deslizante e cheirava a madeira acabada de forjar. Arrepiou-se com os símbolos neste armário expostos, mas não eram mais assustadores que cães. Juliana, mal o abriu com um solene empurrão, notou três grandes sacos pretos e alguns malotes numa outra divisão à parte. Calculou ser o que sua mãe enviara para a Academia com seus pertences.


Um dos sacos chamou-lhe a atenção, pois a roupa do interior estava desarrumada, ao contrário dos outros dois sacos, cuja textura deixava claro os bens bem dobrados, e ela bem sabia que sua mãe não enviaria qualquer coisa daquela maneira.


– O que será que ela enviou nele… – murmurou, com curiosidade.


Por culpa da sua timidez face à desconhecida, Juliana começou a explorar o interior do saco ali mesmo. Apesar da desconhecida conseguir ter um pouco de vislumbre sobre seus gestos, a presença das paredes do armário transmitiam-lhe uma segurança maior em seus gestos.


Porém, essa sensação de segurança não foi douradora, pois ela repara, escassos minutos depois, que o saco era cheio de roupa interior.


Mas não uma roupa interior qualquer.


– MÃE! QUE MERDA É ESTA???? – acabou por soltar.


Tinha uma cueca fio dental na ponta dos seus dedos.


O saco era carregado com aquele tipo de peça intima, desde os mais discretos dentro do género, até os sensuais em renda super fina que mais lembravam linhas de costura.


Depois engoliu a seco, arrependida por seu grito impulsivo, que chamara a atenção da companheira de quarto, que logo notou o pequeno desentendimento.


– Oh! Esse é o meu saco da roupa suja! Tenho mesmo que a mandar para a lavandaria…


– D… DESCULPA! EU JURO QUE EU NÃO VOLTO A TOCAR NELE! – Mal ouviu as palavras, Juliana largou aquele saco imediatamente, ficando vermelha de uma ponta a outra. A rapariga soltou uma gargalhada ao ver a sua reação.


– Eu que peço desculpa pelo mal entendido, não me soube explicar, as tuas coisas são as dos malotes pretos!


A jovem começa a apalpar então o interior do armário às cegas, mas logo dá pela presença dos malotes enviados para a Academia semanas antes, que tinham um cheiro a novo, apesar da energia familiar que emanavam.


Porém, quando abriu, seu desagrado se manteve, ao notar uma lingerie por cima das restantes mudas de roupa, exposta como se a mesma estivesse num museu.


– Porquê mãe, porque estás fazendo isto comigo… Andaste fumando cristais Terastral? Porque estás alucinando mais que os exploradores da Cratera de Paldea e seus bichos imaginários... – Juliana resmungou, escondendo a peça de roupa vergonhosa entre as outras todas.


              O Krokorok soltou um gargalhada. Juliana encarou-o com desdém.


              – Não te rias, Tamar. Sinto que a partir de agora só vou passar vergonha alheia aqui. Já agora, nem penses em coscuvilhar o que não é nosso.


              Deu uma vista de olhos no interior, apesar de seu corpo ainda sentir medo do tipo de coisas que podia encontrar nos malotes.


Um dos malotes tinha algumas peças de roupa e pijamas novos que complementavam o que ela preparara em casa naquela manhã e ainda bastante comida enlatada, tanto para ela como para seus Pokémon, além da tal lingerie. Juliana procurou esconder ainda mais aquilo num compartimento secreto, pelo menos enquanto não resolvesse uma solução para se livrar daquilo.


O outro era carregado de bens essenciais comuns que os treinadores levavam em qualquer jornada pelo mundo Pokémon: escova e pasta de dentes, Pokéballs vazias, pilhas, lanternas, um rádio, um saco cama e uma tenda, caixa de primeiros socorros, medicamentos e potions, pensos higiénicos em fartura, cadernos escolares e folhas brancas de reserva, caso seu material escolar acabasse mais cedo do que esperava, entre muito mais.


Ao início não compreendeu os motivos de tudo aquilo, mas, mal por mal, confiou nas decisões da sua mãe, afinal, ela já frequentara a Academia e sabia como o ensino por ali funcionava, e preparara tudo ao mais profundo dos detalhes.


Juliana levou então os malotes até a cama, os deixando nas gavetas com o auxílio de Tamar. Podia estar a exagerar, mas deixou suas coisas todas organizadas de modo a se certificar que ninguém tocaria nestas. Caso alguém fizesse uma partida, ela saberia, pois decorara o posicionamento de cada objeto ao mínimo centímetro.


