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- Uma pequena viagem com Boa Sorte - Outras Histórias e Textos - Escrevendo Pelas Palavras
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Sinopse: Um pequeno trevo de quatro folhas auxilia uma adulta a ser a criança que foi outrora.
Era uma tarde escura. Outro dia de trabalho dado como concluído. Uma rotina entediada. O melhor detalhe, e isso era a única coisa que a deixava mais animada, era que no dia seguinte, era um dia muito especial, pois era o glorioso dia da sua folga.
Uma tão boa, esperada e estimada folga.
Um dia sem horários, um dia sem trabalho, um dia sem quaisquer preocupações… Ou, pelo menos, era assim que ela tentava ver e pensar que assim o fosse.
Emília fechou a porta de casa, deixou suas coisas penduradas no cabide da parede e foi logo atirar-se ao sofá. Descalçou os sapatos apertados através de uma simples sacudidelas de seus pés, e estes voaram pelo tapete em pontos completamente aleatórios do espaço.
Ela só queria relaxar.
Só era uma pena que relaxar o corpo não era a mesma coisa que descansar a alma.
Depois de recuperar o fôlego da sua caminhada (pois Emília não tinha carta de carro) deixou-se escorregar pela superfície confortável do sofá até o chão. Com toda a fadiga que existia em cima de si, levantar-se do chão duro era mais motivador do que levantar-se do próprio sofá. Mas ainda assim, deixou-se ali mesmo estirada, ainda durante uns bons e longos minutos, de barriga para o ar, fixando o teto ao mais minucioso dos seus detalhes.
Estava cheia de fome, mas não tinha nada decente dentro do frigorífico para comer, tirando, talvez, uma fatia de pizza ressequida e uma salada verde feita semana passada, cujas folhas de alface encontravam-se mais murchas que a pele do seu velho patrão.
Tentou desviar a imagem do patrão da cabeça.
QUE NOJO.
Lá estava ela outra vez a pensar em TRABALHO.
Nem fora dele ela conseguia desviar o pensamento, e muito menos a imagem traumatizante que podia ser encarar a cara daquele homem, toda enrugada, de olhinhos caveirados…
Seu corpo não trabalhava, mas sua cabeça, sim.
Obviamente. Sempre.
Será que deixara tudo organizado para a pessoa do turno seguinte? Que deixara alguma preparação inacabada na lista? E então em relação á lista de compras? Ela não podia ter-se esquecido de nenhum produto ou ingrediente de lado, pois tal era crucial para qualquer receita do menu…
Melhor prevenir do que remediar.
Esta era a regra, caso contrário, ninguém teria em sua frente, sentados á mesa, as refeições que ambicionavam provar.
É… Trabalhar num restaurante não era uma tarefa nada fácil… Ao contrário do que pensava muita gente que só lá entrava para comer e nunca prestava atenção ao esforço dos empregados.
Horários que não eram fixos, punhados e mais punhados de horas extra que nunca eram pagas nem tiradas, pequenas coisas aqui e ali que tinham um impacto enorme em toda a equipa se fossem descuidados…
Mas pensar em trabalho não era o que Emília queria.
DESTA VEZ NÃO!
NÃO NÃO E NÃO!
Se assim continuasse…
Ela estava a começar a dar por si em doida!
Nem sequer no seu próprio dia de folga ela descansava a sério. Semana passada recebera umas mensagens de uma colega tagarela a fofocar o trabalho de uma novata sem experiencia a servir ás mesas e a reclamar o quanto tudo estava um caos…
Mas o que ela podia fazer para realmente se distrair?
Emília respirou fundo, e soltou lentamente o ar.
Inspira. Expira. Inspira. Expira.
Ela precisava daquele trabalho. Os tempos estavam difíceis. Se bem que mudar de vida era uma ideia bem tentadora…
Inspira. Expira. Inspira. Expira.
Emília abriu então os olhos num impulso, precisava MESMO de algo para se distrair.
Inspira. Expira. Inspira. Expira.
