Posted by : Shiny Reshiram 14 de mar. de 2023


Juliana mal teve tempo de vestir algo decente e disparou porta afora. Quem visse aquela adolescente toda esgadelhada, com um casaco de inverno, recitando canções numa guitarra, percorrendo as ruas de Cabo Poco naquela tarde quente, diria que a filha da padeira tinha enlouquecido de vez.


A jovem tinha que se apressar. Sabe-se lá se os três iniciais já tinham sido engolidos pelo Cyclizar estranho, onde quer que ele estivesse na sua caçada. O bicho misterioso rugia alto, e o som ecoava por todos os lados devido ao eco, logo era difícil de o localizar.


Mais abaixo da sua casa, Juliana parou numa encruzilhada. Um dos caminhos subia por uma mata até o farol, outro descia até umas ruas de Cabo Poco mais abaixo no promontório, terminando numa mansão que ela sempre via fechada desde que se lembrava.


Porém, naquele dia, achou curioso os portões abertos, mas não fez muito caso, pois tinha outras prioridades – em situações normais, ela ia por lá o nariz, pois a família rica que vivia naquela mansão era um mistério para os próprios habitantes locais.


O rugido do Cyclizar estranho ecoou outra vez, Juliana tinha que se decidir, mas estava difícil escolher que caminho seguir na encruzilhada. Ainda permaneceu um bom tempo ali parada no meio da estrada – muito a contragosto – olhando para todos os lados, envolta numa terrível indecisão.


– Por Arceus… Por Arceus… Para onde eu devo ir, SENHOR?! Cyclizar estranho, onde estás?... – dizia ela para si própria, vezes consecutivas e de diversas maneiras, mas com o mesmo tom desesperante.


O tempo que ficou ali parada fora o suficiente para apanhar o caminho de uma rapariga que surgiu de repente, saída da icónica mansão. Esta subiu a estrada numa correria, indo até ali e parando mesmo ombro a ombro ao lado de Juliana.


Juliana mal dera pela presença súbita dela. O olhar penetrante da jovem não parava de encarar Tamar, o pobre Krokorok seguia sua treinadora ao lado de Tolya, a Sandile.


Buenas! És a treinadora desses dois? – a recém chegada questionou-a, apontando para os dois Pokémon que, como se deve notar, adoram atenção.


Juliana deu um salto quando notou a voz súbita ao seu lado, mas aquele susto não era mais aterrador que os urros que se faziam sentir vez ou outra nos ares. A rapariga de casaco pesado olhou-a de cima a baixo.


A jovem era alta, muito mais alta do que ela, apesar de ambas terem aproximadamente a mesma idade. Juliana nunca tinha visto uma outra adolescente com um corpo tão bem definido como esta. Além do sorriso contagiante, o seu rosto também era marcado por uma madeixa verde de cabelo. Ela portava o uniforme roxo da Academia Naranja e Uva, e, de certa maneira, isso lhe dava o ar de uma jovem importante. Seu braço direito contava com uma espécie de luva ou cotoveleira ortopédica que subia da mão até o antebraço.


Juliana tinha um pequeno problema, além de falar os seus pensamentos em voz alta e agir sem pensar em consequências, ela era péssima a se comunicar com pessoas quando estava sob pressão. Quando ajudava a mãe na padaria, se reservava sempre no interior da cozinha e nunca ia atender diretamente os clientes ao exterior, pois era difícil lidar com a tensão que os serviços de recepção lhe proporcionavam sobre os ombros. A presença súbita de alguém ali, falando com ela, enquanto ela se preocupava em procurar os Pokémon perdidos, fê-la serrar os dentes de modo automático.


– És a treinadora, de estos peques? – questionou a rapariga do uniforme da Academia, outra vez, apontando para o Krokorok e a Sandile após endireitar sua luva. – Vá lá! Responde-me, estou mortinha por saber!


A recém-chegada saboreava uma barra de cereais com chocolate, fitando os crocodilos cor de areia com um brilho intenso no olhar, até ouvir outra vez o rugido que parecia cada vez mais distante. Juliana estava com pressa, e aquele era o sinal de que ela tinha que se despachar.


– Oh… Que pena… Pensava que esse som forte vinha dele – comentou, um pouco decepcionada, apontando para o Krokorok, quando notou que ele não abria nem um pouco a boca quando o som alto surgiu.


 Tamar fez uma careta, pois sentiu-se ofendido com as palavras. Ele também era forte e podia provar. A recém-chegada não ficou intimidada com a cara de mau do crocodilo, e continuou a puxar diálogo da outra, interessada nesta e nos seus companheiros, já que os mesmos ouviram o mesmo grito suspeito que ela.


– Deve ser um Pokémon selvagem bem poderoso a rugir por estas bandas. Não posso perder este combate!


– Nem penses nisso! Essa Motoca é minha! – de súbito, Juliana fez uma careta, irritada, mais feia que a do seu crocodilo de areia. O género de expressão facial desagradável, que não se dá a desconhecidos quando estes tentam conversar.


– Quero saber que tipo de Pokémon é! Nadie me detiene de una buena batalla! – a desconhecida cruzou os braços, com cara amuada.


– Espera… – Juliana mostrou-se surpresa por ver que a estranha não desconfiava das origens do som. – Não ouviste falar sobre o Cyclizar estranho que assombra as noites por aqui ultimamente?


– Eu não estou dentro dos mexericos de Cabo Poco e Los Platos, amiga – e piscou o olho com ar provocador, reconhecendo a silhueta de Juliana de cima a baixo. – Por acaso não és a filha da padeira Haruka? Eu estava mortinha para te conhecer! E porque estás com esse casaco com tanto calor que está hoje? E já agora, no outro dia eu fui lá à Padaria Sonhos de Daschbun e…


– AAGHIIAAAAA – o som súbito quebrou as palavras dela, que, pelos vistos, era alguém que adorava conversar.


O topo do farol era visível por entre o farfalhar da copa das árvores mais altas, pois a altura da falésia onde o mesmo se instalava era muito mais acentuada que a falésia de Cabo Poco. Juliana julgou, pelo canto do olho, ver um vulto lá, descendo pela parede como um gigantesco lagarto descendo um muro.


A jovem de casaco pesado correu então pelo trilho entre as árvores, ao se decidir finalmente qual das estradas devia seguir, não se despedindo da rapariga que a abordava. O problema era que a jovem era persistente no que queria, e não aceitou ser largada assim do nada por alguém tão interessante para ela, que acabara de conhecer.


– EI! ESPERA POR MIM! EU TAMBÉM QUERO VER OU LUTAR CONTRA UM CYCLIZAR ESQUISITO OU SEI LÁ O QUE É! – gritou a desconhecida, correndo atrás da jovem.


– Vai-te embora! Estou no meio de uma missão importante! – exclamou Juliana, ofegante.


