Posted by : Shiny Reshiram 10 de abr. de 2024



Escrevendo pelas palavras é uma compilação de exercícios que visam desenvolver a minha escrita criativa e consistem, basicamente, em selecionar uma ou mais palavras aleatórias, escrevendo um pequeno texto baseado nestas.


Vez ou outra, podem ser ser escritos textos e contos mais completos como é o caso deste


    Para saber mais da proposta deste quadro no blog, e conferir a lista completa de todos os exercícios ou excertos publicados até corrente data, clique aqui!



Sinopse:

Todos os dias, boas e más notícias entram e saem do salão de cabeleireiro do senhor Rui Raposo.


Imagem NÃO É de minha autoria. Créditos ao respetivo artista.


Notas da Autora


Esta é a minha primeira vez participando nos desafios do Spirit Fanfics (Desafio de Abril de 2024). Também é a minha primeira vez escrevendo uma Fábula, se é que este texto pode ser mesmo considerado uma...


Os temas ‘’Fábula’’ e ‘’Mãe Natureza’’ despertaram meu interesse e acabei por os interligar a uma ideia que eu já tinha á algum tempo, o que foi desafiador e divertido ao mesmo tempo, para a lição de moral que eu pretendia.


Tirei inspiração de um episódio do desenho animado Hora de Aventura onde o personagem Jake é cabeleireiro do Finn, como também das minhas próprias experiencias, vulgo, idas ao cabeleireiro. (e sim, arranquei mais umas ideias aleatórias de Beastars e Zootopia, acho que aqui e ali algumas dessas influencias são claras).


Espero que gostem! E eu agradeço qualquer tipo de crítica construtiva, pois sei que o texto ficou demasiado extenso e com demasiados acontecimentos a ocorrer ao mesmo tempo para uma simples Fábula. (fiquei inspirada e a coisa apenas fluiu e se foi estendendo nas frases, diálogos e ideias)


Boa Leitura!


!!!!

!!!!!!!!!!!


Esta história tem conteúdo controverso/sensível e pode ser um gatilho a leitores mais frágeis!

Leia com moderação!



              ‘’Rui Raposo’’.


Estas eram as palavras que a matreira raposa pintava no letreiro do seu recém-aberto estabelecimento, em tinta bem vermelha, pois Rui Raposo era o seu nome, e o nome pelo qual queria que seu pequeno negócio fosse conhecido.


              Virou a etiqueta encontrada no vidro da porta. ‘’Fechado’’ passou a ser ‘’Aberto’’, e as palavras ‘’Descontos até 50% para os primeiros vinte clientes’’ eram visíveis em letra bem carregada no centro da superfície transparente.


Senhor Rui Raposo lambeu as beiças, endireitou os finos bigodes, vestiu o avental, e entrou no seu salão, aguardando apanhar alguma das ovelhas da vizinhança desprevenidas. Fazia muito tempo que não se alimentava em condições, e já criava água na boca só em imaginar as pobres coitadas caindo em sua armadilha.


A porta foi aberta.


Aguardou e aguardou.


Nada.


Aguardou e aguardou.


Nada.


Talvez seu plano fora um fracasso total e todas já o haviam descoberto muito antes de este ter a oportunidade de por seu plano perverso em prática.


Até que por fim a sineta da porta tocou, anunciando a chegada de alguém!


Finalmente alguém!


Sua primeira cliente!


Sua primeira refeição do dia!


Rui Raposo, cheio de entusiasmo, apressou-se a expor a sua mesa de refeições e preparar tudo numa sala á parte nas traseiras. Atendeu logo depois em seu salão uma velha ovelha de lã branquinha como neve, já de tesoura na mão, dando uso a seu disfarce.


– Ora viva, senhor Rui Raposo! – Disse a velha ovelha, que se chamava Olívia – ou apenas Holy entre os mais chegados – sentando-se na cadeira e deixando a raposa tocar-lhe na lã fofa, apreciando disfarçadamente a gordura e carne que em breve seria sua, escondida debaixo daquele monte farto de algodão. – Um corte simples, por favor. – Pediu.


– A senhora quer deixar sua lã mais curta? Ou cortar apenas as pontas? Quer um corte escadeado? – Rui Raposo questionou, divertido, pedindo mais instruções, pois ‘’um corte simples’’ não era uma ordem com lá muitos detalhes que enquadrassem ao dever que ele encenava.


Ainda não queria agir, para já, tirando a vida a tal animal como bom predador que era. Primeiro, tinha que construir confiança da população local, e só depois o tempo diria a oportunidade certa.


– Só simples, por favor, como achar que ficará melhor em mim, amigo raposa.


Ele encolheu os ombros, com ar confuso, e assim foi, sem ele querer pressionar mais a sua primeiríssima cliente, pois calculava que esta estava nervosa e desconfiada, e em qualquer momento podia desatar dali a correr avisando todos do vale do perigo eminente, algo que ele não queria que acontecesse.


Primeiro, ganharia confiança do rebanho, e depois, uma a uma, as apanharia.


O tempo que tal demorasse seria bem recompensador no final.


Um corte ali, outro acolá com movimentos minuciosos de sua tesoura, e lá em tufos fartos a lã foi caindo ao chão, até a nobre ovelha Olívia sentir-se mais leve e satisfeita. O próprio Rui estava impressionado com sua própria técnica, mesmo que ele não tivesse estudado grande coisa para construir tamanha armadilha.


E enquanto o senhor raposa trabalhava, lá a ovelha ia reclamando sobre a sua vida, pois não tinha ali mais ninguém com quem falar para ver o tempo passar, e ela não era grande adepta de se manter em silêncio, principalmente debaixo do respirar de um predador. Mas ela reconhecia seus riscos.