E depois… O seu estômago…
BURRP buuurrrrppppppp
Levantou-se num salto e correu até o frigorífico e enfiou todos os restos que tinha lá dentro pela garganta abaixo.
Não era muita coisa, no dia seguinte ela teria que ir ás compras... Mas ela estava mesmo com fome, muita fome, e a fome estava a lhe fazer mal. Depois de saciar a fome, bebeu um refrigerante de ananás e complementou aquela refeição com pão recheado por uma banana meia podre que estava se estragando na fruteira.
Depois, por algum motivo (talvez por ter tomado sua ceia demasiado rápido), ficou maldisposta e dirigiu-se até o jardim para apanhar um ar.
Jardim por assim dizer… O local era cheio de plantas daninhas, fruto das horas e mais horas que ela ficava longe de casa e só ia a casa basicamente para passar a noite.
Sentia a falta de pegar na pá e numas luvas e recuperar o espaço com uns minuciosos gestos de jardineira, mas o cansaço constante era mais forte. Até árvores cresciam ali, pois todo o cenário lembrava um mato cerrado e ela não tinha ninguém com quem falar para lhe ir arranjar aquilo.
Ela precisava mesmo de mudar sua rotina, nem que fosse só por um bocadinho.
Deixou o vento embalar seus cabelos.
Passado algum tempo, sentiu-se mais leve.
Há quanto tempo ela não sentia as energias do universo embatendo em si?
Casa, trabalho, trabalho, casa. Acordar, comer, trabalhar, chegar a casa, dormir, acordar, comer… E era assim que o seu círculo vicioso seguia.
E o tempo passava por ela. Sem ela se aperceber.
Vivia uma vida tanto atarefada que se esquecera dos simples prazeres da vida.
Arrancava uma plantinha num dia, ficava logo cansada e sem vontade de fazer mais nada, e, quando voltava a ganhar energias para retomar aos arranjos do jardim, o espaço outrora arrancado já estava preenchido de novo com as malditas plantas indesejadas que cresciam rápido demais.
Em dias normais, ela ia ali apanhar um pouco de ar, mas logo dava meia volta e fechava a porta, sempre a pensar que em breve iria se meter a trabalhar aquela terra… Num breve que nunca chegaria.
Mas naquela hora tardia a sensação do vento a envolvendo era tão gostosinha… E assim, sentou-se ali mesmo mais algum tempo quando notou as pernas fracas a ficarem bambas. Deixou a vista escurecer mais até o anoitecer abençoar o mundo.
Não trabalhava no turno da noite naquele dia…
Será que eles estavam a ter muita clientela?
LÁ ESTAVA DENOVO O PENSAMENTO.
Sentindo-se frustrada com seu próprio cérebro e deu um chute súbito no chão. Nem naquela natureza selvagem do que outrora fora um jardim domado, ela conseguia desviar seus pensamentos de TRABALHO, TRABALHO, TRABALHO, E MAIS TRABALHO!
Resmungou qualquer coisa entre dentes, quando observa uma pequena coisa estranha entre as plantas, no espaço onde dera o chute.
Algo chamativo, e ela não se conteve em ir até lá com a mão e arrancar da terra um pedaço de plástico antigo, desgastado pelo tempo, composto por quatro folhas em formato de coração.
Um trevo de quatro folhas?...
Um trevo… de plástico?...
Seria um brinquedo perdido?...
Parte de algum quebrado, na verdade.
Interessada na sua descoberta, tentou recuar na memória sobre o que será que este seria. Quando ela era criança costumava brincar muito na rua por ali. Era normal encontrar algum lixo que ficaria perdido pelas mãos de uma miúda energética, curiosa, que corria e explorava todos os recantos e ainda desconhecia o que era mesmo o mundo e suas reais dificuldades.
Eram tempos diferentes, tempos mais simples.
As tardes inteiras pareciam durar muitas mais horas do que as tardes dos dias de folga que ela vivia hoje. E ela sempre imaginava seus reinos, que eram sua escapatória da realidade, dentro de sua cabeça…
E sempre imaginava dragões ou fadas que habitavam por ali.