Juliana cansou-se demasiado depressa durante a sua corrida, estava habituada a sua mãe lhe levar para tudo o que era lugar montada num Revavroom velho que ela tinha na garagem da padaria. A jovem desconhecida, nessa questão, parecia mais resistente fisicamente, como quem estava habituada a andar longas distâncias ou fazer caminhadas matinais. O peso da guitarra presa às costas e o calor do casaco de inverno também não ajudavam no fôlego de Juliana, sem falar que ela só comera uma ou duas bolachas uma hora antes.


Muchacha, tem calma ou ainda vais desmaiar – disse a desconhecida, partindo um quadradinho da sua barra de cereais com chocolate para lhe dar. – Toma, para te dar energia. Vamos sentar e descansar um bocadinho. Sí?


Ela torceu o nariz, mas aceitou, pois sentia-se mesmo muito cansada, esfomeada, e reconhecia seus limites. Observou o local onde se encontrava dentro da mata e procurou uma pedra cheia de musgo que lhe parecesse bastante confortável. Costumava vir ali com sua mãe fazer piqueniques ao fim de semana, por isso, já conhecia mais ou menos os melhores troncos caídos de árvores que podia usar para se sentar ou como mesa, e as pedras com superfícies cheias de plantas fofas que não magoassem as nádegas.


O trilho que subiam era conhecido por Poco Path, e era a única estrada que ligava Cabo Poco ao restante mundo, apesar do seu carácter bem rudimentar. A natureza dominava com o cantar dos Fletchling, que, se não tivessem tanto apavorados com a presença do lagarto alado, inundavam o sítio com um piar ainda mais musical. Vários Tarountula penduravam-se em teias nas árvores, alheios ao perigo, enquanto os Lechonk grunhiam vez ou outra, de modo abafado, em seus esconderijos.


– Amiga, conta mais ai sobre o Cyclizar estranho ou então vamos a uma batalha! – a estranha pediu-lhe, sentando-se na rocha ao lado dela.


– Nem penses! Sei que queres roubá-lo de mim! – Juliana reclamou, e depois olhou para a barrinha meia comida da jovem. – Tens mais chocolate?


– Queres ficar com o resto? – questionou, a sorrir, apontando a barra de cereais na direção dela.


– Estou CHEIA de fome! – Juliana comentou, com água na boca. De facto, comera pouco, praticamente nada naquela manhã.


– Okay! Só te dou quando me contares mais sobre o Cyclizar ou depois de uma batalha!


Juliana realizou outra careta, então, decidiu chamar por Tolya e Tamar, que andavam a caminhar de um lado para o outro, como dois seguranças do local, no meio da estrada mais à frente a ambas. A desconhecida encolheu os ombros, indiferente, e comeu então o resto do chocolate, já que a filha da padeira se rejeitara ao acordo.


– Vocês conseguem arranjar alguma coisa para eu comer? – Juliana pediu educadamente a seus dois Pokémon.


O Krokorok fez uma vénia cordial, e a pequena Sandile acenou com entusiasmo, mostrando os dentes afiados.


Era perigoso deixar aqueles dois sozinhos com um grande predador à solta, mas Juliana, apesar de saber que ambos podiam brigar entre si como os dois irmãos que eram, confiava neles.


E quando o pedido era um serviço direto para a sua treinadora, pouquíssimas coisas costumavam dar errado.



O silêncio instalou-se rapidamente entre ambas as humanas enquanto esperavam por eles. Tamar foi o primeiro a aparecer, nem durou uns cinco minutos fora do campo de visão. Numa das patinhas ele trazia uma folha grande em formato de concha carregada de orvalho, que serviria como bebida. Na outra, uma folha limpa que adotava o papel de bandeja a vários alimentos muito bem condicionados, que incluíam uma laranja cortada a várias metades, cogumelos frescos de ar bem apetitoso, e várias berries silvestres.


– Parece muito saboroso! Pokémon são mesmo seres inteligentes e incríveis! – a desconhecida comentou, com espanto. – Depois podemos fazer uma batalha? Por favorrr.


Porquê é que essa estranha só pensa em batalhas? – Juliana refletiu, em voz alta, sem saber exatamente que aquilo só estava a começar.


– Que disseste? – a estranha olhou-a.


Antes de Juliana responder com seu ar apanhado por comentar os pensamentos em voz alta, o Krokorok então revelou uma surpresa que a salvara do diálogo constrangedor: ele trazia suportado em sua cauda uma porção extra da comida, que entregou à nova amiga de Juliana com bastante apreço.


– Whoa… Obrigado Krokorok! Mas não precisava! Eu comi antes de sair de casa.


Apesar disso, o crocodilo insistiu.


A desconhecida sentiu-se na obrigação de aceitar face a tamanha gentileza, não contava que o Krokorok gentil arranja-se algo para ela sem ser a ordem da sua treinadora.


Enquanto isso, Juliana devorava a sua dose como se não comesse nada fazia anos. As berries eram muito suculentas e estavam a cair muito bem, e, por incrível que pareça, os cogumelos provaram-se um otimo acompanhamento. Depois de mastigar tudo, bebeu o conteúdo da folha em pouquíssimos tragos, derramando parte do líquido refrescante por toda a sua cara.


Quando terminou, soltou um suspiro longo de satisfação, enxugando as mãos com parte do casaco, já que ela não trazia nada para se limpar.


– Muito obrigado, Tamar! – disse-lhe, com um longo sorriso.


De seguida, segurou sua guitarra. Como agradecimento, começou a cantar para ele, o que foi uma surpresa bem agradável para o crocodilo.


Crocodilo meu amigo;

Bem-disposto, sempre me servindo;

E é com imensa gratidão;

Com este beijo te ataco o coração!


Logo depois de Juliana recitar aquelas breves rimas numa canção, Tamar levou com um beijo repentino na ponta do focinho, o que o deixou completamente sem jeito por tamanha caricia de sua treinadora.


A desconhecida soltou uma gaitada com a cena que apanhara o Krokorok desprevenido. Juliana olhou para ela, segurando a barriga de tanto rir, e depois dirigiu sua atenção para os alimentos que o Krokorok também lhe dera.


– Vais comer isso?


A adolescente da academia deu-lhe a comida, a sorrir, quase sem poder rir mais. Poucos segundos depois, sentiram um farfalhar enorme, e a pequena Sandile surgiu por entre os arbustos, com algo na boca.


Tolya não era tão higiénica como Tamar, sem falar que o que esta deixara na terra aos pés da treinadora – como um Meowth que caça um pássaro para dar ao dono, deixando-o acima do tapete – era algo de ar bem duvidável.


A desconhecida segurava o riso, pois estava prestes a morrer outra vez no meio de uma gargalhada, enquanto Juliana encarava aquilo: era o resto de uma sanduiche tirada diretamente de um balde do lixo mais próximo. O pão já estava duro e bolorento, o seu interior já tinha um ar repugnante, cheirando muito mal de tão podre que o recheio já estava.


Os olhos da pequena Sandile fixaram Juliana, desejosos em saber o que ela achava quando a rapariga segurou no ‘’alimento’’. Era claro que ela ouvira a canção que o Krokorok ganhara, e imaginou um beijo no final, e isso despontou nela uma pontada imensa de ciúmes.