– Uma das vacas da pastagem está sempre a sujar a água do rio onde bebemos. É nojento… Já a avisamos para não o fazer, mas todas as manhãs ela vai lá molhar as patas. Maldita seja, já faz de propósito! Nós e os outros animais do vale ainda apanhamos uma doença!


Rui Raposo coçou a orelha, pensativo.


– É a vaca Violeta? Sim, já a vi inúmeras vezes no rio.


– Mééé… Mééé… Ela mesmo… Mééé… – Confirmou Olívia, com certo receio em confirmar, o que a deixou com a sua vozinha rouca. E Rui Raposo notou que ela sempre soltava um Mééé quando estava insegura no que ia dizer.


– Talvez instalar uma lagoa no centro dos pastos não seria uma má ideia para afastar as vacas do rio. Ou pelo menos, para nos certificar-mos se o ato é mesmo proposital. – Sugeriu ele. – Por vezes também vou lá beber, e aquela lama toda deixa-me enjoado.


– Uma lagoa? Nunca tínhamos pensado nisso. Vou levar sua sugestão até o concílio dos animais. – Olívia fitou-o com ar de espanto, através do espelho á sua frente. Além do mais, estava a adorar bastante o resultado do seu corte. Arriscar sua vida para vir ali tinha valido a pena. – Duvido outros animais aceitarem uns ficarem com água fresca e outros não, por ser contra as leis de nossa comunidade, mas elas são… Mééé… Mééé… Vacas… Mééé… é algo que podemos tentar, não é como se aquelas imundas realmente dessem pela diferença… Mééé.


Pouco depois dos retoques finais nos seus fios de lã, a ovelha agradecida, aprontou-se para sair.


– Quando o rebanho recebeu a notícia que seu salão de cabeleireiro seria aberto, muitos dos meus camaradas duvidaram do senhor, tanto que nem ousaram pôr aqui os pés. Mééé… Mas se o senhor realmente quisesse o nosso mal, calculo que já o teria feito. Mééé… – Disse, entregando-lhe uma boa bolsa cheia de moedas de ouro.


Ele aceitou-as e contou-as, sem pestanejar.


– Não, não. São só metade das moedas devido á minha promoção de abertura. – Disse, com um fingido ar inocente, apontando para a placa da porta.


– Fique com elas por gorjeta. O senhor é gentil por natureza e um bom ouvinte. Não imagina o escândalo que dá no rebanho se eu falar mal daquela vaca que nos suja sempre a água. Mééé… Agradeço profundamente, descobrir que alguém concorda comigo foi a melhor coisa que me ocorreu esta semana. Que a Mãe Natureza o abençoe em sua jornada.


Rui Raposo digeriu aquelas palavras, tocado. Viu a ovelha ajeitar seu cachecol ao pescoço e desaparecer pela porta com um sorriso no rosto.


Ele podia habituar-se facilmente a isto todos os dias, pois receber assim tanto fora um cálculo inesperado em seus planos.


Com todo o dinheiro que ganhasse de tal maneira sensata, dava para comprar carne ao mercado dos carnívoros, e assim ele não precisava de sujar as patas a caçar para combater a sua fome e muito menos manchar mais o seu título individual de predador ao atacar animais inocentes.


O restante do dia foi calmo, sem clientes, e Rui Raposo fechou a porta cedo e foi para casa dormir, com a barriga vazia mas com a sua bolsa cheia e o coração tranquilo, pois a vida de predador era solitária, e partilhar uma opinião pessoal com uma velha ovelha era uma virada refrescante na rotina.


No dia seguinte, passou pelo mercado bem antes do sol nascer para comprar algo para o pequeno-almoço, sem imaginar que, quando voltasse a abrir o seu salão de cabeleireiro, teria uma fila enorme de animais á espera, ansiosos, por um corte de cabelo seu – todos interessados devido á boa palavra que a velha ovelha espalhara ao longo dos verdejantes campos do vale.


A fila era tão grande que quase dava a volta ao quarteirão, e lá o pobre Rui Raposo pôs mãos á obra no trabalho, com poucas pausas, para todos eles despachar dali com panteados extravagantes e vistosos – autenticas obras de alguém que parecia já talentoso no ofício.


E com o trabalho e a mão dolorida de tanto a tesoura manusear, as pessoas entravam e saiam satisfeitas, deixando pagamentos fartos. E entre os pagamentos fartos, também vinham as informações privilegiadas.


Ele não podia se esquecer da promoção dos primeiros vinte clientes, e como gostava bastante de tudo o que lhe contavam, ocorreu-lhe começar a anotar qualquer coisa que, não só recebia em dinheiro vivo, como também ouvia e sentia vindo da clientela. Não só por pura diversão, mas para não se perder nos nomes dos indivíduos, personalidades, nas espécies atendidas, suas características, e nos cálculos e controlo de lucros.


Era o dobro do trabalho, mas tudo aquilo podia ser de futura referência para melhorar seus dotes, pois senhor Rui Raposo gostava de ter tudo sobre seu controlo e estar pronto para qualquer tipo de situação.


Em pouco tempo, os vinte clientes já haviam aparecido no salão, mas ele continuou a anotar os números e os inúmeros mexericos mesmo assim, fazendo na mesma o desconto, pois o desconto por si só era tão chamativo que atraia bem mais clientela.


‘’As ovelhas sujam a água toda do rio com sua lã, deve cair quando elas vão tomar banho. Quando nós os bovinos vamos beber, parece que temos o nariz num monte de algodão amargo’’ – Disse uma vaca chamada Violeta, certa vez, mostrando a língua.


A raposa notou alguns fios de lã na boca da sua triste cliente, semelhantes aos cabelos que cobriam o chão do salão, e que Violeta, infelizmente, tinha dificuldade em remover devido a seus cascos grossos sempre que ia lavar os dentes.


