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- PARTE 1 – O Martelo – A Fada, o Corvo, e o Baleeiro
Algures
na encosta da mais alta montanha de Paldea, o forte nevão ofuscava a visão de
uma imprudente mãe, carregando sua tão estimada cria. Cria esta que ainda não
vira a luz do dia, nem as sombras da noite, nem o embalar do vento, das árvores
ou do distante mar, mas já lutava muito antes de eclodir, para manter-se quente
nos braços da sua progenitora.
Afinal, aquele
calor precioso em meio de toda a gélida paisagem podia ser o último aconchego
que iria sentir emanando no mundo exterior, em muito tempo. Se ela realmente
desejasse nascer na próxima estação, necessitava de preservar um pouquinho de
toda aquela força da herança em seu núcleo.
A
Pokémon certificava-se de apagar todas as pegadas deixadas na neve, pois não
queria ser seguida por ninguém. Mesmo enfrentando as condições precárias que
eram os ventos cortantes zumbindo por todas as direções e as pedras gélidas
descendo dos céus sem parar, adotava todos os protocolos necessários para fazer
com que sua passagem por ali fosse esquecida, que nem a de qualquer outra
vítima que, do nada, desaparecia na nevasca por culpa da fúria da montanha.
Depois
de muito escalar a encosta, caminhando e procurando entre rochedos congelados e
trilhos escorregadios, lá encontrou uma pequena fenda entre dois grandes pedregulhos,
mesmo debaixo da copa de um velho e alto pinheiro. As agulhas deste pinheiro
serviam como um excelente abrigo natural devido a seu formato cónico, pois eram
tão largas e abundantes ao ponto de roçarem no chão, impedindo a passagem de
vento, construindo então uma espécie de tenda, de modo a ampararem em seus
ramos uma quantidade impressionante de gelo e neve.
A
Pokémon penetrou no abrigo natural com todo o cuidado para não derrubar a neve
acumulada nos ramos do pinheiro. Analisou a fenda. Era um esconderijo perfeito.
Agarrou num
martelo gigante de ferro que trazia consigo e deu um golpe certeiro entre os
rochedos, abrindo-os e escavando-os um pouco mais fundo. O som ecoou na orla da
montanha, fazendo o pinheiro estremecer e derramar algumas bolas de gelo na
cabeça da Pokémon e na superfície do ovo.
Limpou-o
o mais rápido e o mais cuidadosa possível, e posicionou-o bem fundo na fenda,
onde o vento não soprava e onde os sons exteriores eram abafados. Ali naquele
abrigo, o solo lamacento ainda carregava vestígios de palha e agulhas do
pinheiro, e a Pokémon procurou ajuntar o máximo possível. Esfregou-os com a mão
para os secar um pouco mais, e cobriu o ovo de modo ao seu calor ali perdurar.
Estes Pokémon, geralmente, faziam ninhos com pedaços de metal enferrujado e
sucata, mas tal de momento não era um recurso disponível em meio de tal nevão.
Para finalizar
o esconderijo perfeito, foi com a mão ao seu martelo, removendo uma pequena
placa da sua superfície. Amolgou-a com cuidado, construindo um minucioso chocalho
de ferro que deixou encostado ao ovo. Um item necessário à força da pequena
criatura que dali nasceria, e um belo presente para o dia do seu nascimento,
tal como fizera sua mãe para ela e sua avó para sua mãe – isto ao longo de
gerações a fio.
E selou a
fenda com as rochas que soltara devido ao seu golpe anteriormente.
Sua espécie
pregava o abandono dos filhotes desde bem cedo por questões de sobrevivência,
mesmo estes ainda sendo apenas uns ovinhos frágeis que necessitavam de todo
cuidado e proteção do mundo. Cuidado e proteção estes que agora eram parte do
dever que tal esconderijo lhe entregaria.
– Que a
valentia do mais forte dos martelos te abençoe, pequena. – foi tudo o que ela
disse na sua despedida.