– Oh… Hummm… Obrigada Tolya. Mas sabes, vou guardar isto para mais tarde, não tenho fome agora que já comi a refeição que o teu irmão me deu, como ele chegou até aqui primeiro – comentou, torcendo o nariz e guardando no bolso.


Guardou no bolso pois não queria que ela lhe visse deitar aquilo fora, e o faria mais tarde, longe do olhar penetrante da pequena Sandile. Apesar disso, Tolya ficou com um ar tristonho, o que fez Juliana voltar a agarrar a sua guitarra, para a alegrar, pois odiava ver seus dois amiguinhos tristes.


Dois irmãos de um deserto vieram;

Tão dedicados, tão especiais;

Apesar das diferenças, que os lideram;

São os meus melhores amigos;

Meus amigos mais leais.


E assim, tal como fizera com Tamar, dera um beijo repentino na Sandile. Apesar de, depois da pequena crocodilo dar meia volta toda sorridente, Juliana limpar os lábios: uma coisa era agarrar numa Sandile cheia de farinha, outra era beijar uma Sandile que andara numa lata de lixo nas proximidades.


– Como te chamas, muchacha? – a outra jovem questionou, com curiosidade.


– Juliana – respondeu ela, mordiscando as berries. Já se sentia mais calma, portanto, conseguiu ser um pouco mais agradável do que aquilo que fora originalmente no momento em que se conheceram na encruzilhada. – E, como sabes, eu sou a filha da proprietária da padaria Sonhos de Daschbun.


– Sabes tocar guitarra muito bem! E esse português é do caralho.


A Sandile e o Krokorok começaram a rir com a imitação barata de Nemona, que não tinha lá muito jeito para a coisa. De facto, Nemona soltara aquelas palavras copiando o idioma de Juliana e seu sotaque sem ter bem a noção do significado verdadeiro das palavras, mas ouvia sempre os jovens da Academia a dizer a expressão, logo, calculou que não devia ter mal nenhum.


O elogio fez a adolescente de casaco pesado dar uns acordes breves no instrumento. Pelo menos, antes de se assustar com o berro que a desconhecida deu no seu ouvido, que quase a fez cair para o lado.


– ESPERO QUE SAIBAS COMBATER TÃO BEM COMO CANTAR E TOCAR GUITARRA! Eu chamo-me Nemona, e desafio-te para uma batalha! AQUI! AGORA!


– Não podes estar a sério… Certo? – Juliana prendeu a guitarra nas suas costas, com um ar extremamente sério.


– O Diretor Clavell falou-me muito bem de ti! Não sabes o quanto eu estava inquieta para te conhecer! Quero combater contra esses dois crocodilos!


– Nemona… – a adolescente de casaco pesado saboreou, lentamente, a forma como o nome se formava na sua língua.  – Não podes estar a sério certo?


– A sério como assim? Eu sou apaixonada por batalhas! Vamos! Batalla! Ahora!


– ENTÃO TU É QUE ÉS A NEMONA?


– A própria, amiga!


Juliana encolheu os ombros, quase a choramingar.


– OHH por Arceus… OHH por Arceus… Porque me fizeste isto… Logo agora que eu os perdi…


– Que se passa? O que perdeu? – Nemona questionou-lhe, com seu típico ar inocente.


– Os três Pokémon iniciais do Diretor… – Juliana murmurou o seu pensamento, cabisbaixa.


Não estava para lhe dizer, para já, mas as palavras saíram-lhe da boca como lhe era usual em situações assim, e então, explicou parte da situação, ao ver que Nemona esperava por uma resposta mais coerente.


– O Diretor veio hoje a minha casa com um Sprigatito, Quaxly e um Fuecoco para eu escolher um, ele saiu porque recebeu uma chamada importante, e eu os perdi… Eles fugiram. Não sei para onde foram…


Nemona acenava com a cabeça, seu sorriso ia-se desvanecendo entre os lábios à medida que Juliana explicava, entendendo bem o que tudo aquilo significava. Se tinha alguém que já testemunhara situações do género com o Diretor envolvido, era ela.


E, pela expressão dela, ver que a situação ainda era mais séria do que imaginava, Juliana soltou um:


– Puta madre…


Nemona já sabia muito bem sobre o Diretor ter ido a casa dela, pois ir à mansão da sua família também estava nos planos dele, se bem que, diferente da mãe da Juliana, sua família fora avisada previamente da visita para poderem abrir os portões frontais do casarão. Neste momento, ainda deviam estar no aguardo, ou o Diretor já havia cancelado o encontro com um telefonema.


Juliana continuou a comer a refeição que o Krokorok preparara para Nemona, enfiando os pedaços de laranja e as berries pela boca abaixo como reação à ansiedade que sentiu quando notou a expressão facial de terror da sua nova companheira, e que se traduzia da seguinte maneira: se não os encontrar, teria graves consequências.


– Não se preocupe. Vou te ajudar! Vai ser num instante que vamos encontrar eles! Vai ser canja! – Nemona disse, após retornar sua compostura, toda sorridente.


Naquele mesmo instante, um som alto, como uma explosão, inundou o ar.


– O que foi isso? – Juliana arrepiou-se com o som súbito, quase se engasgando com os alimentos que consumia.


Ela passava as últimas noites a caçar o Cyclizar estranho nas praias de Cabo Poco, o que por vezes lhe proporcionou uns momentos bem assustadores e avistamentos de coisas esquisitas, principalmente coisas que outras jovens faziam na socapa da noite às escondidas dos adultos, mas nunca tinha sentido nada igual em sua vida.


O som aterrador foi como algo grande a se partir em milhares de estilhaços.


– Acho que veio do farol – Nemona apontou por entre as árvores, e, por sua vez, também tinha seus sentidos despertos.


Não se via nada e muito menos cheirava a fumo, mas, tal como a jovem que a acompanhava, Juliana achou algo estranho na inclinação do topo do edifício, como se, pouco a pouco, as vigas que o suportam estivessem a inclinar a torre para o lado.


Pessoas que nunca tivessem olhado para o farol não encontrariam muita diferença. Talvez, ambas estivessem apenas a imaginar coisas. Mas não estavam. Principalmente para Juliana, que conhecia bem o farol e o via quase todos os dias, a ligeira inclinação na estrutura era uma diferença tremenda para a imagem que ela estava habituada a ver marcada na sua rotina.


Juliana, engoliu tudo de uma vez só e voltou então à correria, atrás do seu objetivo, com Nemona atrás de si e com a Sandile e o Krokorok lado a lado.


Quanto mais corriam na direção do farol atravessando o trilho de terra batida entre as árvores de Poco Path, mais rápido tentavam ser, pois, o que avistaram ao longe não era flor que se cheira-se.


Quando ambas chegaram, pararam, então, no meio do terraço do miradouro, abismadas, olhando a torre de cima a baixo.


Parte frontal da base do farol encontrava-se destruída.