– Já pensaram instalar um lago no pasto das ovelhas? Talvez assim elas não sujem as vossas águas. – Sugeriu Rui Raposo, sem raciocinar muito.


‘’As galinhas pensam que são melhores que as patas, só porque põem ovos todos os dias, mas elas não param de roubar nossos ninhos! E depois nós as patas acabamos por criar as crias dos outros sem querer!’’ – Resmungou uma velha mãe pata chamada Patrícia, que trazia consigo uns sete patinhos para apararem as penas.


Um deles, curiosamente, parecia mais um pequeno pintainho do que um pato.


– Talvez vocês patas deviam fazer o mesmo, acredito que as galinhas ficariam bem felizes em cuidar de uns ovos de patinho bebé de vez em quanto. – Disse ele, acariciando o frangalhote com um sorriso.


‘’Aqui no vale anda uma pata muito amiga de um dos galos da quinta do outro lado das pastagens. Até cuida de uma das crias das galinhas companheiras desse galo! O pintainho até já canta como um pato! É esta a nossa juventude…’’– Disse, certa vez, um galo muito idoso de ar antipático e rígido, cuja crista encarnada já tinha sua cor a desvanecer. O nome deste galo era Guilherme.


– Esses casais novos entre espécies andam mesmo esquisitos nesta Primavera. – Soltou Rui Raposo.


E os dias assim foram passando com o sucesso do negócio.


E todos os dias assim era a rotina no salão de cabeleireiro do senhor Rui Raposo.


Mexericos aqui. Noticias ali.


A escrita sobre os problemas e queixas dos outros virou um hábito que ocupava os poucos tempos livres que tinha, tanto que existia noites que ele ficava até depois da meia-noite a anotar tudo o que se lembrava e mais alguma coisa que lhe contavam. No geral, eram assuntos que lhe cativavam bastante.


As vidas dos outros animais conseguiam ser bem interessantes de analisar, e, vez ou outra, no meio da madrugada, ele adormecia em cima do diário, sonhando com perseguições e caçadas divertidas e armadilhas sangrentas onde punha todos os seus conhecimentos em prática.


Apesar disso ser algo que ele não queria voltar nunca mais a fazer, era difícil ter controlo dos seus instintos, mas ver cada um dos seus clientes em seu estômago na imaginação não era uma ideia que o incomodasse.


Pelo menos, para já.


– Enquanto for só em sonhos, estou tranquilo. – Disse um dia, para si próprio, ao acordar, preparando suas coisas para voltar á caminhada em direção do seu estabelecimento.


Mexericos aqui. Noticias ali.


E todos os dias assim era a rotina no salão de cabeleireiro do senhor Rui Raposo.


E os dias assim foram passando com o sucesso do negócio.


– O triângulo amoroso entre a pata Patrícia e o galo Guilherme está a parecer mais um hexágono bizarro! – disse uma coruja que nunca se lembrava de apresentar seu nome, mas que vez ou outra entrava no salão para pedir um corte, depois do anoitecer, mas antes da hora de fecho do salão.


– Não me diga agora que o Guilherme, apesar de dizer ser alguém contra esse tipo de relacionamento, começou a andar com as patas do lago! Estou chocado! – Disse Rui Raposo, com ar debochado.


A este ponto, ele já trabalhara com as mais variadas espécies de animais, e tinha construído uma sensação de confiança indescritível, ao ponto de conversar com todos num tom verdadeiramente seu e não de predador fingido.


– Bom… Eu não julgo as patas… Ele pode ser um velho caindo aos pedaços, mas se eu também tivesse a oportunidade, dava-lhe cá uma bicada!...


– Não seja assim ousada. – Rui Raposo caiu na gargalhada. – Pobre Galo Guilherme… Esse seu bico de coruja pode fazer muitos estragos da forma que é afiado!


– Verdade!… Verdade!… Ele é um pobre saco de ossos. Não aguentaria uma mulher como eu!


E a coruja assim também caiu na gargalhada, ao ponto de ser outra para a lista de clientela habitual.


Quando ele deu por si, já ele era como um grande psicólogo do vale, portador de enorme sabedoria e baú de segredos, onde todos vinham consultar no seu salão e desabafavam seus infortúnios. Todos dialogavam alegremente, enquanto seus cabelos ou penas eram aparados, ou suas garras, cascos e chifres bem polidos (pois ao se aperceber de todo o seu sucesso semanas mais tarde, o senhor Rui Raposo também abrira uma parte do salão dedicada a pédicure!).


Eram poucos aqueles que resistiam a tal tentação, pois tal tentação era uma magia dos cabeleireiros e salões de estética. Enquanto as unhas eram limadas ou os fios de cabelo cortados, suas vidas começavam a fazer parte do conhecimento minucioso de quem cuidava do serviço.


Neste caso, Rui Raposo, que adorava ajudar como podia os companheiros em seus sentimentos através de sugestões aleatórias e mensagens calorosas.


Muito em breve, seu diário seria um autêntico manuscrito de pura fofoca: notícias, desabafos e segredos pessoais que muita gente partilhava sempre com ele.


E a raposa ia ganhando também um certo nível de reputação incrível devido a suas sugestões, muitas pelas quais todos acreditavam que melhorariam bastante a vida no vale e pastagens além.


Mas tal não era exatamente um ponto positivo.


Pode-se dizer que, em certo momento da sua profissão, ser o psicólogo de toda aquela bicharada começou a dar voltas e mais voltas e a caminhar na direção de trilhos inseguros e traiçoeiros.


As estações avançavam.


Rui Raposo chegou ao seu salão, deparando-se com uma paisagem vazia fora da porta. No lugar onde costumava existir uma enorme fileira dos indivíduos do costume na Primavera e Verão, á espera do seu momento de serem atendidos, encontrava-se poças e mais poças de água devido a uma chuva torrencial que afetara a região durante a noite.


