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- A escritora que não conseguia escrever - Outras Histórias e Textos - Escrevendo Pelas Palavras
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Sinopse: Tanto um dia, ela poderia ser a escritora que já não sabia escrever... Como no outro, a escritora que conseguia escrever de tudo.
O lume brando abanou numa leve brisa, fazendo todas as sombras do escuro cómodo dançarem ao redor de si.
Ela bem queria intensificar a chama, mas o óleo da lamparina já ia em pouco e precisava durar mais uma semana, pelo menos até a próxima paragem para abasteceram e recuperarem a reserva. O ideal seria mesmo, naquela escura noite, deitar-se e apagar a mesma para a poupar, mas algo em seu interior demonstrava um desejo profundo em se manter até o amanhecer sentada na sua secretária, em frente a uma folha de papel.
Uma pálida folha de papel, tão vazia e assustadora como a própria escuridão que a circundava além da chama da pequena lamparina, única fonte de luz que detinha em mãos.
A mulher suspirou, encarando o desafio que tinha em frente. Cada linha em branco chamava por ela, ansiosa em ser preenchida por grandes conjuntos de palavras que dariam vida a personagens do seu imaginário.
Detinha alguns lápis e canetas, além de uma máquina de escrever, mas sempre preferiu a boa e velha pena e jarro de tinta. Acreditava que tal processo arcaico dava um charme maior a seus manuscritos - cada pincelada entregue na superfície lisa, uma onda de prazer emanada, e ela não precisava de sentir mais nada… Além de esperar o momento certo para dar vida á pena nas asas da sua inspiração.
Molhou a ponta na tinta nanquim - também em pouca - e tentou rabiscar qualquer coisa. Mas o branco vazio encontrava-se tão intenso que era difícil dar luta. Parou pouco tempo depois, e insatisfeita com as pouquíssimas letras que finalmente conseguira, deitara o papel fora, atirando-o, amaçado, para o interior de um balde já cheio de papelada. Todas num machucado estado igual, e de tão cheio que o balde se encontrava, muitas dessas bolas descartadas rolaram no chão até o outro lado do cómodo.
Elevou o corpo, e abriu a janela. Precisava de apanhar ar. A carruagem ainda mantinha-se em movimento. De vez em quanto eram sentidos solavancos devido a algum buraco na estrada, mas nada que incomoda-se. Estava a ser uma jornada tranquila.
Olhou para as estrelas e deixou o ar gélido da madrugada embater em sua face, pensando que este lhe iria renovar todos os sentidos necessários em continuar sua obra.
Lá fora, todo o mundo pelo qual passava parecia vazio, tal como ela. Mas… Se ao menos ela conseguisse preencher algo naquele mundo…
Perdera a noção do tempo, á quantas horas estaria acordada? Será que dormir até o amanha não seria uma solução para seu bloqueio criativo?
A mulher foi com a mão ao bolso, removendo uma caixa de cigarros. O cinzeiro no beiral da janela já estava cheio de beatas, indicando que já fumara mais do que aquilo que devia naquela noite. Familiares e amigos á muito a avisavam para parar de fumar, que era prejudicial e só trazia gastos e problemas, ela não ganhava nada com aquilo, mas ela não conseguia ainda evitar tal vício.
Por instantes, até que a verdade seja dita, ela hesitou. Será que devia poluir o ar ou continuar a apanhar com o vento puro? Voltar para sua secretária e tentar mais uma vez escrever em vão, em vez de manter-se a procrastinar?
Acendeu o cigarro mesmo assim. Inalou o fumo e segurou-o alguns segundos antes de o soltar para fora, esvaziando seus pulmões num longo suspiro. O vento da carruagem fez metade do fumo entrar no interior, a outra metade desvaneceu para longe como uma nuvem.
Sentia-se fracassada, já escrevera tantos trabalhos, tantos rascunhos, muitos nem veriam a luz do dia numa publicação se não tivessem a oportunidade perfeita… Porque é que acontece? Porque é que tal bloqueio voltava sempre a acontecer? Podia-se dizer que já era considerada uma escritora bem-sucedida, com alta experiencia, mas o sucesso nem sempre vinha com a resposta certa a todos os desafios ou segredos que apareciam no caminho desde o início.
Autores bem mais experientes do que ela costumavam dizer que nem tudo se conseguia exprimir por palavras, por isso era um desafio enorme fazer as palavras exprimirem parte de todo o sentimento que elas não conseguem exprimir.
Tragou outra vez o cigarro. Parte da sua nuvem de fumo voltou a inundar o cómodo. A chama oscilou outra vez, minúscula, como uma pequena estrela. Desviou sua atenção da lamparina e encarou o céu. O vasto universo, tão cintilante sobre si.
No horizonte, entre enigmáticas montanhas distantes e florestas desconhecidas e sem nome, pôde notar um primeiro resquício de amanhecer. O céu aos poucos mudava de cor, abraçando as cores da alvorada, entregando um novo dia. Por instantes, lembrou-se do movimento da lua, das estrelas, da chuva, do céu... Do interminável círculo que era viver… Pensamentos passageiros de alguém ensonado, aquelas coisas que surgiam do nada quando menos se espera em nossas cabeças, mas que tinham sempre fundos de verdade.
Quando terminou o cigarro, voltou a sentar-se na secretária, sentia-se estranhamente revigorada. Acompanhar aquela parcela do amanha fora bem inspirador.
Do nada, notou que a folha de papel já não estava tanto assustadora assim, pelo contrário, que era capaz de preencher aquele pequeno pedaço de papel simplório com tudo o que lhe viesse á cabeça.
E antes que pudesse se esquecer, molhou a pena e anotou o pequeno facto que acabara de se aperceber.
‘’Vivemos num círculo’’
Amava escrever, era sua paixão e não queria desistir de tal como muitos faziam mal se sentiam rebaixados. Se ela desistisse, quem iria contar todas as histórias que só ela poderia contar? Quem iria escrever as mensagens e lições de vida de certa maneira, maneira á qual só ela podia usar para os outros ajudar? Quem iria dar vida aos personagens que só ela podia e conseguia criar?
Depois daquela frase, sentiu mais uma nota tocar em sua cabeça. Finalmente, o chamado de uma nova melodia, o clique abençoado dos artistas. E depois do ‘’Vivemos num círculo’’ escreveu naquela madrugada tantas palavras seguidas que seguiam fielmente o que ela desejava criar… E concluiu mais um capítulo.
Sentia-se melhor do que nunca.
Mas sabia que era passageiro… Tal como a tristeza e a felicidade, ambos não duravam para sempre e se complementavam um no outro, trocando constantemente de lugar.
Mais tarde podia voltar a regredir, quando cansada, ficaria outra vez desmotivada. Mas depois da noite escura, o dia voltaria, e a melodia da inspiração animava a pena e a sua tinta entre os dedos.
E sentir-se-ia melhor do que nunca outra vez.
Finalmente compreendia que tal fazia parte do ritmo próprio do processo natural das coisas.
Tanto um dia, ela poderia ser a escritora que já não sabia escrever.
Como no outro, a escritora que conseguia escrever de tudo.
E com cada folha branca em mãos, só tinha que persistir para se manter dentro do círculo, e nunca desistir de amar combater aquilo.