Dava para notar entre os destroços uma mesa de jantar, secretárias, cadeiras, um frigorífico, um sofá e um amontoado de computadores e maquinaria pesada despedaçados, faiscando, em perigo de curto-circuito. Foi como se uma bola de demolição tivesse penetrado por um quarto dentro, deixando apenas duas paredes do interior e pouco mais em pé.


Era claro que o que havia atingido aquela área não era uma destruição causada por uma explosão qualquer. Se o impacto tivesse sido maior, podia ter derrubado o farol completamente, mas as paredes e o telhado que restara ainda conseguiam suportar bem a torre.


– Afasta-te! Acho que o farol pode ruir a qualquer instante! – Nemona avisou.


– Mas o que… Quem foi que decidiu fazer isto?... – Juliana foi com a mão à boca, chocada, por ver a base da estrutura danificada.


Para Nemona, o farol destruído não tinha o mesmo tipo de impacto que tinha em Juliana, que se lembrava de o ver erguido desde sempre. Era apenas uma parede, mas mesmo assim, ainda era chocante ver um grande elemento da sua infância com a base naquele estado. Sua mãe a levava até ali todos os fins-de-semana, e subiam sempre o farol até à varanda que circundava o seu topo para avistarem a paisagem. Foram inúmeros os por do sol assistidos e os momentos felizes passados ali em cima.


Ela respirou fundo procurando se acalmar, enquanto Tolya e Tamar lamentavam ao seu lado, pois os dois crocodilos também tinham uma afeição muito grande àquela torre.


Por precaução, a adolescente viciada em batalhas foi com a mão ao bolso para agarrar numa esfera bicolor, dando alguns passos em frente, mas ainda mantendo uma distância segura.


Uma marmota, cujo o pelo era de tom de laranja bem claro, saiu do raio de luz da esfera. O topo da sua cabeça tinha um tufo de cabelo, as bochechas eram amarelas, enquanto a boca, cauda e os dedos de suas patas rechonchudas eram bege. O Pokémon tinha uma expressão energética, pronto para ajudar.


– Pawmo. Consegues absorver ou redimensionar a electricidade para evitar um incêndio e danos maiores? – Nemona questionou, apontando para as faíscas que saiam dos cabos de electricidade quebrados que pendiam no local da parede derrubada, e também dos fios já encontrados no chão, todos cardados.


O Pokémon esfregou as patas frontais nas suas bochechas, produzindo electricidade na palma das mesmas como se estas fossem um desfibrilador. Era sinal que aceitava o desafio!


Correu para o interior do quarto e agarrou nos fios sem problemas, absorvendo a electricidade que corria nos mesmos graças a umas almofadas amarelas que existiam na palma das suas mãos. Depois colocou-se na rua. Com uma das patas fincava os fios, e, com a outra, apontava na direção do céu, desferindo com pouco esforço várias descargas eléctricas que ressoavam como trovões. Enquanto realizava o serviço, o Pokémon parecia mais vivo, graças à sua habilidade, o Volt Absorb.


– Parece que alguém quis assaltar o quarto do pescador e derrubou a parede. Será que tem alguém ferido? – notou Nemona.


– Pescador? Isso não é a casa de um Faroleiro? – Juliana questionou-lhe, confusa.


– Não parece nem um nem outro. Mas melhor não irmos ver lá dentro, podemos correr perigo. Mas vamos ver se alguém se feriu por aqui. Talvez foi obra dos Pokémon do Diretor…


– Precisamos de chamar as autoridades – Juliana sugeriu, com a voz trémula. – Não podemos deixar o farol assim!


– Autoridades??? Pffff… – Nemona olhou para ela, a rir – Para quê autoridades se… SE O MUNDO ME TEM A MIM! O que quer que tenha causado isto não pode ter ido longe. HORA DE UM POUCO DE AÇÃO! – depois encarou o seu Pokémon marmota – Pawmo, aguentas aí mais um bocadinho?


O Pokémon acenou, entusiasmado, desferindo outro trovão que cortou o céu.


Era claro que Juliana tinha sangue de fofoqueira correndo em suas veias, e, apesar do seu medo, não hesitou muito naquela ideia maluca de Nemona. O mais correto a se fazer era sim chamar as autoridades e explicar o ocorrido, pois a zona estava instável para os visitantes recorrentes que ali vinham, mas a caça ao Cyclizar podia ficar comprometida se isso acontecesse.


O bicho estava perto, muito perto, e ela sentia-o, apesar de não saber bem como nem o porquê.


Nemona corria pelos arredores do farol em busca de culpados ou vítimas, olhando o arvoredo e espreitando para as praias e rochedos pontiagudos lá em baixo entre a falésia e o mar, enquanto Juliana tentava espreitar vagamente o que restara do interior do quartinho.


Apesar dos avisos da companheira de que era perigoso, ela tomou uma aproximação maior dos escombros. O Pawmo continuava na sua tarefa com perícia, e parecia preocupado em ter a humana ali tanto perto dele, mas não podia abandonar o posto, por isso, procurou se conter e desferir pouca carga eléctrica de cada vez.


Mesmo com todo o perigo eminente que aquilo transmitia, Juliana sempre teve interesse em saber o que se podia encontrar dentro daquele quarto. Era o tipo de curiosidade que alimentava desde a infância, pois o quarto sempre esteve ali, tão perto mas tão inalcançável, e ela nunca o vira por dentro, portanto, perdera a conta das vezes que o seu eu criança deixava a imaginação viajar quando o farol recebia visitas suas.


Umas pedrinhas e fios de areia caiam vez ou outra da parede de cima, por isso, Juliana tinha noção que tinha que ter extrema cautela se decidisse subir os destroços e entrar lá dentro – ou, pelo menos, dentro do que restava do quarto.


Olhou para aquele amontoado de entulho, reconhecendo o que eram alguns dos equipamentos de cozinha, mas antes de avançar mais em direção a maior perigo e notar os documentos e computadores entre os escombros, avistou parte da porta de madeira daquele quarto, com o seu vidro partido.


A superfície estava cheia de marcas de garras enormes, lascas foram arrancadas da tinta e da madeira, deixando a porta num estado irreconhecível. A jovem passou os dedos na sua superfície, analisando a profundidade de um dos enormes arranhões.


– Acho que estamos a lidar com um Cyclizar mais perigoso do que aquilo que eu pensava, amiguinhos – comentou ela para sua Sandile e seu Krokorok.


Daquela dupla, Tolya parecia mais entusiasmada com tudo aquilo, enquanto Tamar reprovava a aproximação de Juliana o tempo todo, e procurava puxar sua treinadora para a zona de segurança. Para sorte do Krokorok nervoso, aquela pequena exploração nem durara uns cinco minutos, pois Nemona chamou por eles pouco depois.


– Juliana! Crocodilos fofos! Achei algo estranho! Tem algo ali em baixo, na praia! E fica avisada, amiga… TU. VAI. A D O R A R!


Juliana apressou-se a ir até ela, já imaginando do que se tratava a partir do momento que ouvira o ‘’tu vai ADORAR!’’.