Ele abriu a porta, entrou, e fechou-a apressadamente, antes que as ondas de frio poluíssem o salão e seu aconchegante calor.


Limpou a lama das suas patas no tapete da entrada e secou o pelo com uma toalha, aquecendo-se. O temido Inverno chegara ao vale, e os animais já se abrigavam precocemente do gelo e da neve ditado pelas previsões meteorológicas típicas da época, sem saírem de suas tocas e estábulos.


Por outras palavras, teria uma temporada sem receber o mesmo lucro com a mesma frequência de antes. Mas insistiu em manter suas portas abertas, pois ainda tinha sempre a possibilidade de alguém comparecer, mesmo que nenhuma alma viva fosse avistada nas pastagens.


E foram as raras ocasiões que alguém aparecia para pedir um corte de cabelo, o que significava que os dias tornaram-se solitários e vazios. Dias estes que o cabeleireiro passava inventando limpezas e trabalho: muitas vezes, lendo, relendo, e aperfeiçoando o seu diário em tarde inteiras. ‘’Será que todos trarão novas quando regressarem na Primavera?’’, refletia ele, sempre, quando se encontrava fitando as páginas amareladas, sentado em sua poltrona debaixo da luz branda de um archote.


Até que, perto da hora de fecho, numa certa tarde terrivelmente fria e escura, senhor Rui Raposo sentiu a sineta da porta e o salão se abrir para dar a entrada de alguém.


Finalmente clientela!


Levantou-se em sobressalto, com um sorriso no rosto para atender quem chegara, com sua típica simpatia de sempre, até dar de caras com um enorme lobo errante, de pelo cinzento e olhos escarlate.


Seu sorriso desvaneceu-se completamente, mas Rui Raposo ainda procurou manter bons modos.


– O embaixador do mercado dos carnívoros! – Exclamou, com uma breve vénia, reconhecendo bem aquela figura, que devia ser alguém de extrema importância. – É uma honra recebê-lo no meu salão! O senhor quer aparar as garras, ou deseja a minha especialidade: um corte de cabelo?


O lobo era muito maior que uma simplória raposa, e aproximou-se, ajeitando a gola de um belo fato formal que portava e uns óculos na sua face – num jeito que o deixava com um ar estranhamente… Atraente. Suas passadas pareciam criar mini terramotos sempre que proferidas, mas apesar da personalidade valente, pesada e feroz, ele ainda teve a decência de limpar as patas da lama no tapete da entrada e enxugar o pelo, pois devido á chuva exterior, estava encharcado.


– Senhor Rui Raposo. Que prazer estar aqui a o visitar. Um dos nossos clientes mais estimados e… Humm… Frequentes, lá no mercado de carne. – Disse o lobo, com um leve roncar profundo da garganta. Seus olhos analisavam cada recanto e nunca paravam fixos num mesmo local. – Infelizmente não vim contribuir para o seu negócio, que sofre pela estação… Temos umas… Ah!... Burocracias, a tratar.


Voltou a endireitar seus óculos e puxou umas papeladas que trazia numa bolsa que portava consigo, incrivelmente secas em comparação a seus trajes molhados. A raposa fitou-as com curiosidade, pois sabia que ele não tinha dividas, e era demasiado organizado para deixar qualquer conta por pagar fora do prazo.


– Burocracias? O que estas poderão ser? – Refletiu ele, engolindo em seco e encolhendo a cauda, sentando-se numa cadeira que puxou, perto daquela onde o lobo havia se instalado. Pressentiu um mau presságio percorrer-lhe a espinha.


– O senhor simplesmente não está contribuindo á natureza com sua cota. – Disse o lobo, cruzando os braços de forma rígida.


– Cota?... Qual cota? – Ele olhou para os lados, muito confuso e sem compreender nada.


– Não se faça despercebido, Rui. Eu vim aqui, enviado como representante da Mãe Natureza, a nossa gloriosa governadora. Ela sabe de tudo e nada escapa dela. Já não tens nada a esconder.


– A… A… A… Mãe Natureza? – Gaguejou, e começou a suar frio, pois não queria problemas. E a ‘’Mãe Natureza’’ era, claramente, alguém que ele desejava não conhecer a ira que tal poderia impor sobre si.


O lobo lambeu um dos dedos e começou a folhear a papelada.


– Parece que temos queixas anónimas de alguns camaradas entre os canídeos de que uma das raposas deixou de caçar e agora é amiga das presas! O senhor tem noção de que viver somente com dinheiro é contra as leis que a sociedade impõe em sua raça?


Rui Raposo estremeceu mais uma vez.


Sabia de muitas coisa sobre quase todos os animais do vale e bosques que o circundavam, mas nunca se tinha apercebido de que era isto que os outros iguais a ele pensavam. E, ainda pior, o haviam denunciado ás autoridades, pois consideravam seu estilo de vida injusto a todas as raposas que habitavam aquele vale e além.


Mas sentiu-se ainda mais para baixo com aquele detalhe esmagador. Ele era muito organizado, mas não se lembrava que existia lei para tal coisa!


Talvez devia ser por isso que sonhava constantemente com matanças e carne.


– Bom… Senhor lobo… Quer dizer… Nobre representante da bela e grandiosa Mãe Natureza! Não posso contrariar que aqui eu converso com qualquer tipo de animal, mas não são apenas ‘’presas’’ que passam por aqui para cortar o cabelo ou arranjar as unhas, já conheci o mais variado tipo de espécies e posso garantir-lhe que…


– Chega de falatório, raposa! Estas são as ordens. – O lobo rosnou, interrompendo-o. – Tens até o final do Inverno do próximo ano para matar alguma presa e contribuíres para aquilo ao qual és destinado desde nascença, caso contrário, sofrerás consequências.