              Carmen ainda encontrava-se na cama de barriga para cima com os pés suspensos na parede, a fitando com curiosidade de cabeça para baixo.


              – Okay… Okay… Eu viro a cara. – ela disse, quando notou que Juliana também a fitava, enquanto mantinha o pacote do uniforme em mãos. – Tem um espelho no armário se precisares de usar.


              A jovem respirou fundo. Teria que levar com o observar da desconhecida por muito que isso a desagradasse. Arrastou-se para a extremidade mais longínqua da cama, e certificou-se que a outra tinha seu olhar fissurado no Rotom Phone, e não nela.


              Despiu devagar o que portava, arrumando bem dobrado no interior das gavetas. O uniforme de Verão da Academia era composto essencialmente por uma camisa branca de manga curta e calções roxos. Tamar trouxe-lhe o espelho para a auxiliar.


O Krokorok saltou para cima da cama, ficando atrás dela, e ajudou-a a esticar seus fios castanhos, formando com estes uma longa trança que descia na lateral da face. Juliana enterrou um chapéu de palha e endireitou melhor seus cabelos depois do pequeno serviço de seu cabeleireiro pessoal.


Minha treinadora! Com esse uniforme excedes os níveis de beleza! – o Krokorok elogiou-a com um grunhido sorridente.


Até que gostara do novo visual, pois sentia que aquele traje lhe assentava muito bem, apesar de preferir imaginar-se com o laranja da Casa Naranja e não o roxo da Casa Uva.


– O… Obrigado meu Tamar. – Juliana respondeu-lhe, tímida, como quem entendera sua língua.


Depois deu-lhe um beijo na ponta do focinho, como agradecimento pela ajuda. O Krokorok voltou a sorrir, abraçando carinhosamente a treinadora.


Só existia um pequeno problema, que ela esperava que ninguém reparasse. Se bem que tal era impossível, tento em conta a forma como os jovens podiam ser atenciosos e chatos com praticamente tudo.


Juliana tinha sua depilação mal feita.


Era um detalhe difícil de engolir. Sempre preferiu portar calças e sempre teve preguiça com certos assuntos de beleza e higiene pessoal, portanto, desejou imenso ter que usar as calças do uniforme de Inverno, mas a recepcionista informara-a do tal atraso da encomenda dos uniformes das restantes estações. Teria que levar com aquilo.


– Achas que alguém vai reparar, Tamar? – murmurou para seu Pokémon.


O Krokorok entendia pouco sobre os preconceitos dos adolescentes, mas algo ele sabia bem.


O importante é te sentires confortável com a roupa nova. – grunhiu para ela.


A jovem respirou fundo, e puxou as meias mais para cima de forma a ficarem meia perna, tentando disfarçar o máximo possível os pequenos pelinhos negros que despontavam em sua pele clara. Até gostara do conforto do uniforme, só era uma pena sentir as pernas tão nuas.


De um momento ao outro, ouviu a outra assobiar.


Um assobio longo e demorado, a deixando completamente sem jeito, pois se apercebera que ela estava a olhando.


– Ficas bem bonita com o uniforme, Juliana!


– O… Obrigado… – agradeceu o elogio.


– Não te importes tanto com a depilação, ela mal se nota – Carmen sorriu. – Só toma atenção a essa barriguinha, dá para ver que tens um quadril bem largo. Não estás lá muito em forma.


Juliana mudou um pouco sua expressão após ouvir aquelas palavras. Preocupara-se tanto com a depilação mal feita e a outra vindo do nada com um pequeno problema paralelo.


– Bom, eu posso ser um pouco pesada mas eu acho que não sou assim tão gordinha… – respondeu, trémula.


– Não me leves a mal, miúda. Tu és linda, e podes ter um bando de rapazes atrás de ti beijando-te os pés se fosses um bocadinho mais magra, só isso. Acredita no que te digo. Estás cheia de estrias e esses braços e essas coxas são bem volumosos, não atraem ninguém.


Carmen até que se esforçava em ser gentil, e, de facto, seu corpo não se comparava em nada ao de Juliana, mas a recém-chegada, que não estava nada acostumada a levar com elogios e criticas, logo levou aquele diálogo para o pior lado. Em instantes, começou a sentir que aquela tal Carmen já não era tanto agradável como pareceu com suas frases mansas ao inicio.


– O que sabes de minha vida amorosa? Que engraçado tu ai, que eu acabei de conhecer, preocupada com a minha saúde e massa corporal e ali a cozinha cheia de comida instantânea. Não sou a única que tem que ter cuidado com alimentação. – Juliana soltou, com tom ríspido.