Nemona encontrava-se a poucos metros mais abaixo na falésia, além dos limites da vedação. Uma das estradas de Poco Path formava ali uma bifurcação, enquanto um dos caminhos dava acesso direto ao farol, o outro descia por uma encosta que não dava a lugar nenhum, pois se tratava de um beco sem saída numa área mais restrita do miradouro. Uma baía bem estreita existia lá em baixo entre as paredes altas, contando com uma pequena praia de areia branca. Pelos vistos, não existia maneira de descer até lá, sendo o local apenas acessível por mar.


– Segura no teu Rotom Phone, eles podem manter-te segura se caíres aqui sem querer, mas presta atenção ao passar por estes penhascos de qualquer das maneiras! – Nemona sugeriu, e assim ambas fizeram. – E… Ta-ta-tachán! E ALI ESTÁ ELE!


Nemona apontou para a direção exata, e Juliana seguiu o dedo indicador desta. A jovem de casaco pesado encarou então a criatura encarnada que se encontrava deitada no meio da areia. As duas andaram ainda mais em frente no caminho, para analisar o Pokémon um pouco mais, bem em cima dos limites que a geografia do local lhes permitia.


Desde que iniciara a caçada àquela criatura, fora a primeira vez que Juliana o via em pleno dia.


E, por isso, fora difícil conter-se de tão especial que o breve momento fora.


– É O CYCLIZAR ESTRANHO! É O CYCLIZAR ESTRANHO! – Juliana começou a gritar de entusiasmo, mas depois parou para prestar atenção aos detalhes – Mas ele parece… Diferente. Ele era muito maior e tinha uma cabeça grande cheia de penas enormes!


A criatura ainda era grande, mas parecia menor em comparação ao que Juliana avistava nas noites anteriores. Parte da cauda do Pokémon estava mergulhada na água do mar, e nem as ondas frias embatendo nas suas patas traseiras o faziam acordar daquele sono profundo.


– Ele parece ferido e fraco… Coitadinho! – Juliana murmurou, um tanto decepcionada.


– Olha! Ele não está sozinho! – Nemona notou. – Temos que o ajudar! E depressa! HORA DE BATALHA!


Um pouco mais à frente, estavam dois pontinhos negros no meio da praia, indo na direção da criatura ferida. Os dois cães de pelagem negra eram muito menores do que o ser ali deitado, mas, apesar do tamanho, tinham uma expressão de pouquíssimos amigos. No topo da cabeça, os Pokémon portavam uma espécie de crânio, enquanto duas costelas de osso desciam por seu lombo. A pelagem encarnada do focinho e da barriga destes cães os deixavam com um ar ainda mais intimidante devido ao contraste de cor que o efeito trazia.


– São Houndour – Nemona analisou. – Mas o que eles estão a fazer aqui fora? Pelo que eu sei eles não costumam sair das cavernas profundas que existem por aqui no litoral. E pelos vistos também não são amigos dele.


Quando prestou atenção a essa visão mais detalha, o entusiasmo de Juliana sobre e Cyclizar estranho fora substituído por um tremor da cabeça aos pés.


Finalmente tinha encontrado o seu maior tesouro, mas o mesmo contava com um pequenito elemento extra que ela abominava.


– Aquilo s… são… Cães!? – Juliana recuou um passo.


– Sim, Juju, uns perritos! – Nemona sorria enquanto dizia, depois de endireitar os cabelos da frente dos seus olhos – No se preocupe, eles são fofos depois de amestrados. Mas primeiro precisamos de lutar contra eles! HORA DE BATALHA, YAY!


– Eu tenho medo de cães, Nemona – ela disse, ainda a tremer. – Muito medo.


– Mas é só uns perritos


– Nemona, por favor, tenta não brincar com a minha fobia.


– Oh… Tens fobia a cães? – questionou, com surpresa. Era sempre bom aprender curiosidades sobre alguém que se acaba de conhecer, e isso deixou Nemona com um certo gostinho de ‘’quero mais sobre Juliana’’ na boca.


– Eu… Eu… Eu não sei como vou ajudar ali o meu amigo – Juliana observou, com os olhos fixos na dupla negra que se aproximava cada vez mais do Cyclizar caído. –  Eu não consigo me aproximar de cães. Chegar perto do Dachsbun da minha mãe já é uma vitória.


– Tem calma, amiga. Estou contigo. Sou das melhores treinadoras nestes lados! Confia! Vais ficar a salvo dos perritos. E já agora, posso continuar a te chamar Juju?


– Sim, podes?... – Juliana acrescentou a pensar, um pouco avermelhada, depois voltou a observar o Cyclizar, sem tirar os malditos Houndour da cabeça.


– Okay… Então vamos a isso! Juju! Esses dois sabem escavar? – a jovem viciada em batalhar questionou, dando umas pancadinhas nas costas do Krokorok, que se encolheu todo. Nemona mal podia aguentar em finalmente ver aos dois em ação. – Será que vocês acham seguro escavar aqui em cima um túnel que podemos usar para descer até lá abaixo?


Tolya e Tamar entreolharam-se. Não era uma má ideia, e eles podiam arriscar.


Os dois crocodilos de areia foram assim os primeiros a descer a encosta, indo na direção do Cyclizar estranho. Não tiveram dificuldades na descida, pois, como Pokémon do tipo Ground, conseguiram fincar bem suas garras no solo e escavar um túnel que descesse até lá abaixo. Ambos recorreram a uma técnica conhecida como Dig para fazer essa proeza, que utilizaram de forma conjunta.


Quando a dupla saíra por um buraco no promontório, botando os pés na praia, não contavam era com o que iria ocorrer a seguir.


 Os Houndour estavam muito próximos do Cyclizar.


Rosnavam intensamente e suas bocas espumavam de raiva. Quando a dupla de cães estava prestes a desferir um golpe para atacar o pobre lagarto moribundo, o mesmo usou o resto das suas forças para erguer a cabeça para cima, rugindo na direção dos dois enquanto mostrava os dentes afiados.


Foi o mesmo rugido que Juliana ouvira durante todo aquele dia, e o mesmo durante os últimos tempos, mas, devido à proximidade e força toda que o mesmo fora solto, o som era mais intenso do que nunca.


O Cyclizar deu tudo de si naquele rugido.


Um rugido enorme de sofrimento.


Aquela parede da falésia estava fragilizada devido ao túnel dos crocodilos, e, de súbito, cedeu parcialmente devido às vibrações de tamanho grito de desespero.


Nemona ainda conseguiu notar as fissuras se formando debaixo dos seus pés bem a tempo de recuar e correr até ao outro lado da estrada, onde ficaria em segurança. Mas já Juliana… Essa não teve assim tanta sorte, sendo arrastada junto com a avalanche de pedregulhos até a praia lá em baixo.


Os Houndour, assustados com a queda súbita da parede, fugiram para o interior de uma gruta nas proximidades. Tolya e Tamar correram para socorrer a treinadora, mas graças a Arceus – ou a aviso prévio de Nemona – Juliana segurara seu Rotom Phone bem a tempo, pois o poder de levitar do Rotom que habitava o objeto ajudou-a imenso a amparar a queda longe do local onde as rochas caíram.