– Mas quais consequências?... – Ele brandiu, ainda envolto na confusão.


O lobo ajeitou-se melhor no seu assento, adotando uma pose menos rígida. Sua voz grave também acolheu um tom mais calmo e sereno, estranhamente invulgar para um lobo daquela estatura.


– O senhor imagine a seguinte possibilidade: se todas as raposas, de um dia para o outro, decidirem serem como o senhor. Deixavam de caçar e viviam apenas de negócios, por mais sensatos que sejam. Os animais antes mortos pelas raposas teriam sua população aumentada, pois já não estavam mais a ser caçados, o que causaria estragos colaterais no ambiente. Predador e presa é um conceito que existe desde os primórdios da vida e esse conceito tem um propósito. O que existe de pior além do desequilíbrio do mundo?


Senhor Rui Raposo consumiu aquelas palavras, e não procurou contra argumentos.


O lobo, com ar enigmático, deixou a dúvida e o aviso no ar através do seu silêncio.


A pobre raposa baixou as orelhas, e não tirou os olhos do pelo cinzento do lobo navegando pelo salão, quando este, sem mais palavras e muito menos agradecimentos, levantou-se da cadeira e dirigiu-se até a porta, desaparecendo como um fantasma no meio da névoa e do frio que se faziam sentir lá fora.


‘’Um ano é tempo suficiente para abraçares a raposa que és e nasceste para ser. Espero que repenses na questão e contribuas para o restabelecimento da ordem.’’ – ouviu uma voz dizer em meio ao silêncio, dentro de sua própria cabeça. Voz esta com um tom angelical e familiar.


Rui Raposo sabia bem a quem pertencia aquela frase, como também tinha plena noção que estavam todos a ser brandos com ele.


Aquele Inverno acabou num piscar de olhos. E a Primavera veio com todos os seus encantos e as suas novidades. Os animais corriam entre as plantas novas que brotavam no solo outrora carregado de neve, agora derretida, e muitos se divertiam correndo, se alimentando, e se apaixonando, colhendo e apreciando as flores que aromatizavam o ar.


Entre todos os animais Rui Raposo parecia ser o mais infeliz de todos eles. Não queria voltar a ser uma raposa destemida e matreira. Queria continuar no seu salão, a cortar cabelo, a saber boas novas, e a dar conselhos sábios aos amigos.


Não só todos voltavam á ativa na Primavera em todo o vale, como também a clientela habitual regressava ao salão para um corte de cabelo ocasional.


E todos conheciam bem Rui Raposo, e todos sabiam que ele estava mais calado do que antes, e mais pensativo, e menos divertido. Muitos puxavam por ele, mas quando questionado, eram poucas as respostas que ele tinha para dar. Era como se tivesse a perder o brilho que construíra em seu ofício.


‘’O que se passa, senhor Rui? Anda deprimido.’’ – Questionou-lhe o velho galo Guilherme, que não conseguiu esconder a sua curiosidade.


– Nada demais. Só vejo todos a arranjarem uma companheira ou companheiro para a vida e eu ainda não encontrei minha alma gémea. – Inventou ele a desculpa, o melhor que podia, aproveitando a energia da estação. – Queria tanto ter uns filhotes a correrem de um lado para o outro aqui no salão.


Mas o galo Guilherme não acreditou naquela história, pois ele era um galo sábio e muito bem informado sobre os possíveis pretendentes de Rui – quem sabe, um dos reais motivos dele visitar o mercado da carne com tanta frequência. O velho galo conhecia um lado social do amigo que poucos sabiam.


‘’O que aconteceu? Parece que perdeu alguma coisa.’’ – Questionou-lhe a pata Patrícia, outra que também não conseguiu esconder a sua curiosidade.


– A morte de um familiar próximo. – Foi sua resposta, curta e amarga, pois ele não gostava de mentir.


‘’Homem! Que cara murcha é essa! Estás mais abatido que carne de caça!’’ – disse-lhe a coruja, certo dia, depois do anoitecer.


Rui Raposo limitou-se a encolher os ombros e continuar o seu trabalho após ouvir aquilo.


Como era óbvio, um grande falatório começou nas pastagens e terras do vale. E quanto mais os dias passavam, mais complicado ficava a situação de Rui Raposo.


O facto dele ter tido língua grande e se ter metido em assuntos que todos partilhavam acabou na construção de dois lagos, um na pastagem das ovelhas e outro na pastagem das vacas, libertando o rio dos dois ‘’males’’ que o ‘’poluíam’’. Mas não fora apenas isso que sofrera alterações. Uma rede melhorada cobriu o galinheiro da quinta do outro lado do vale, evitando a interação das galinhas com a lagoa dos patos.


No início, o povo só queria ver o pobre cabeleireiro alegre, com a testemunha viva de que todos os animais ouviram suas sugestões e as botaram em pura prática para melhorarem a qualidade de vida da comunidade o melhor que podiam, pois Rui Raposo era muito respeitado e todos gostavam dele e não aguentavam mais ver tal infelicidade.


Muitos fizeram tal esforço para o agradarem, mas em pouco tempo, a mudança tornou-se desastrosa para todos.


A água do lago não era suficiente para as vacas, que também se queixavam da sua má qualidade, e as mesmas forçaram entrada para roubar a água das ovelhas, depois de descobrirem que muitas destas acediam ao rio á socapa durante a noite. As galinhas e os patos entraram em guerra, pois as galinhas odiavam estar confinadas a uma gaiola gigante e lutavam pela liberdade, e os patos não queriam de maneira alguma que os galos andassem misturados com suas fêmeas no lago.


Estes foram apenas alguns dos problemas entre tantas outras peças e peripécias derivadas dos mexericos com Rui Raposo. E quando iam ao salão, era um caos, e em vez de ajudarem, pareciam apenas piorar o estado mental de Rui.


