Posted by : Shiny Reshiram 20 de nov. de 2024


– Olhem! Ela está a se mexer! – Ouviu uma voz.


Podia estar a sonhar, mas era a voz do Slaking que conhecera no tal barracão assustador, que para sempre ficaria conhecido por Barracão do Baleeiro, devido ao escândalo que a morte dos Cetitans e outros Pokémon ali causara.


A notícia não tardou a correr Zapapico, e todos os responsáveis foram presos pelas autoridades locais. Mais de quinhentos litros de combustível à base de resíduos orgânicos foram apreendidos. Apesar disso, sem dúvidas que muitos envolvidos conseguiram escapar, e o incêndio ficaria para sempre na memória daquela gente de tal comunidade, que viu o céu negro e pressentiu todos os dias o cheiro a podridão.


– Ei, senhorita Tinkatuff, consegues ouvir-me? – Falou uma voz. Esta, a fada não conhecia de lado algum, junto com a outra que se seguiu.


– Fala mais baixo, Cleo. Ela deve estar com uma dor de cabeça depois de tudo o que ocorreu, tadinha…


– Calar? Jade, odeio quando me mandar calar. Eu ainda tenho voz ativa aqui dentro!


– Eu não te mandei calar. Só disse para baixares um pouco mais a bolinha aí por causa da situação frágil de nossa convidada…


– Baixo? Mas eu estou falando baixo!


– Não. Não estás. Sabes que, às vezes, falas alto demais.


– Meninas. Podem parar de discutir, por favor? Ela está abrindo os olhos. – o Slaking rebateu, envergonhado pelo comportamento das duas. – Será que ela tem fome? Vai buscar comida, Cleo, sê mais útil e incomoda menos.


E ela lá foi, a resmungar.


A Tinkatuff abriu os olhos lentamente. Seu corpo estava cheio de hematomas. O braço encontrava-se imóvel, fixado por uma faixa branca e espessa que lhe impedia os movimentos, mas sentia-o melhor, muito melhor. Ao seu lado, como uma recordação de toda a vida, sua pá se mantinha, imóvel, por cima das cobertas. Pelo menos, ela fora limpa por sabe-se lá quem antes de ali exposta, mas seus arranhões ficariam para sempre gravados no cabo de madeira.


Cicatrizes… Gosto disso. Espero que também tenha ficado com algumas.


Tentou se erguer. Mas não conseguiu. Era uma cama confortável de um material que cheirava bem. Muito bem. Um aroma doce, constante, lembrando um mar infinito de Oran Berries suculentas.


Ao pensar em berries, seu estômago começou a roncar alto de imediato, mas logo acalmou quando um dos Pokémon presentes no espaço entregou-lhe uma taça cheia de uns quadradinhos castanhos, pequenos, conhecidos por ração para Pokémon, bem apetitosos. Faminta, pegou nestes aos punhados e enfiou-os boca abaixo. Duros ao início, mas muito saborosos ao longo do mastigar, pois derretiam a cada dentada numa crocância efervescente.


Não se comparava a nada do que ela já comera em toda a sua vida. Fora como um manjar lhe servido diretamente pelos deuses. Aqueles pedaços deviam conter nutrição completa, pois logo na primeira dentada, a energia do seu corpo fora revigorada.


Aconchego…


Que bom que era recordar o que era aconchego.


Saciada, foi nesse instante que se lembrou de tudo o que ocorreu, e deixou-se desabar em lágrimas.


– Eu… Eu morri?...  Isto é o reino de Arceus?


– Não, garota. – O Slaking tomou uma aproximação, com uma caixa que tinha um frasquito de xarope e uns quantos comprimidos na palma da mão. – Mas agradece a Arceus por estares viva. Agora que já te alimentaste, está na altura da medicação. Jade, dá-lhe aquele copo com água que está ali em cima.


E assim a outra Pokémon obedeceu, buscando o copo com água que estava posicionado numa mesa logo à frente. A Tinkatuff aceitou o copo com água de bom grado, reparando na outra de perto. Ela tinha um ar semelhante aos dos humanos, pois se tratava de uma Tsareena de expressão simpática.


– Agora, amorzinho. Bebe e engole isto. Vais sentir-te muito melhor. – A Tsareena falou em tom doce, pegando num lenço de papel para também lhe entregar. – E enxuga essas lágrimas. Sei o quanto custa… Mas… Já passou… E agora deves-te focar somente na tua recuperação.


Bebeu, e cada gole do líquido divino conseguiu a acalmar quase que milagrosamente. Os medicamentos também transferiram uma leveza quase imediata à sua tristeza. As lágrimas desapareceram, enxugadas pelo material macio entregue pela outra, consoante as instruções desta, pois ela lhe teve que explicar de modo breve como o lenço funcionava entre cada uma das outras coisas. Na natureza da montanha, nada daquilo existia.


Desejou questionar mais coisas, mas por hora, não o fez.


Reajustou o corpo nas cobertas e no travesseiro, reconhecendo o facto de estar a ser ajudada por Pokémon tão gentis.