Juliana encontrou-se então de ombros encolhidos, em pé. Atrás de si uma nuvem de poeira abaixava lentamente, revelando enormes pedregulhos que a podiam ter atingido e soterrado em cheio.


– Juju! Estás ok? – Nemona gritou para ela lá de cima. – Não estás magoada, pois não? Eu não me perdoaria se visse a minha mais recente nova amiga magoada!


Juliana piscou, sentindo o seu próprio coração a disparar. A primeira coisa que fez foi procurar olhar ao redor. Não existia sinais dos cães além das suas pegadas na areia, o que foi um alívio enorme que ajudou-a a recuperar bem daquele tremendo susto.


Depois, encarou Nemona e todas as paredes altas que circundavam a baia, enquanto se certificava que a sua querida guitarra não fora danificada.


– Estou bem, sim! – respondeu-lhe, enquanto dava um ou dois acordes, não por querer tocar – encontrava-se demasiado apavorada para isso – mas porque ela amava mesmo aquela guitarra e não descansaria sem saber se ela estava em condições ou não.


– Graças a Arceus! Fiquei mesmo preocupada se tinhas morrido!


Era arriscado escalar e usar os poderes de Tolya e Tamar para subirem, pois podiam provocar outra derrocada de tão instável que aquelas paredes parecia ser. Também era perigoso ir a nado até outra praia dos arredores, pois a corrente forte podia arrastá-los para longe da costa e ela não era lá muito boa nadadora.


Sua nova preocupação foi solta nas seguintes palavras:


– Como eu vou sair daqui?


– Amiga, estás preocupada em sair daí? – Nemona disse num tom um pouco alto, para a se certificar que a outra ouviria – Não eras tu que querias caçar um Cyclizar estranho? E o ajudar? Aproveita que o bicho está inconsciente e ajuda-o primeiro! Está no papo!


– Mas… E se eles voltam…


– Voltam o quê?


– Se aqueles Houndour voltam!


– Voltam nada! O teu bicho predilecto está ali a sofrer! Como é que tu o chamou? Motoca? Isso! Motoca! Vai até a tua Motoca e deixa o resto comigo! Vou procurar alguma outra maneira para te ajudar a subir a falésia. Talvez a gruta que tem ai em baixo tenha uma entrada aqui em cima que podemos usar.


– Tu queres que eu entre ali dentro? – Juliana começou a suar frio, imaginando a enorme matilha de Houndour que poderia estar a repousar no interior da gruta, espreitando a cada esquina das suas profundezas.


– Não tem outra maneira. Amiga… E é só uns perritos!


E é só uns perritos!… – imitou a voz dela. – Para ti é fácil dizer… – Juliana resmungou para si própria, pois, naquele instante, Nemona já desaparecera de vista à procura de alguma outra gruta que pudesse usar para ir a seu alcanço.


Enquanto isso, a pequena Sandile foi a primeira a se aproximar da enorme criatura que repousava na areia, cheirando-lhe as narinas. O Krokorok puxou-a para trás pela cauda, com medo de o grande bicho os considerarem um perigo e se defender, tal como fizera aos Houndour.



Juliana pensou nos dias todos que ansiava imenso por aquele momento.


Todas as noites em branco que passara correndo atrás dele entre a penumbra, o observando, forte e saudável, a correr e a voar pelas praias, saltando de falésia a falésia, escalando precipício a precipício, comendo lixo… Mas disfrutando e alimentando cada vez mais do seu título de lenda de Cabo Poco e Los Platos.


E agora, ali estava ele, ferido e inofensivo, quase a desmaiar.


Porém… Todas as lendas um dia acabam sempre por ser esquecidas, como uma estrela a se apagar.


Juliana não ia mentir, sentiu-se um pouco triste de se aproveitar daquela oportunidade e o capturar logo sem o ver dar mais luta, como se preferisse continuar a disfrutar da visão que era tê-lo em liberdade, o perseguindo e o espiando a destruir os jardins dos vizinhos e atordoando os Pokémon de Los Platos e Cabo Poco.


Juliana aproximou-se devagar.


Ajeitou o casaco de inverno, indo com a mão tremula ao bolso. Foi ai que se apercebeu que… Esquecera-se completamente que saíra de casa sem suas Pokéballs vazias! Não se sentiu decepcionada, até parecia que estava a adivinhar um inconveniente destes.


Respirou fundo, e ajoelhou-se ao lado dele.


A criatura tinha uma cabeça enorme, e Juliana analisou o brilho das pequenas penas que cresciam no topo, maravilhada. Encontrava-se a uns míseros centímetros dele, e sentia o coração palpitar de tão emocionante que o momento estava a ser. A criatura emanava um calor surreal.


– Eu diverti-me imenso a correr atrás de ti estes dias, amigo.


O Cyclizar elevou um pouco a cabeça, abrindo os seus olhos brilhantes de forma lenta e demorada, na direção da rapariga, fazendo-a derreter-se. Naquele preciso momento, ela esquecera-se por completo dos cães da praia, da queda que teve na falésia, do farol com a parede destruída, dos três Pokémon perdidos que buscava… Enfim, de todos os problemas que os ares moviam ao seu redor.


Só estava ela, e aquele maravilhoso ser, no mundo inteiro.


Por breves instantes, Juliana sentiu-se num paraíso.


– Gostas de música? – Juliana perguntou, de súbito, e tirou a correia das costas, segurando a sua guitarra com firmeza ao peito.


Sem esperar por resposta, estava tão inspirada pela energia do momento que deixou-se levar, e começou a tocar algumas notas, sem melodia cantada.


Notas baixas e melancólicas, como uma canção simples de embalar.


Uma melodia que não precisava de letra para ser bela.


– … Agia?… – A criatura sacudiu a cabeça, fazendo um breve barulhinho doce como reação ao som que saia do instrumento.


Isso fez Juliana soltar um grande:


– ÉS TÃO FOFINHOOO! – Comentou, num guincho, se derretendo toda.


Tanto Tolya como Tamar temiam que o bicho atacasse. Juliana foi com a mão devagar na direção do focinho dele, pois mal continha ansiedade em lhe tocar nas escamas (bem macias, por sinal) e abraçar aquela cabeça grandona, enchendo de beijos, abraços e caricias de todo o tipo possível.


Sua face foi preenchida por um enorme sorriso ao ver que o bicho lhe cheirou os dedos e se deixou tocar na ponta do focinho. O Cyclizar não tinha sinais de representar perigo algum, o que foi um alívio para os crocodilos, que se aproximaram de forma mais relaxada.



Rapidamente, a rapariga envolveu-o num abraço ainda mais demorado e apertado.


– Como será que eu te vou chamar? Rei Alado?... Motoca?... – comentou, entre algumas risadas, enquanto deixava a enorme criatura cheirar-lhe a face e lamber-lhe a bochecha.


O Cyclizar continuou a lamber a cara de Juliana, vezes consecutivas. Ele fazia um esforço para esticar o pescoço, pois não conseguia se levantar.