‘’Maldita rede! Não sei como concorda-mos que seria boa ideia! Não posso visitar meu marido! Nosso filhote está tão grande! Ele tem todo o direito em ver o filho crescer!’’ – resmungou uma galinha foragida que habitava no fundo da floresta com suas crias, e não no galinheiro propriamente dito.


‘’A água dos lagos estraga rápido demais. Em dois dias já está cheia de larvas de mosquito! Eca!’’ – Protestou uma das ovelhas das pastagens.


Nesse dia, Rui Raposo fechou o seu estabelecimento mais cedo.


Não estava disposto a trabalhar mais e, pela primeira vez em muito tempo, a ouvir as queixas dos outros.


Ocorreu-lhe á mente sobre o facto de que as suas soluções ás reclamações que lhe foram partilhadas eram mesmo boas, só que o problema se agravava devido á falta de um predador decente naquelas pastagens para botar todos os animais na linha.


Mais uma vez, a pressão da natureza afligiu-o.


E durante a noite, seus sonhos eram cada vez mais pesados e macabros.


O salão começou a funcionar mais por marcação prévia. Fechava mais cedo, até o fechar cedo se reduzir a umas poucas horas por dia, até essas poucas horas serem apenas um ou dois dias que seria aberto por semana.


Muitos calcularam que tal mudança brusca no horário de funcionamento se devia ao surgimento de concorrência no outro lado de uma das pastagens, a norte, e que Rui Raposo já tinha clientes habituais para uma vida inteira, e esse pouco tempo de abertura seria usado para tratar somente dos seus exclusivos.


Outra coisa que ocorreu foi os próprios animais se virarem contra Rui Raposo! Todos atribuíam a culpa de toda a confusão sentida no vale a ele e somente a ele! Isso gerou uma queda brusca entre quem frequentava aquele salão de cabeleireiro.


‘’Rui Raposo meteu-se em assuntos onde ele não era chamado e agora estamos repletos de problemas!’’ – este era um dos mexericos mais fortes entre os animais, apesar de muitos não concordarem com isso e atribuírem a culpa a quem realmente dera a ordem de seguir as sugestões de Rui Raposo: uma identidade que se manteve em mistério, pois se tratava, é claro, de toda a população em conjunto. Todos eram demasiado orgulhosos e ninguém queria assumir o erro ou a responsabilidade na falta de avaliação das consequências que as mudanças denunciavam.


‘’Rui Raposo’’.


Estas eram as palavras do letreiro que caíra ao chão com o vento, mesmo em frente a uma porta de vidro partido.


A falta de clientela e o caos geral instalado levaram ao encerramento do tão prestigiado estabelecimento, como também á ruina deste. Rui Raposo não tinha mais lucro para sustentar o aluguer e a manutenção do salão, e não existia outra alternativa a não ser fechar o seu pequeno negócio.


O prazo estava a acabar.


Sentia-se mais infeliz do que nunca!


Começou a caminhar entre a neve, cabisbaixo. Sua barriga roncava no silêncio, e ecoava entre as ruas repletas de destruição. Os bovinos marchavam e esmagavam sem piedade algumas ovelhas que se recusavam sair do seu território, enquanto uma coruja atravessou a rua num voou baixo, e desapareceu entre a escuridão de dois edifícios, soltando um grito de pavor. Grito este que fizera um grupo de patos e de galinhas escondidas pular por entre os telhados dos prédios, largando uma chuva de penas em desespero.


O Inverno chegara ao vale, mas devido á guerra, todos não estavam preparados e lutavam para sobreviver como podiam. Houve muita fome e doença.


Atrás de si, o seu antigo salão desaparecia da paisagem entre edifícios destruídos, e agora Rui Raposo encontrava-se numa estrada de terra batida no meio daquilo que outrora fora uma das pastagens das ovelhas, que repousava, coberta numa fina névoa.


Suspirou, e seguiu adiante em direção á sua casa, localizada nas profundezas do bosque situado no outro lado do trilho.


Por ali não se via ninguém e a falta de barulho era de morte. Mas Rui Raposo não tinha medo algum do clima tenso, mesmo que tivesse acelerado disfarçadamente um pouco o passo depois de ajeitar sua mochila com o pouco que lhe restava do salão – isto, incluía, o seu tão estimado diário e um estojo de tesouras.


Em certo ponto, á medida que avançava, a expressão de Rui Raposo começou a se alterar, e um sorriso formou-se em seus lábios, pois á sua frente, vindo da direção contrária, uma branca figura se aproximava, vagarosa, quase camuflada entre a neve espessa.


Uma massa de claridade aconchegante no meio daquele clima gelado.


– Ovelha Olívia! Minha boa e velha Holy! Já faz muito tempo que não a via!


– Ora viva, Rui Raposo! Mééé… – Disse a ovelha, com uma voz rouca – Hoje fechou o salão mais cedo? Ia agora precisamente lhe pedir um corte de cabelo.


– Oh Holy… Infelizmente, meu salão não voltará a abrir suas portas.


– O que ocorreu então, meu nobre amigo, que desgraça foi essa?! Logo agora que o negócio corria tão bem!…


– Não estava bem ultimamente, dona Holy…


Rui Raposo já não tinha mais a perder.


Sentaram-se ambos num tronco velho existente na beira da estrada e a raposa acabou por contar tudo á ovelha num diálogo prolongado e sem pressas, pois entre todas as suas clientes, ela era uma das que ele tinha mais estima e confiança. Contou-lhe tudo, desde o encontro do lobo, até aquilo que a Mãe Natureza lhe ditara, e dos problemas que ultimamente se faziam sentir no vale e a falência do salão.


Apesar da informação chocante de que Rui Raposo teria que voltar a assumir a forma de um predador feroz, a ovelha não se demonstrou perturbada após ouvir tal desabafo.