– Oh… Calma amiga. Só estava a tentar te ajudar para cuidares mais de ti e dares uso a essa beleza física. E aquilo ali é um lixo que estou guardando para uma amiga minha, não é meu… – defendeu-se, virando a cara com uma expressão magoada.


Tamar olhou a treinadora com repreensão, dando-lhe uma cotovelada.


Mesmo que a outra não estivesse bem certa no modo como o dizia, Juliana, com aqueles comportamentos ríspidos face a estranhas, não teria muitas mais amizades assim tão cedo e só contribuiria para um mau ambiente naquele quarto.


Foi quando sentiram a água deixar de correr.


Uma jovem muito alta e musculosa apareceu pouco tempo depois, embrulhada numa toalha de banho.


– Carmen! Obrigado por me deixares tomar banho aqui… As coisas estão mesmo complicadas com a canalização lá em casa… Aquela fuga está mesmo a deixar meus pais doidos… – Juliana ouviu uma voz doce.


Toda a cena seguiu-se em câmara lenta.


O aroma a gel de banho e champô intensificou-se no ambiente. Seu corpo suado encharcava o chão a cada uma das suas passadas. Os seus longos cabelos caíam pelas costas como fios de prata, embelezando todas as curvas do seu corpo. Juliana ficou outra vez vermelha de constrangimento, pois não estava acostumada a tanta intimidade, e se já considerava Carmen de lingerie bonita, aquela nova presença era a testemunha de real perfeição.


A autora da voz doce, deixou sua toalha de banho cair, usando uma das extremidade para limpar um ouvido. Logo depois notou os olhos esbugalhados da rapariga, a fitando.


              – Oh… És a nova colega de quarto da Carmen? – questionou com um sorriso.


Juliana, que era baixa de altura e parecia uma formiga ao lado de Nemona, não aguentou a pressão da presença daquela nova figura colossal. Devia ser a adolescente mais alta e musculosa que ela já conhecera em toda a sua vida, tanto que sua a cabeça quase atingia o teto do quarto.


Ver o corpo húmido dela de perto foi a gota de água.


Distraidamente, olhou para o relógio do seu Rotom Phone.


Apesar da má educação, Juliana agarrou na mochila, na guitarra e todas as coisas que precisava, e puxou pela cauda de Tamar, o empurrando, quando o crocodilo menos esperava.


E sem mais trocas de palavras e apresentações, correu para fora, deixando as duas raparigas sozinhas.


Apesar da pressa para fugir dali, não iria esquecer aquela sua primeira experiencia no dormitório numero onze assim tão cedo.


A primeira de muitas mais que surgiriam na sua estadia, pois mais tarde ou mais cedo, ali dentro ela teria que voltar.



Tamar olhava para a tela do computador, que ainda estava no sistema de configuração. O crocodilo encontrava-se de má cara, tanto pelo ato mal educado da treinadora, como por não entender nada do que estava a ocorrer no computador. Se o Krokorok, sempre apreciador de bons modos, fosse humano, já teria, de certeza absoluta, denunciado aquele grupo de alunos pelo dano causado no equipamento.


Precisava mesmo do mapa para saber para onde se dirigir e rever os passos. Ao seu lado, Juliana mostrou-se tensa, com as mãos apertando firmemente a correia da sua guitarra e alças da mochila, fitando intensamente a porta do dormitório, como quem esperava que alguém de lá saísse para a atacar e julgar. Deixar a guitarra no quarto sem sua supervisão era algo que Juliana nunca faria, apesar disso deixar suas costas mais carregadas.


– Tamar, despacha-te, ainda vamos chegar atrasados… Não consegues resolver isso?... Maldita hora que aceitei ficar num dormitório. Preferia acordar cedo todos os dias do que levar com isto…


Tamar estava cansado, e deu-lhe um pequeno golpe com sua cauda para ela repensar nos pensamentos. Juliana quase se desequilibrou quando sentiu a pequena chicoteada nas suas pernas. Depois encarou os olhos mal-humorados do crocodilo.


Paciência é uma virtude, minha treinadora. – resmungou ele. – É apenas o primeiro dia. Vais gostar dos restantes.


De vez em quanto, uma ou duas pessoas atarefadas atravessavam o corredor desértico, mas nenhuma delas parecia disposta a ajudar, pois andavam com pressa naquele início de rotina. Isto decepcionou profundamente o Krokorok, pois ele sempre valorizou a educação e mesmo que esticasse o braço, pedindo auxilio, as pessoas passavam por ambos sem olhar sequer nos olhos avançando a passos largos.