– Eii! Para com isso! – comentou ela, entre gargalhadas, pois o Cyclizar não a largava de maneira nenhuma.


Apesar do ‘’para’’, Juliana queria que aquilo durasse para sempre, se bem que o Cyclizar era muito maior que um Cyclizar comum, e ele quase a derrubou para o lado quando lhe fez aquilo.


Algum tempo depois, ele deitou-se para baixo, mostrando a barriga. Juliana atacou-lhe com mais carícias no peito, e enquanto as fazia, começou a encontrar marcas de ferimentos e dentadas, tanto na barriga como nas patas do dragão.


– Tadinho… Deve doer, não é? Eu vou cuidar muito bem de ti! Vou-te levar para casa, dar-te um banho, e a mãe vai ajudar nessas feridas e…


O Cyclizar foi com o focinho á roupa dela, puxando pela área do bolso do casaco.


– Não puxes! – pediu-lhe, a rir, mas não conseguiu dizer um não a parecer zangada, de tanto que estava a amar a ousadia do bicho. – NÃO! Isso não! Vais rasgar-me o casaco!


Era tarde demais, os dentes afiados penetraram no tecido, fazendo um rasgão enorme de onde o dragão removera uma sanduiche.


A sanduiche podre e bolorenta.


A mesma que Tolya lhe tinha dado à meia hora atrás.


– Olha o que fizeste! Rasgas-te o meu casaco! Por causa disso? Não queres comer isso?!... Não queres, pois não?... – Juliana disse, observando atenciosamente os movimentos do grande Pokémon encarnado.


O Cyclizar estranho deixou a sanduiche cair na areia à sua frente.


Olhou para Juliana, lambendo os lábios escamosos.


A face tão mimosa do Pokémon para a humana era como um grande agradecimento pela refeição. Tolya sorria imenso por saber que ele queria a comida dela, enquanto Tamar afastou-se devagarinho com ar enojado, perturbado por imaginar que a treinadora ia levar aquele grandão para casa.


– Amigo, vais ficar intoxicado se comeres isso… – mas quando a humana deu o aviso, era tarde demais.


O Cyclizar arrancara a sanduiche da areia e a engolira toda sem mastigar.


A jovem recuou mais, tal como o Krokorok, num mesclar de nojo vinda daquela visão. E a Sandile deu um pulo, por ver que finalmente alguém a compreendia e gostava do que ela fazia. Apesar da situação repugnante, sentiu um alívio grande por ver o dragão recuperando suas forças em poucos instantes, já que agora ele conseguia pôr-se em quatro patas sem esforço – algo que não parecia possível minutos atrás.


Começou a sorrir, imenso, por ver que ele estava bem. Muito bem.


Pelo menos, antes de notar que o bicho começara com náuseas.


O Cyclizar estranho soltou todo o seu almoço no meio da praia. Juliana recuou antes de apanhar com algum respingo de vómito.


Depois de vomitar tudo o que tinha para vomitar, sacudiu o corpo todo, olhou para Juliana com ar triunfante, passou por ela, lado a lado, e caminhou até a entrada da gruta dos Houndour, onde ficou encarando a escuridão imensa e sinistra que se podia notar no interior.


A humana permaneceu, imóvel, observando todo o lixo que o dragão vomitara à sua frente.


– Parece que ele estava maldisposto porque só quer comer… – Juliana murmurou, decepcionada, pensando que o Cyclizar já se tinha ido embora. Por sorte, não ficara suja, de tão próximo que o dragão soltou aquilo tudo dela.


O vómito lembrava mais um amontoado de entulho do que outra coisa. Papéis, sacos, ervas e folhas de árvores, e rochas eram visíveis em maior quantidade entre os restos de comida. Não era de admirar o enorme ser estar deitado na praia, mal disposto, com tamanha quantia de porcarias que ingeriu aqueles dias todos.


Mas Juliana viu um movimento estranho, não dentro do vómito, mas próximo dele, o que a fez agarrar sua guitarra com força – não por a querer tocar, mas para conseguir controlar sua ansiedade face ao que via.


Ali, as suas desconfianças sobre o sumiço súbito dos Pokémon do Diretor confirmaram-se.


Uma pequena Sprigatito, com imensa dificuldade, saiu de um buraco que existia bem no sítio onde o dragão estivera deitado, chegando-se perto de uns sacos de plástico, atordoada e ofegante, procurando apanhar ar.


Se Juliana não tivesse notado a aproximação da gata vinda do buraco na areia, e só a avistado quando a mesma parou perto dos sacos de plástico, pensaria que esta teria sido engolida inteira pelo Cyclizar, que a tinha regurgitado viva logo a seguir.


Correu até a gatinha, lhe acariciando as orelhas. Apesar de não ter sido expelida, a pequena gata encontrar-se, obviamente, ferida, e muito mal tratada.


Foi uma sorte grande ela a ter encontrado viva. E graças a Arceus que o buraco a salvou de ter sido esmagada pelo peso do enorme dragão. Juliana encarou a superfície da areia, as marcas davam a entender que o dragão escavara um buraco fundo de propósito para a proteger de alguma coisa. Ou então era uma tentativa do lagarto de enterrar o almoço para consumir mais tarde, depois de ficar bem-disposto.


De qualquer forma, o que realmente acontecera já não era tão importante, agora que a gatinha ficaria a salvo, e que a humana estava mais próxima dos outros dois Pokémon perdidos.


– Se tu estavas aqui… Então, sabes onde estão o Quaxly e o Fuecoco?


A gata estava demasiado apavorada para lhe responder, tremendo de uma ponta a outra, com o pelo todo eriçado.


Juliana notara que uma das patas estava ferida, com sangue, e, quando analisou melhor, reparou ser um tipo de dentada muito semelhante à que existia no corpo do Cyclizar.


Uma dentada de Houndour.


Infelizmente não tinha nada para curar as feridas, por isso, tomou a Sprigatito nos braços, a envolvendo no seu casaco. Ter um casaco grande deu-lhe jeito neste momento crucial, pois limpou o máximo que conseguiu do sangue da gata com uma das pontas e a envolveu no conforto da outra.


Depois elevou o corpo e olhou para trás.


O Cyclizar ainda estava ali, de costas, mas a fitando, como se esperasse por ela.



A criatura começou a brilhar, recuperando totalmente as suas energias. Seu corpo modificou-se, ficando mais robusto, igual ao das silhuetas que Juliana avistava nas noites todas que o perseguia. A coroa de penas da sua cabeça realçava-se à luz do sol, junto com uma cauda vasta que chicoteava de um lado para o outro, pronto para desferir um golpe cortante. O dragão agora tinha um ar bem mais ameaçador, e não tão fofinho como antes quando estava deitado e fraco por cima da areia.


A criatura rugiu na direção da gruta, confiante, e deu umas passadas em frente até ficar ainda mais próximo da entrada.


Juliana tentou o seguir, mas suas pernas tremiam imenso, pois ali dentro encontrava-se o lar de um dos seus maiores medos.