Sem qualquer
ressentimento, a enorme Tinkaton ajeitou o martelo que carregava em suas costas
e deixou o local, partindo para longe, desaparecendo de vista entre os vastos e
altos mantos de neve e névoa que cobriam o horizonte, sem nunca mais ali
regressar.
E
o círculo feroz da natureza manteve-se vivo durante mais umas semanas ao longo
daquele rigoroso Inverno. Mas a escuridão e a fúria não eram eternas, e o tempo
não tardaria a acalmar para abraçar a Primavera.
Os primeiros
raios de sol cortaram as cinzentas nuvens e derreteram a neve, neve esta que
aos poucos ia sendo substituída por tufos de tenras plantas floridas e fartos
arbustos. Apesar da altitude e do frio que de noite ainda se fazia sentir,
aquele mantinho verdejante na encosta da montanha era um dos primeiros locais
chamativos para os Pokémon que só ali regressavam naquela estação.
E um
Fletchling cortou o ar, cantarolando e rodopiando ao som da brisa, em busca de
um espacinho especial para descansar as asas da sua longa viajem. Um alto e
antigo pinheiro parecia o sítio ideal para uma pausa, e foi ai, num dos seus
ramos mais sublimes, que a pequena ave decidiu pousar.
Mas o seu
momento de descanso não foi longo.
O Fletchling
eriçou as penas e franziu o bico, alarmado, quando ouve uma pancada, seguida de
outra e mais outra, bem no meio do tronco da árvore.
Toda a
estrutura estremeceu.
– Puxa, que
brutamontes. – A ave protestou, fitando o solo para contemplar a origem do
problema. – Oh. Olá! Será que podes parar ai em baixo?
O pinheiro
estremeceu por completo outra vez, e a pequena ave cinzenta e encarnada não
teve alternativa a não ser sair dali o quanto antes quando o pinheiro começou,
vagaroso, a inclinar-se. O Fletchling soltou outro esgar de reclamação, mas já
lá ele estava bem longe no horizonte, quando o pinheiro caiu no solo envolto
num violento baque.
Esfomeada, a
autora do crime explorava aquele mesmo tronco, em busca de qualquer coisa que
pudesse saciar o roncar de sua barriguinha. Podia ser pequena, uma cria jovem
de poucos dias, mas com o seu chocalho em mãos – ou martelo, por assim melhor
dizer – era imparável, como qualquer criança curiosa aprendendo sobre o mundo.
– Papa! Papa!
Paparoca! – Pedia ela á árvore caída em sua vozinha infantil, como se o tronco
tivesse consciência.
A Tinkatink
deu mais umas marretadas no tronco, até ter uma ideia brilhante ditada pelo seu
instinto.
Conseguira
derrubar o pinheiro por inteiro, então, porque não quebrá-lo ao meio? Continuou
a esbarrar e esbarrar o objeto metálico contra a casca enrugada, e a cada
pancada, mais danificada a madeira ficaria.
Demorou tardes
inteiras assim, martelando a sua árvore no mesmo preciso ponto, para o escavar,
com breves pausas para descansar e beber de um riacho vizinho, alimentando-se
de algumas bagas e plantas que encontrava ali perto, além de pequenos animais
que vez ou outra a casca do tronco abrigava debaixo de si.
Ela usou então
as metades conseguidas e os ramos arrancados do tronco para reforçar um pouco
mais o conforto do seu pequeno covil entre os dois pedregulhos, onde de noite
pernoitava numa cama feita de palha, agulhas de pinheiro e restos de casca de
ovo quebrado.
– Quentinho! –
Bramiu, contente, após contemplar a conclusão de sua obra. Fagulhas e mais
fagulhas de madeira proveniente do tronco esmagado agora acrescentavam em tanto
o conforto do solo do seu lar. Ela atirou-se ao espaço, e, de braços estendidos
e barriga para cima, adormeceu sob a palha quente.
Era um espaço
quente e seco, e isso para ela bastava, pois significava aconchego. Um
aconchego de sua mãe, que apesar dela não ter conhecido, ainda se recordava da
voz e do toque de quando estava no interior do ovo.