– Obrigado… – Foi tudo o que conseguiu dizer, antes de, abraçada a sua pá, ser inundada por uma sensação súbita de tranquilidade, que a fez voltar a adormecer.



Dormiu toda a noite. Dormiu como uma pedra. Há anos que ela não tinha um sono tão reparador como aquele. Ela podia se acostumar facilmente a acordar todas as manhãs assim.


– PEQUENO ALMOÇO!


Uma pena que o seu despertador não fora o melhor. De qualquer forma, sentiu-se bem-disposta e revigorada.


Sentou-se na cama, esfregou os olhos ensonados. Para sua surpresa, não se encontrava sozinha.


– Cleo, olha o que fizeste! Acordaste-a! Quantas vezes tenho que dizer para falares mais baixo!


– Mas eu estou CHEIA DE FOME!


– Vocês as duas vão começar a discutir outra vez?


Desta vez, a Tinkatuff conseguiu ter um vislumbre da Pokémon barulhenta que acompanhava a Tsareena e o Slaking. Uma avestruz conhecida por Espathra encontrava-se a caminhar de um lado a outro, com sua própria barriga a roncar em alto e bom som.


– Ena, ela já acordou. Significa que já podemos ir comer? – O entusiasmo da Espathra acabou por arrancar um sorriso da fada. – Tem bolo de Red Velvet!


O gorila encarou a fada.


– Tens fome? Consegues ir sozinha até a sala de jantar?


A Tinkatuff acenou, com passos vagarosos, elevou-se da cama. Não precisava de ninguém para a carregar no colo, sendo que tal não passava de uma ideia bem desagradável para ela. Sentiu uma pontada de pena ao abandonar aquele sítio tão confortável, mas, tal como a avestruz, também acordara faminta.


Foi guiada pelos três Pokémon, indo atrás deles e tomando atenção àquele lar. Os habitats dos humanos eram cheios de coisas esquisitas para ela, pois era a primeira vez que estava dentro de uma casa, apesar de que, no geral, aquela casa era como qualquer outra casa humana de Zapapico. Quando o Slaking, a Espathra e a Tsareena adentraram a sala, ouviu-se vozes humanas a comentarem entre si.


Ela está mesmo com um óptimo ar. – Ouviu-se uma voz feminina, cheia de alívio.


Sim, vai recuperar rápido e a operação correu bem no Centro Pokémon. – Disse outra, também feminina.


Podia ter ficado melhor se não a tivesses atropelado. – Um tom masculino cortou o ar de modo trocista.


HEY! Ela é que não parou de correr no meio do caminho e bateu no carro! Eu travei a tempo! – Defendeu-se uma outra voz, esta também com uma tonalidade masculina.


Quatro seres humanos estavam presentes. Dois homens e duas mulheres já se serviam, trocando bolinhos, pedaços de frutas aleatórias de ar apetitoso, pão, torradas, folhados de salchichas, e uns quantos cafés que recheavam o local com um aroma bem agradável.


A Tinkatuff reconheceu as mulheres. Eram as mesmas humanas que a tinham salvado lá no barracão. A que tinha uma argola dourada na orelha e cabelo curto aproximou-se dela, ajoelhando-se para coincidir com o tamanho da fada em plena igualdade.


Eu capturei-te quando estavas inconsciente. Foi a maneira mais rápida de te carregar. – Começou a dizer. Sua voz era doce, e transmitia uma serenidade surreal. – Vou cuidar de ti enquanto estiveres debilitada. Depois, voltarás à natureza, se tal for a tua vontade, é claro.


A Tinkatuff fez uma cara esquisita, e a humana entendeu logo o que tal expressão sugeria.


Não te preocupes, ninguém aqui te vai fazer mal. E as pessoas horríveis que te maltrataram serão punidas. A maioria já foi a julgamento neste preciso momento.


As autoridades Paldeanas já foram informadas do sucedido. Estamos atrás dos responsáveis pela organização. – Falou um dos dois homens, e, nesse instante, a Tinkatuff notou como estes carregavam uniformes alusivos aos tais carros policiais que haviam ao longo do trilho. Afinal, os dois eram policiais chamados ao local, e um dos automóveis lhes pertenciam. – Há muito que desconfiávamos que algo não batia certo devido ao mau cheiro a pairar as redondezas, mas ali a nossa amiga deu o alerta necessário para iniciar a investigação quando o Slaking foi roubado. Esse grandalhão costumava viver sempre no jardim dela. E bem… Acho que o resto, já sabes.


Mas tem algo que nós todos gostaríamos de saber. Que é conhecer-te… – Começou a humana de cabelo curto, com um sorriso no rosto. Ela estendeu-lhe a mão, apertando-lhe os dedos rechonchudos e rosados. – Meu nome é Haruka. Qual o teu? Deves ter um nome, estou correta?


Os três Pokémon a fitaram, atentos, também interessados naquela pequenita revelação. A fada ainda demorou muito tempo a responder, sem saber ao certo se devia confiar naquelas figuras em particular para partilhar tal informação tão intima.


Mas eles a ajudaram imenso, e a entregaram muito conforto e pedaços deliciosos de comida.


Sem se aperceber, as palavras saíram-lhe, quase que automaticamente.