De repente, após escarafunchar, bem fundo, nas suas lembranças, ela lembrou-se…
Aquele trevo de quatro folhas era parte de um boneco… O Coração Boa Sorte!
Mas quem era o Coração Boa Sorte?...
Levantou-se, e foi até o sótão da casa numa correria.
O local empoeirado não continha quaisquer pegadas entre a espessa camada de partículas no chão, denunciando o quanto ninguém por ali passava á muito tempo, como também, dizendo que o mesmo necessitava de uma organização e limpeza profunda.
Uma grande e pesada caixa de plástico transparente encontrava-se dentro de um guarda-fatos velho com uma porta quebrada. Ela não sabia os motivos de ainda guardar aquele guarda-fatos, mas deu de ombros, e puxou a caixa com esforço, limpando a sua superfície.
Espirrou devido á camada de poeira levantada a lhe penetrar o nariz, mas logo depois, Emília sacudiu os cabelos, e sorriu. A caixa estava carregada de memórias da sua infância. Brinquedos antigos, desde peluches, bonecas de porcelana, a minúsculas figuras de animais, além de muitos brindes daqueles que em outros tempos vinham em caixas de cereais de pequeno-almoço.
Entre todos, um dos brinquedos era um urso verde, com um trevo de quatro folhas estampado na sua barriga.
O coração Boa Sorte pertencia a um dos desenhos animados que mais assistia durante a tarde quando ela devia ter uns 10 anos, e depois de muito suplicar aquela figurinha aos pais, tornou-se, nada mais, nada menos, que um dos seus companheiros favoritos da infância.
Emília limpou o trevo de plástico esbranquiçado da terra em excesso, e encaixou com todo o seu cuidado no urso. O objetivo do brinquedo era a peça em forma de trevo ficar por debaixo do ursinho, servindo de base, como se este estivesse suspenso no centro de uma grande flor colorida.
Parou algum tempo contemplando a obra. Era difícil acreditar que tinha recuperado pelo menos aquela figura que tanto a encantava em nostalgia.
Depois de tantos anos separados, este brinquedo tivera sorte, estavam novamente unidos. Muitos eram perdidos de tal maneira que nunca recuperariam suas contrapartes.
A adulta encarou o restante da caixa.
Quantas mais memórias ela ainda guardaria por ali?
Quantos mais brinquedos seus estariam estragados? Será que mais algum também teria a mesma sorte do urso no seu processo de recuperação?
Será que faria muito mal um adulto sair da sua tediosa rotina e prestar atenção em todos aqueles tesouros?
Emília voltou a sorrir, colocou o Coração Boa Sorte ao seu lado e, pouco a pouco, foi removendo os outros brinquedos da caixa.
Teria uma restante tarde ocupada. Bem ocupada. Longe de preocupações, fazendo algo diferente da rotina, sem pensar nas obrigações que a vida lhe dava… Sem pensar em TRABALHO nem em nada do género.
Finalmente, por puro acaso, acabara achando algo que a iria descontrair e desanuviar a cabeça, mesmo ela tendo perfeita noção de que não seria por dias a fio, como ela mesmo precisava.
E assim, viajou com aqueles brinquedos ao lado de Coração Boa Sorte, pois cada um, no seu pensamento, a levava a memórias preciosas que não voltariam mais, e a brincadeiras feitas em outrora.
Voltara até tempos onde simples prazeres da vida não eram tanto ignorados como ela os fazia em sua vida adulta.
E assim, relembrou-se de todas as simples sensações que na época sempre lhe abençoavam. Na altura eram completamente ignorados igual um nariz, pois sempre existiam á frente dos olhos, mas deixavam de ser vistos.
O vento a soprar por uma janela aberta, o sol queimando a pele nas longas tardes de verão, o farfalhar das árvores, o cansaço depois de longas corridas atravessando o jardim, as pedras duras debaixo dos pés após escalar as paredes…
Era impressionante como, depois de tanto tempo sem pensar neles, agora, longe dessas sensações, tornavam-se experiencias completamente novas e diferentes ao serem reencontradas nas profundezas da memória.