Mas a paz e a
abundancia não eram constantes, e muito menos garantias para o mundo. Aconchego
fazia parte do pacote que, com a mudança, também poderia desaparecer num piscar
de olhos.
Certa manhã, a
Tinkatink saiu de sua fortaleza e deparou-se com um cenário terrível: o riacho
que saciava sua sede secara devido ao calor do ápice do Verão, e alguns Pokémon
de porte maior, que habitavam as redondezas, arrancaram por completo um dos
arbustos cujas bagas abundantes eram uma de suas principais fonte de
alimentação.
– Paparoca? –
Questionou, ajuntando um dos machucados ramos dos arbustos com seu martelo, o
inspecionando.
O galho
desfez-se em pó, como se tivesse sido carbonizado por algum dos poucos Pokémon
de fogo que passavam pela região.
Nunca antes
ela se tinha visto naquela situação tão crítica, sentindo a necessidade de
partir e explorar áreas mais longínquas da montanha por uma simples questão de
sobrevivência. Ela tinha tudo o que precisava naquele pequenote vale, comida,
água, e um bom lar. Mas agora, viu-se apertada, com medo do desconhecido e dos
perigos que a esperavam longe dali.
Mas ela também
crescia a um ritmo alarmante, e estava forte e saudável.
A criança
apertou os punhos, respirou fundo, e segurou seu martelo, dando uns valentes
passos em frente além fronteiras, ficando cada vez mais longe do mundo que
conhecia.
Acordava de
manhãzinha em busca de algum local perfeito, mas tentava voltar sempre antes do
pôr-do-sol, pois os dois pedregulhos eram o único local que ela conseguia
chamar de lar.
Seus
movimentos eram furtivos, pois não queria chamar atenções de outros Pokémon,
talvez, já com o ressentimento no interior de si que qualquer tipo de atenção
podia lhe dar problemas.
Mas certo dia,
a infelicidade ocorreu, e envolveu-se, sem querer, entre um conflito de
tenebrosos Cetitan que disputavam por comida em um outro vale quilómetros mais
abaixo daquele onde ela nascera.
– Eu cheguei
aqui primeiro, gordo! – Bramiu uma das baleias. – Essas Oran Berry são minhas!
– Tu é que és
gordo! Seu gordo! – Berrou a outra, começando a rebolar seu corpo no chão e
chocando no adversário.
Os dois
Cetitan faziam a terra e pouca neve que a cobria respingar em todas as direções
devido á troca de golpes que não paravam de proferir. A Tinkatink nunca antes
assistira a uma batalha, e estava parada atrás de alguns arvoredos, abismada
com tamanha demonstração de força e poder, pois tudo aquilo instigara bastante
a sua observação. Os dois Pokémon se chocavam um contra o outro. Suor, sangue e
gordura embatiam entre si e cobriam o solo lamacento, enquanto os olhos da
pequena se enchiam de um brilho apreciativo a tamanha violência.
– Gordo!
Gordo! – A criança ria, apontando para ambos Pokémon enquanto os observava a
luta na sua passagem. Era difícil saber qual deles ela apoiava, pois não parava
de chamar a ambas baleias os nomes que ouvira, na sua mais pura inocência.
– A quem ela
tá chamando de gordo? – Resmungou um dos Cetitan, a fitando com seu olhar
gélido. – Ninguém deu educação a essa criança?
– Acho que ela
quer roubar nossa fruta! Acho que aquela bebé precisa de aprender uma lição… –
O outro disse e ambos concordavam, com tom mordaz, talvez, afectado pelo stress
que já pairava no ar anteriormente.
Podiam ser bons
sujeitos em situações normais, mas quando alguém entra assim no meio de uma
briga, o mais provável é apanhar a mesma carga negativa por tabela.
A criança
começou a tremer dos pés á cabeça quando se se dera conta do quanto as duas
baleias de gelo se aproximavam a rebolar como uma avalanche em sua precisa
direção, furiosas pelo insulto, e, como eles bem entenderam, tentativa de
roubo.