– Gordinha… Minha família me tratava por Gordinha. Mas acho que, a partir de hoje, vocês podem me tratar por Brites.


Brites. Uma bela homenagem à cria de Wohali que o Corvo havia sufocado com um pedaço de gelo no coração tantos anos atrás. Fazia um bom tempo que ninguém lhe questionava sobre sua identidade. A palavra apenas lhe saiu, como se já tivesse tal no seu subconsciente há muito tempo, esperando a época certa para se expor.


Haruka acenou, endireitando os seus cabelos castanhos, enquanto lhe fitava os profundos olhos.


Brites. É um nome bem particular… Gosto dele. É bem a tua cara.


A Tinkatuff não soube ao certo como aquela humana conseguira compreender suas palavras, mas tal fazia agora parte de uma nova fase em sua jornada.


Olhou pela janela, fitando a montanha, enquanto deixava Haruka mudar a faixa que cobria o seu braço para uma nova. Sabia que talvez nunca se recuperaria totalmente nos movimentos, mas por agora, tal não importava lá grande coisa, se ela continuasse sendo forte e astuta.


Toda a vida sentiu-se predestinada a ser a heroína daquela terra, mas tudo saíra do seu controlo e avançou por limites muito além dos seus. Esperava que os pequenos Cetoddles descobrissem o caminho de regresso ao vale em paz, e que sua família estivesse segura de uma coisa ou de outra que as forças malignas do universo impunham naquele mundo. E, se novo mal surgisse, ela iria descobrir para os proteger, caso chegasse a altura certa para tal.


Ainda existia responsáveis pela tragédia à solta, e a Tinkatuff não iria descansar enquanto não os descobrir. Um dia, quando tivesse a garantia de que cumprira a 100% a missão, regressaria ao seu cantinho na montanha e voltaria a abraçar os Cetitans e Cetoddles gorduchos que tanto cuidaram bem dela e que tanto a amavam.


Entretanto, aproveitaria a falta de preocupações em sua nova jornada, que dera uma reviravolta e tanto, e sentar-se-ia na mesma mesa que aquelas pessoas e Pokémon comiam da mesma comida e bebiam do mesmo líquido, no meio de risos e conversas agradáveis.


A palavra aconchego e a palavra lar nunca antes lhe tinham ressoado de maneira tão diferente… Tão viva.




Uma Tsareena e uma Espathra no vale não era propriamente uma visita confortável. Depois da era de terror com o Corvo, e do desaparecimento do velho Cetitan desdentado e suas crias, o vale tornara-se um pouco mais fechado a estranhos do que antes nos anos que se seguiram.


De qualquer modo, aceitaram a encomenda que estas duas traziam de bom grado. Principalmente, depois de descobrirem a identidade da responsável que enviara tal coisa até aquele espaço remoto perto do topo da montanha.


Um Cetitan enorme de pele negra como rocha basáltica levou o embrulho até as profundezas de uma das mais complexas redes de grutas da montanha. Ali, bem no fundo de um túnel gelado, um outro Cetitan extremamente velho repousava, de olhos semicerrados e barriga para cima.


Tentou esboçar um sorriso em seus lábios gretados ao ver o filho, e seus olhos se encheram de lágrimas ao notar o embrulho feito em folhas de árvores e paus. Não foi preciso palavras para descobrir quem o havia feito.


O mais novo ajudou o mais velho a desembrulhar o embrulho, e foi um espanto encontrarem um bolo de pastelaria no meio de tudo aquilo com um pequeno brinquedo que era uma bela recordação. Uma pequena Tinkatink feita de peluche ao redor de muitas berries suculentas. A maioria eram Oran Berries, como se no interior de um grande cesto de vime. No prato de cartão que suportava aquela bela confeição, apesar de escrito em língua humana, existia a seguinte descrição: Feito por uma Gordinha, com muito Amor. Padaria Sonhos de Dachbun.


Por estar muito fraco e já não se alimentar sozinho, o Cetitan Shiny levou uma das bagas à boca do pai, junto com a massa sinistra e o creme que a encobria, mas que cheirava muito bem e era adequado à alimentação e nutrição de Pokémon.


Mastigou vagarosamente, e feliz, o jantar lhe servido, grato ao universo por mil e uma coisas inimagináveis.


Adormeceu, com sua pequena nova Gordinha de peluche ao seu lado.


E nessa mesma noite, as portas de Arceus lhe foram abertas.


Uma ave negra sobrevoou o topo da montanha, que raiava em sol. O Cetitan fitou-o, sem palavras, apenas com um olhar sereno e de compreensão. O Corviknight acenou-lhe, com um certo amargo a arrependimento na sua expressão, deixando ali mesmo uma pequena bolinha negra em meio da neve.


Wohali mal podia acreditar no que via.


A pequena Cetoddle correu até o Cetitan mais velho, para o abraçar, enquanto a enorme ave se distanciava no céu do horizonte.


Ai, se apercebeu que na vida pacata que levou, mesmo envolto de medos e perigos, não teve nada melhor do que aproveitar cada momento e seus pequenos prazeres da rotina.


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