Muito pelo contrário, tentou o ajudar o melhor que podia com suas serenas palavras.


– Que tragédia! Lamento não o poder ajudar mais…


– A senhora já me ajudou o bastante, se não fosse pela senhora espalhando meu bom nome ao longo destas terras, acredito que o meu pequeno negócio não teria florido como o foi.


– Que dispara-te, Rui! A Mãe Natureza sabe o que está a fazer. Todas as amizades que fizeste naquele negócio foram uma experiencia em tanto, e isso não podes negar. A Natureza… Ela cria. Ela constrói. Ela muda. Ela transforma. Pode parecer exigente ás vezes, mas é também dona de paisagens maravilhosas, pois a vida é feita de pequenas coisas… Pequenas experiencias que merecem ser aproveitadas e apreciadas.


– Sim, mas… Agora, não sei… Atacar os amigos que construi? E lhes destruir as vidas?... O que isso tem de maravilhoso?… – Murmurou Rui, com um ar ainda mais abatido e confuso do que antes, pois não via sentido em nada daquilo. – Falta poucos dias para o prazo acabar. Estou cansado de me sentir na obrigação de abraçar o meu lado de predador, pois não quero isto. Mas… Eu não sei mais o que fazer, além de estar sentado num tronco velho igual a este onde estamos agora, e ver o tempo passar e me sentindo fraco.


– É claro que sabes o que fazer, meu pequeno. – Disse Olívia, endireitando seu cachecol ao pescoço. – Um corte de cabelo. É aquilo que podes fazer, pois é, de momento, apenas o que está ao teu alcance.


– Não posso voltar a abrir o salão, Holy. – Afirmou, com pesar.


– Mas quem disse que tu é que serias o cabeleireiro desta vez? Hoje, quem receberá um corte de cabelo és tu, meu amigo! – Ela soltou uma gargalhada. – Tens ai uma tesoura? Serei a tua cabeleireira pessoal agora.


Rui Raposo olhou para a ovelha com espanto. Logo depois, fitou o seu reflexo numa poça de água ali ao lado. A falta de cuidados higiénicos básicos era clara. O seu pelo estava muito cumprido e sujo, fruto da desmotivação e da tristeza profunda sentida nos últimos tempos. Não parecia nada a mesma raposa asseada que abrira um salão de cabeleireiro.


Um corte de cabelo era muitas vezes sinal de mudança e transformação. E tendo esse conceito antigo em mente, ele concordou com a ideia. Olívia sorriu, quando viu a raposa remover da sua bolsa uma velha tesoura, entregando-a. Era a mesma que ele usara para cortar sua lã ano passado, no primeiríssimo dia do salão.


E assim foram invertidos os papéis.


Com todos os cuidados, lá a ovelha aparou um pouco do pelo do senhor Rui. Este, por sua vez, ia sentindo o ar frio do Inverno penetrar-lhe mais na pele á medida que os seus fios de cabelo caiam ao chão lamacento.


– Vê se está como gostas. – Disse ela com um sorriso, ao fim de uns bons minutos de espera.


Rui Raposo voltou a fitar a pequena poça de água, encarando o seu reflexo com um renovado interesse. Pois seu aspeto de raposa estava num estado ainda mais lastimável do que aquele em que se encontrava antes. Partes do seu corpo tinham uma falta de pelo considerável, deixando outras com um ar ainda mais sujo.


Se era falta de habilidade da ovelha com a tesoura, ele não o sabia dizer.


Mas acreditava ser sinal de, algo mais.


– Estou, diferente. Pareço… Selvagem. – Tentou dizer, sem ser indelicado.


– É mesmo isso que sentes? – Ele concordou com a cabeça, e a ovelha prosseguiu, satisfeita. – Como realmente deves ser. Agora, resta o toque final.


E colocou-se frente a frente ao senhor raposa.


Sua expressão era solene, como alguém pronta a tudo, pois sabia perfeitamente o que o futuro a reservava e já aceitara á muito esse desfecho.


Foi então que Rui Raposo se apercebera da realidade.


A natureza era bela, mas também podia ser cruel.


Ambos eram amigos.


Mas, mais que isso.


Ambos eram… Predador e presa.


Chegara a hora.


– Sempre soube bem qual era o teu verdadeiro propósito com o salão, antes de te apaixonares pelo ofício e esse deixar de ser o teu plano original. Digamos que foi por isso que eu lá fui naquele primeiro dia distante, mas minha vida foi poupada por mais um ano, e mais um ano foi acrescentado á prisão da minha alma que é a experiencia sagrada de viver. Mas agora, o teu salão não existe mais e já cumprira o seu dever nesta fase da tua vida. Está na altura de voltares ás tuas origens, pois só assim podes reencontrar-te e restabelecer a ordem. Permita-me ajudar-te uma última vez nesta demanda da Mãe Natureza, senhor Rui. Minha vida agora está nas tuas garras.


– Eu… Eu não posso fazer isto. Logo com a senhora! – Brandiu ele aos ventos. Lágrimas começaram a brotar dos seus tristes e profundos olhos de raposa.


– Eu estou muito velha, e doente, Rui, meu bom amigo… Méééh… – E ela tossiu, mas ainda a manter um sorriso triste em sua face. – Já vi coisas maravilhosas nesta vida. Estou pronta para partir pois eu não perco mais nada. Já criei meus filhos e já os vi crescer a eles e a meus netos e bisnetos. Este é o meu momento… Ou melhor, o nosso momento!... Está na altura de abraçar-mos nossos instintos e continuar-mos a contribuir para o círculo da vida que todos seguem.


Rui Raposo fitou-a, olhos nos olhos, longos minutos que mais pareciam horas. Aquela velha ovelha estava disposta a sacrificar-se ao sistema em nome de tamanha amizade.