E assim fugiu,
entre os golpes e gritos de horror, atravessando trilhos de pedra, massas de
neve, vales profundos e rochosos, sempre para baixo. Escapara por um triz. Só
parou no fim da montanha, muito depois de deixar de sentir o peso das pisadas
das duas baleias atrás de si, a perseguindo freneticamente. Por essa altura, o
terreno começou a ficar menos frio e menos acidentado.
E quando parou
e recuperou o fôlego, pois estava exausta da fuga devido ao esforço enorme da
corrida das suas patinhas curtas, foi só quando notou o quanto descera da
encosta, demasiado do que aquilo que gostaria tendo em conta o calor e humidade
do ar.
Olhou para
cima, tentando se situar.
Olhou em todo
o seu redor, sem saber que caminho tomar.
Estava
perdida.
Estava
totalmente só.
– Paparoca?...
– Murmurou, sentindo o estômago roncar e tentando não passar a tarde a chorar
abraçada a seu pequeno martelo – a única recordação que agora tinha de casa.
Mas tal era
inevitável. A pobre criança caminhara a noite inteira, aos constantes soluções
e rios de lágrimas, guiada pela solitária luz da lua e pelas estrelas que
salpicavam o céu escuro.
Apesar de não ter nenhum rumo certo que seguir, além de tentar escalar tudo aquilo e subir, subir, subir montanha acima, sentia que devia caminhar por aquela rota íngreme da encosta. Ouvia os instintos. Em certo ponto, parou para descansar os pezinhos doridos perto de um arvoredo.
O horizonte já
clareava, mas o cansaço era tamanho que a pequena Tinkatink acabara por
adormecer ao relento quando o mesmo era pintado com os primeiros raios de sol.
Teve um sono
agitado, com o pressentimento de que algo, ou alguém, arrancara de si alguma
coisa de valor inestimável. E assim acordou num sobressalto, após ouvir um piar
indecifrável nos arredores.
Era um
cacarejar diferente, algo único e aterrador vindo bem do interior da garganta
que ela nunca antes tinha ouvido em sua jovem vida. E tal cantar também seria
um marco na sua jornada.
Ao abrir os
olhos, seu corpo paralisou por completo ao contemplar a grande e intimidadora
ave que se encontrava bem empoleirada num rochedo ao seu lado, com todo um ar
de superioridade.
E, entre o seu
bico negro, lá estava o pequenote martelo!
O seu tão
precioso martelo!
A única
herança que ela tinha de milhares de gerações. O seu único objeto que a deixava
confortável longe de casa, no seu novo dia a dia.
A pequena deu
um pulo, dando asas a toda a sua coragem.
Com cara de
má, foi direta contra as patas da enorme ave, que continuou imóvel, usando o
martelo para limpar suas penas e lustrar sua armadura cinzenta.
– É meu! É
meu! – Brandia a criança, num claro desespero que também mesclava inquietação.
A enorme ave
apenas fitou a minúscula criatura com o seu olho vermelho, tão vermelho que
parecia uma jóia de fogo vivo. A Tinkatink não parava de lhe dar socos, com
todas as forças desesperadas que tinha, numa das suas patas, de forma bem
ritmada. Mas ele era tão grande e pesado que não sentia nada além de uma
simples coceira que nem dava vontade de coçar.
Ele soltou um
piar, um tanto aterrador para a pequena, como se gozasse bem com a cara dela,
que nem um adulto perverso ao sentir o prazer de roubar um doce de uma criança.
– MEU! MEUUU!
– Continuou a pobre e minúscula Tinkatink.
A ave negra
levantou a pata, um gesto simplório, mas suficiente para derrubar a leve
fadinha no chão, e ele voltou logo á pose original. Mas a pequena era
persistente, e voltou a bater-lhe e arranhar-lhe com seus dedos gordinhos,
esperançosa em recuperar seu maior tesouro.