– Não queres que eu entre ai dentro, pois não?


O Cyclizar sacudiu a enorme coroa de penas, como se a incentivasse, e o som das penas embatendo entre si ecoou pelas paredes e inundou a praia. A humana depois encarou a gatinha ferida em seus braços, voltando a desviar a sua atenção para a entrada escura entre os rochedos da falésia.


Chegou logo a conclusões.


Conclusões que ela não gostou nada de descobrir.


– Os outros estão ai dentro, não estão?... – a pergunta que lhe inundou o pensamento, saiu mais como uma certeza do que uma questão.


Engoliu a seco.


Se queria ajudar a Sprigatito e salvar os outros do perigo eminente, tinha que entrar ali dentro.


Juliana recuou. Abominava a ideia. Não aceitava. Preferia ficar ali na praia a observar o mar e esperar pelo retorno de Nemona do que entrar no buraco húmido cheio de cães. Mas depois pensou nos pobres Pokémon do Diretor que não tinham culpa de nada e que podiam virar jantar.


Pela expressão do Cyclizar, como se lhe lesse os pensamentos, não existia tempo a perder.


O Cyclizar soltou um enorme rugido outra vez, tão alto, intenso, e apavorante, como o seu último.


A Sandile correu atrás do Cyclizar, que entrou em passos pesados, pronta para ação. O Krokorok empurrou a treinadora, com todas as suas forças, na direção do interior, antes desta levar com os enormes rochedos em cima, pois a parte de cima da gruta começara a se desmoronar.


Outra parede instável, frágil ao rugido do grande Pokémon. Por sorte, desta vez Juliana notara a tempo o perigo que corria e deixou-se levar para onde Tamar a guiava, cerrando os olhos e encolhendo os ombros.


Tossiu um pouco ao respirar a poeira. Encontrava-se no meio do bafo da gruta, quando, depois de muito tempo, tomou coragem para voltar a abrir os olhos.


O Krokorok agarrava sua mão com bastante firmeza, lhe dando apoio, e a Sandile esfregava o corpo no pé da treinadora, como forma de a encorajar a seguir em frente ao lado deles.


Vai ficar tudo bem, Lady Juliana. Estamos aqui! – foi a energia que o olhar atencioso do Krokorok lhe transmitiu.


Vamos a ação! Sim? – a pequena Sandile abriu a boca, assoprando envolta de entusiasmo.


Atrás de si, a única entrada que conhecia tinha sido bloqueada por uma derrocada. Uma pequena fissura deixava claridade passar, mas era difícil e perigoso escalar as rochas para passar por ela até o exterior.


Não tinha volta a dar.


Juliana deu umas caricias nas orelhas da Sprigatito, depois ajeitou melhor sua guitarra. O Cyclizar estranho esperava por ela, metros à frente, com uma pose feroz capaz de encorajar o mais cobarde dos humanos.


Não existia mais nenhuma opção do que seguir em frente.


A humana engoliu em seco, mais uma vez.


Ainda tinha esperança de Nemona aparecer no virar da próxima esquina, mais à frente na gruta, para a salvar daquilo tudo, já que Nemona parecia uma treinadora corajosa e muito mais experiente, capaz de domar qualquer perrito que surgisse no caminho.


– Vamos então. Quanto mais rápido sairmos daqui, mais depressa voltamos para casa.


Respirou fundo, tomando coragem para iniciar então a caminhada na direção dos Houndour.

 


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  1. E começa a caçada da Juliana em busca dos iniciais perdidos. Pela cara que a Nemona fez, se o Clavell descobrir o que aconteceu a coisa vai ficar feia pra novata!

    Foi legal demais ver essa interação inicial entre a Juliana e a Nemona. Elas são tão opostas que combinam perfeitamente! É aquele equilíbrio bem interessante entre duas personagens que você percebe que já tem uma química logo de cara. O jeito extrovertido da Nemona pode ajudar a Juliana a superar aos poucos suas próprias inseguranças, de modo que acelere o desenvolvimento e amadurecimento da protagonista.

    E por último, mas não menos importante, já temos um novo traço da Juliana descoberto aqui: sua fobia a caninos! Você conseguiu trazer muito bem a sensação de alguém que possui uma fobia. Não ficou forçado, e ainda assim passou com clareza tudo que a Juliana estava sentindo nessa situação. Você está conseguindo trabalhar muito bem a personalidade dos personagens humanos, estão tão boas quanto as dos Pokémons!

    Mais um ótimo capítulo, Shii!

    Até a próxima! õ/

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    1. Se a Nemona está boa, é graças a si, senhor Sombrinha O Revisor magnifico! kkk

      Ainda sinto muito a dificuldade em personalidades, por isso estou a tentar um cuidado extra, principalmente nos Capítulos seguintes. Ainda sinto que estou a descambar vez ou outra em algumas partes, mas praticando eu chego lá.

      Minha regra numero um da fobia e timidez da Julie é evitar deixar isso um alivio cómico, estou cansada de ver as pessoas tratando esses problemas como tal. Admito que já cometi o erro (várias vezes, até) no passado, e por vezes eu ainda entro na ratoeira, mas estou a ver se mudo meus padrões.

      Muito obrigado pelas palavras gentis! E todo o apoio! É sempre importante contar com ele! Fico muito feliz em saber que tenha gostado. Agora só esperar para ver se Julie consegue passar bem na Inlet Grotto. Com todo o nosso apoio, tu consegue, Julie! Vamos a isso!

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  2. Oi, Oi Shii!

    Eu não sei se essa coisa do desaparecimento dos starters é algo game, se for, está realmente muito legal e tem os meus parabéns, já se não for, lhe dou o dobro dos parabéns para a criatividade, de uma maneira ou de outra, está tudo perfeito.


    Porque eu digo isso?

    Porque a busca pelos iniciais perdidos se relevou ser um elemento crucial para o desenvolvimento da trama, e a introdução da fobia da Juliana em relação aos caninos acrescentou ainda mais profundidade à personagem, deixou ela muito mais humana e até me aproximei mais da personagem porque quando era pequeno já tive medo de cães kkkk.

    Nemonaaaaa, adorei a maneira como está trabalhando com ela, e a sua visão sobre a personagem. A interação entre as duas, Juliana e a Nemona, também foi bem escrita e divertida, com um equilíbrio interessante com personalidades opostas, posso dizer opostas?

    Enfim, ótimo capítulo e estou partindo para o próximo.

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    1. Não faz parte do jogo, no jogo tu desce Cabo Poco com os starters atrás do rabo até a casa da Nemona, e na casa da Nemona eles meio que ficam explorando o jardim da mansão. Ai eu pensai: e como seria se eles se aventurassem mais cedo e acabassem desaparecendo por causa disso? É que eles pareciam bem agitados kkk Eu precisava daquele toque na história que ajudaria a levar a Julie a encontrar tanto a Nemona como o Koraidon.

      Afinal nem todas as histórias das fanfics tem que seguir o jogo não é mesmo? Anyway, Obrigado pelo comentário Welfie!

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