Uma rasada forte e fria de vento soprou entre os campos, silenciando a dupla. A fina névoa que ocupava a paisagem intensificou-se.


Infelizmente, existem leis que não dão para mudar.


Regras impossíveis de serem alteradas.


E naquele trilho lamacento, entre as pastagens, naquela noite, a força da natureza acabou sendo mais forte…


E a tão aguardada caçada aconteceu.


‘’Vemo-nos depois, no outro lado, meu amigo, quando a tua hora também chegar… Mééé… E talvez, possa-mos partilhar juntos, como iguais, as novas do mundo quando me aparares a lã outra vez! Até lá, aproveita cada momento da rotina! ’’


 



 


O desaparecimento da ovelha Olívia e de Rui Raposo naquela noite mantiveram-se um mistério durante meses a fio.


Anos foram passando vagarosos e as guerras no vale acabaram.


Os rumores da presença de um grande predador nos arredores do vale, e a morte e desaparecimento ocasional de alguns outros indivíduos, tanto pouco conhecidos como bem conhecidos e influentes na comunidade, deixaram os animais apreensivos e mais unidos do que nunca.


As galinhas raramente afastavam-se do galinheiro, as patas raramente afastavam-se do seu lago e exploravam as pastagens, e os bovinos e as ovelhas tinham medo de aproximarem-se do rio, que continuava a fluir em seu leito de límpidas águas. Vários animais também começaram a aceitar e a respeitar mais os casais que ‘’adotavam’’ crias de outras espécies, principalmente os patos e as galinhas, pois a luta por tal direito também fora um elemento relevante disputado na guerra.


Começou também a correr um rumor ali e acolá de que um estranho livro fora publicado, de público exclusivo aos carnívoros, com todas as manhas e artimanhas dos animais habitantes daquele vale, comportamentos comuns e modos de pensar detalhados: Um excelente guia a caçadores furtivos que quisessem penetrar naquelas terras. Logo, qualquer tipo de cuidado era pouco na pacata vida que todos construíam dentro do que podiam.


Assim, de certa forma, podemos concluir que muitos aprenderam a lição em não se meterem na vida dos outros ou a exibirem demasiado as suas vidas a qualquer um. E poucos eram aqueles que desdenharem uns dos outros, pois tal só trazia dor e sofrimento. O respeito e a aceitação eram uma bênção mútua.


A ordem voltara a reinar nas pastagens.


Mas a mesma ainda não estava totalmente restabelecida.


Estava na hora de um individuo bem singular voltar á ativa com seu pequeno negócio, abraçando outra parte construída na sua natureza pessoal. Parte esta também em falta naquele mundo.


E, certo dia, a placa com o nome ‘’Rui Raposo & Companhia’’ foi reerguida na porta de um edifício que outrora servira para o mesmo propósito: ser um salão de cabeleireiro, cheio de momentos de boa disposição que merecem ser bem aproveitados, onde os mexericos e as notícias entravam e saiam todos os dias como de costume.


Um grupito de três energéticas crias de raposas percorreu o espaço, até os pés de um grande lobo de pelo cinzento que aguardava sua vez, lendo um jornal, sentado num sofá perto da ala dedicada á estética – o mesmo lobo mensageiro de tantos Invernos atrás. O embaixador do mercado de carne balançou o seu corpo para o lado, tentando ignorar a folia, mas era impossível não gritar com as raposinhas que constantemente brincavam e saltavam por cima da sua enorme cauda felpuda, de um lado a outro, como quem saltava á corda.


– Será que vocês não deixam aqui o velhote ler o jornal hoje? – O lobo rosnou, mas a expressão de foufura das crianças era tão intensa que ele acabou cedendo e abraçou e beijou os filhotes.


Rui Raposo sorriu para o companheiro. Depois, vestiu um avental e estendeu uma toalha por cima do pescoço de um velho galo que, apesar do seu ar rígido, divertia-se observando a ousadia e correria de toda aquela bicharada.


– Que bom ter-te de volta aqui ao vale, meu camarada! Depois de tanto tempo de sumiço após o final da guerra, a reabertura do teu salão foi a melhor minhoca no topo do bolo! – O galo Guilherme começou a rir. – Essas crias de raposa são mesmo encantadoras!...


– É… Elas são complicadas de lidar. Mas nós os dois conseguimos sim dar conta do recado. – Rui começou a rir, em tom nervoso.


– Vocês fazem-me lembrar de mim e da minha esposa quando mais novos… Já agora… O senhor por acaso viu a pata Patrícia e nossos filhotes por aqui? Faz um bom tempo que não a vejo.


Rui Raposo encolheu os ombros para passar despercebido, mas logo depois de tal questão exposta ao ar, ele soltou um pequeno arroto, que tentou disfarçar ao colocar o antebraço na frente do focinho. Aproveitou também para limpar uma minúscula pena que lhe flutuava entre os bigodes.



Notas Finais:


Esta história NÃO apoia sacrifício animal ou quaisquer outras crueldades! Ela é sobre o circulo da vida e serve para refletir somente sobre a natureza cruel que por vezes as coisas podem ser. Infelizmente existem realidades da vida e na própria natureza que não podem ser mudadas - esta é a real mensagem que eu queria passar no meu texto.


Tentai ser o mais suave possível dentro daquilo que a narração me permitia, mas tenho plena noção que o leitor pode interpretar de maneira errada as situações. Caso alguém sentir que esta história romantiza demasiado os seus temas, estou disposta a debater o assunto e analisar este meu trabalho para melhorar os seus pontos controversos, editando assim esta história para se enquadrar melhor num contexto mais positivo. Estamos todos aqui para aprender e melhorar, afinal das contas, e tal muitas vezes se consegue quando debatemos sobre os erros.


Obrigado pela atenção!


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