Ele queria
continuar a gozar o brinquedo novo, mas os berros da Pokémon, e o seu toque
constante na pata, se tornavam aos poucos mais um incómodo idiota que uma
piada. Impaciente, estava na altura do corvo maldito avançar para o próximo
passo da sua jogada perversa.
E assim,
engoliu o minúsculo pedaço de metal como se fosse uma simples migalha. Logo a
seguir, soltou um piar ainda maior, como se gargalha-se.
A
Pokémon fada empalideceu com o sucedido, ao ver a longa língua da ave limpar o
bico de um lado para o outro, totalmente satisfeito por aquele belo sabor,
bastante saciado.
Esta fora a
primeira vez na vida que a Tinkatink aprendera algo deveras importante para sua
existência, mesmo tendo sido da pior maneira. Muitos Pokémon do tipo Steel apreciavam os martelos das
Tinkatink e sua linha evolutiva, pois o metal usado na construção destes, era
de certa maneira bem nutritivo e saboroso, e resistente caso o Pokémon quisesse
usar como armadura de seu corpo. Qualquer Pokémon do tipo Steel era desejoso de tal material, e muitos andavam sempre a
roubar estes objetos, por serem como doces ao toque, sabor e textura.
Quando o
imponente Corviknight bateu as asas, criando uma poderosa rasada de vento que o
fez planar para longe dali, a pequena cambaleou para trás, por não aguentar a
força de tal vendaval.
E
ali, deitada no solo em meio da poeira, ela permaneceu até o grande corvo negro
desaparecer no horizonte, e o sol se pôr, dando lugar a mais uma nova noite
solitária e fria, longe do conforto do seu lar.
E chorou as
horas seguintes, e lamentou sua perda, fitando as estrelas que faiscavam com um
brilho distante.
Sem
o martelo, ela sentia-se incompleta.
Sem
o martelo, a Tinkatink não era ninguém.
A
tristeza, a solidão, a falta do martelo, a falta do seu precioso lar e a
saudade do conforto logo tornaram sua inocência em outra coisa.
Em algo mais…
Depois
da tristeza, veio a revolta. Os dias foram passando, e ela aos poucos crescia.
A Tinkatink sentia que devia ter feito mais, que tinha que fazer mais,
portanto, com as aprendizagens que vinham da rotina, adotou um novo objetivo
para a sua vida, em parte, guiada pelos instintos: iria encontrar o grande
corvo negro, dar cabo dele e com a sua armadura metálica construir um novo
martelo para si.
Para essa
ousada tarefa, ela tinha que ser mais forte, ficar mais forte.
E apesar de
ser novinha, sabia perfeitamente por onde começar.
Iria retornar
ao mesmo campo ao qual ficara impressionada por força e violência meses atrás.
Naquela tarde
ensoleirada, subir outra vez a montanha não fora tarefa fácil, muito menos
reencontrar a estrada até o local almejado, mas a fada, depois de muito tentar
e explorar, mal por mal chegou ao seu novo objetivo.
As duas
baleias rebolavam, e a cada embate que seus corpos proferiam, um contra o
outro, o solo estremecia tamanha era a ferocidade dos golpes. O ar
encontrava-se mais frio ao redor dos Pokémon do tipo gelo, não só pela
altitude, mas também devido ás baforadas de gás criogénico que saiam de suas
mandíbulas.
A pele grossa
dos corpos de ambos eram repletas de grandes cicatrizes, provenientes do embate
dos chifres e das mordidelas que ambos trocavam entre si. Quem sabe, também
lições de toda uma longa vida a sobreviver a predadores. A Tinkatink nesta fase
já estava um pouco mais velha, o suficiente para criar opinião própria, e
gostou das cicatrizes, davam-lhes um certo charme.
Será que
doeram muito?...
Ambos os
Pokémon pararam quase de imediato, ao repararem que estavam a ser observados
pelos olhos curiosos da pequena fada cor-de-rosa.