Tamar continuou a tocar na tela para ver se resolvia o assunto por conta própria, mas a coisa parecia deixar tudo pior, pois mais e mais números formavam-se na ponta dos seus dedos.


A primeira reação de Juliana foi encolher os ombros e ir ao Rotom Phone.


Tinha combinado um encontro com Nemona na véspera, mas ela não lhe respondia a mensagem alguma, e ainda não a tinha avistado entre as pessoas que por ela passavam, apesar de também não lhes ter prestado muita atenção.


De qualquer modo, se Nemona passasse por ela, ela saberia.

 


Nemona!


Descobri que tenho uma colega de quarto.


E foi assustador! Ela adora CÃES!


Sempre é para nos encontrarmos?...


Não te vi até agora… Onde estás?


 

Foi o que escreveu e mandou em mensagem. Mas nem isso a tirou do silêncio, e assim, insistiu um pouco mais.


 

Afinal, quando podemos nos encontrar?


Estou perdida. Esta escola é enorme e confusa.


Onde fica o Gabinete do Diretor Clavell??


Consegues me levar depois até lá??...


Eu pago-te depois com um combate!


VAMOS COMBATER HOJE???????????


 

Continuou a mandar as mensagens descontroladas, nervosa, com tudo o que lhe vinha à cabeça para a tentar invocar, mas logo desistiu e voltou a encarar o Krokorok a tentar concertar o equipamento.


Foi quando sentem uns sininhos ecoarem ao fundo da ala.


Juliana virou a cara.


Os tais jovens que avistara mais cedo estavam a sair do seu esconderijo.


Pareciam envoltos em euforia, abraçando-se, batendo-se, apalpando-se, dando pontapés e socos uns nos outros, puxando cabelos e proferindo ofensas altas e gargalhadas, dando pancadas fortes com a porta do local e pressionando seus corpos contra a guarnição da porta e a própria parede.


– Que crianças… – Juliana suspirou, tentando ignorar aquelas brincadeiras ridículas.


Aquela foi a primeira vez desde que chegara na Academia, em comparação à antiga escola que frequentou, que reparou na falta de auxiliares nos corredores. Um funcionário aqui e ali podia ajudar a manter a ordem e resolver problemas, como o caso do equipamento danificado, mas tal não era o caso.


Juliana já sabia bem sobre adolescentes, o suficiente para saber como eles se comportavam, principalmente quando se reúnem em grupinhos. Assim, Juliana acredita que o melhor remédio a ser tomado face aquele tipo de pessoas é passar despercebida, e tentou manter-se bem imóvel, encostada à parede, com a cabeça baixa, para ver se cumpria essa ideia quando eles passassem por ela.


Foi quando notou o distanciamento do seu Krokorok.


– Tamar! – Juliana chamou por ele, mas o chamamento foi em vão.


O Krokorok às vezes conseguia ser bem pavio curto, e toda aquela confusão matinal estava a abusar sua paciência, apesar de ser adepto da calma e passividade. Estava na altura de cortar o mal pela raiz, resolver o mapa e prosseguir caminho de uma vez por todas antes que a treinadora chegasse atrasada à aula.


O grupo, composto por uns cinco adolescentes, parou as brincadeiras que estavam a fazer, fitando o Krokorok com curiosidade. O crocodilo olhava para eles, frente a frente, e apesar da má disposição, não baixou seu nível de educação ao nível deles e realizou uma vénia educada.


– Olá, amigo crocodilo. O que desejas? – começou um dos adolescentes, com tom surpreendentemente agradável tendo em conta o estado eufórico de todos ao inicio.


Meus ricos colegas, será que podiam resolver o problema que fizeram no computador da Academia? – grunhiu o Krokorok. – Os vossos atos são uma ação grave contra este estabelecimento de ensino. Vocês terão uma penalização grave.


Todos eles picaram os olhos.


– É… Acho que ele está perdido. – e depois um deles notou Juliana ali perto.


Afinal, uma rapariga com uma guitarra às costas, encostada à parede, de ombros encolhidos, num local parcialmente deserto, era um alvo fácil de atenções.


– Hey! Novata! Este Krokorok é teu?


A jovem engoliu, trémula, procurando a melhor resposta para dar, apesar de qualquer coisa que lhe viesse à mente ter potencial de ser motivo de chacota. Aproximou-se devagar, pois não suportava adolescentes lhe olhando de cima a baixo.


– É… É sim… Estamos… Perdidos… – ela admitiu, sem conseguir esconder o que pensava.


O grupo entreolhou-se, a cochichar. Tamar manteve a pose e aguçou a audição, desconfiado, pois foram eles a estragar o computador e o Pokémon o sabia muito bem, mas mais ninguém os abordara até então. Mal por mal, só eles podiam ajudar.


– E porque vocês… Não usam o computador? – um deles virou-se por fim e questionou, a segurar o riso, pois sabia muito bem o que todos eles tinham feito.


– Está avariado… – Juliana respondeu, ao fitar mais uma vez o ecrã daquele equipamento e toda a barafunda de dados que o mesmo exibia.


– E para onde vocês queriam ir? – um dos outros jovens insistiu na conversa.


– Onde será que fica a porcaria do Gabinete do Diretor Clavel… – A jovem murmurou para si, sem saber ao certo se o devia dizer mais alto.


Para sua infelicidade, o silêncio do corredor deixou sua voz bem implícita nos ouvidos de todos.


– O Gabinete?... Mas é tão fácil ir para lá! – exclamou um deles, olhando os companheiros, que continham as gargalhadas interiores cada vez mais para si.


Juliana fitou-o, com uma expressão tanto desconfiada como a do seu Krokorok. Mas era a única pista que de momento tinham. O rapaz parecia estar com dificuldades a raciocinar, apesar de ter comentado que era fácil lá chegar, não lhe queria dizer o caminho certo. Mas os amigos lhe deram uma ajudinha bem disfarçadamente.


– O Gabinete fica na Ala Turquesa! – mentiu um outro,  olhando a guitarra de Juliana.


A Ala Turquesa tinha destaque para a sala de música da orquestra da escola e a sala de artes. Não era uma mentira lá muito boa enviar esta jovem perdida que amava música para lá, mas foi o que ocorreu no pensamento do grupo e, de certeza absoluta, a iria atrasar. Não devia ter ninguém por lá, pois as aulas nesta Ala só costumavam ser realizadas durante a tarde.


– Humm… Será que vai ser preciso descer ou subir mais escadas?... – Juliana refletiu.


– É só voltar à biblioteca, seguir sempre em frente, é a porta com torniquete que fica depois da porta que vai dar aos Arquivos, a porta que vai dar aos Arquivos é fácil de identificar porque é a única que não tem torniquete. E não te preocupes, é tudo neste mesmo andar.


– Ala Turquesa… Porta… Arquivos… Acho que vou chegar lá… – Juliana falou, tentando memorizar as instruções que recebera, e ao mesmo tempo desejando sair dali o mais depressa possível. – Obrigado... Vamos lá, Tamar.


Tamar sacudiu a cauda, forçando um tom galã para também agradecer o grupo, e seguiu a treinadora desorientada e seus passos acelerados, que apertava a correia da sua guitarra com tanta força que a mão até avermelhada ficou.


O diálogo com o grupo de jovens tinha corrido melhor do que Juliana imaginou, mas o Krokorok tinha um mau pressentimento, e seu instinto raramente enganava-se.


Juliana estava sob stress e queria tanto se despachar que acreditou nas palavras do grupinho, e foi difícil chamar a atenção dela para a possível mentira. As horas estavam a passar, e já bastou faltar dois dias de aulas por culpa da sua irresponsabilidade.


Ela não queria chegar tarde no terceiro dia, de maneira alguma.


Ela nem podia chegar tarde, o que é diferente.


Quando ambos Pokémon e treinadora desapareceram no final do corredor, o grupo desabou nas gargalhadas.


Tantas que as lágrimas escorreram compulsivamente dos olhos e as barrigas doeram.


E quando pararam de rir ao final de meia hora, o assunto do dia intensificou-se no diálogo que pairou entre todos nos longos minutos que se seguiram, triunfantes.


– Eu não acredito! Aconteceu mesmo! Maior partida do século! Pessoal!


– Vocês viram as pernas dela? Será que aquela parva peluda vai mesmo até lá?


– Ela podia perguntar à recepcionista da biblioteca instruções ou ver os outros computadores. Que burra!... Assim ela vai ficar ainda mais perdida do que já estava!


            – Estão preocupados com ela? Eu cá já não quero saber mais dela. Ganhamos o dia e ela não é mais nosso problema. Vamos mas é deixar de perder tempo aqui e caçar outros novatos idiotas!

 

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