– Não é aquela
criança que uns tempos atrás nos chamou de gordos? – Disse um deles, este no
caso, não tinha um chifre, pois o mesmo fora arrancado, deixando uma mancha em
forma de tronco de árvore no espaço em falta, cicatriz esta que descia até uma
das garras da sua grossa pata direita.
– Parece
mesmo. Espero que ela não nos venha irritar outra vez. – Disse o outro, este o
qual lhe faltava um dos dentes da frente, como se alguém lhe tivesse dado um
soco ou um golpe de cauda naquela área (o que provavelmente acontecera mesmo).
Era a chance
perfeita para a criança tomar uma aproximação.
Em vez de um
martelo, ela carregava um minúsculo galho de uma árvore, pois metal naquela
área de Glaseado era um recurso pouco acessível, e a pequena sentia-se mais
confortável e confiante ao sentir o peso de algo na mão. Não era a mesma coisa
que um martelo, mas estava a ocupar o lugar e preenchia bem nos momentos de
necessidade.
Pelo menos,
por enquanto.
– Quero ser
forte. – Começou ela. – Igual vocês. Vocês ser fortes!
Os dois
cetáceos encararam a fada com bastante alerta mesclado com hesitação. Para
começar, ver uma Tinkatink sem um martelo, usando uma varinha de madeira no
lugar, era uma novidade irresistível a qualquer atenção. Por outro lado, os
dois não eram lá muito inteligentes, e olharam com desconfiança, tentando
processar o esforço enorme que a criança fazia para tentar se comunicar com
eles, pois a pequena não tivera a melhor instrução em termos de fala.
– Estás a nos
chamar de gordos outra vez? – Resmungou o que não tinha os dentes da frente.
O outro, que
era maior e mais velho que o companheiro, e, mal por mal, um tanto mais
sensato, apesar de intimidante devido á marca enormíssima que lhe cobria o
corpo arredondado, bufou de desdém.
– Ela quer ser
treinada por nós. – Explicou ao amigo (ou seria rival?). – Como se nós fossemos
humanos capazes de treinar bonecas de peluche.
– Cala-te.
Apenas… Apenas ignora. – Disse o cetáceo desdentado. – Talvez essa coisa vá
embora se ignorada.
– Por favor! –
Gritou a pequena, quase implorando! – Vocês fortes! Eu querer ser forte! Me
treinem! Por favor!
Os dois
Cetitan se entreolharam, com desconfiança, mas naquele momento, ignorar parecia
um bom plano, e logo voltaram ao que estavam a fazer. A criança persistiu,
ainda uns longos minutos, mesmo que eles estivessem a fingir que não a ouviam e
muitos menos a viam. Voltaram à troca de golpes, sem esmagarem a fada, que
corria entre os seus pés, procurando a atenção e a aceitação, sempre a brandir
o seu raminho de árvore em direção aos céus.
– Por favor!
Por favor! Também quero lutar! – Pediu, quase a ser esmagada, mas com tanta
força de vontade reunida em indescritível coragem, que dava socos na parte de
baixo das barrigas enormes.
A varinha de
madeira logo quebrou contra a pele dura de uma das patas dos Cetitan, mas
apesar da nova infelicidade, ela não vacilou. Por outro lado, um dos Cetitan ia
tropeçando nela como se a mesma fosse uma raiz saindo do solo, e fez um esforço
enorme com seu corpo para não cair que nem um pedregulho em cima de uma semente
minúscula.
– Acho que ela
não se irá embora assim tão facilmente se dissermos que não. – Murmurou um dos
Cetitan.
– Treinar!
Treinar! Ser forte! – Persistia, sempre, ainda nos socos.
Os dois
voltaram a se imobilizar em meio da súplica.
– Posso acabar
com ela com uma patada? Já não a posso ouvir mais a berrar.
– Ela pelo
menos reconheceu o potencial de nossa força. – Admitiu o da grande cicatriz,
levando com mais um soco no abdómen. – E ela até que tem uma forcinha e
tanto...
Mantivera-se
imóvel, testando mais um pouco a ousadia da criança, que preservava sempre o
ritmo, tentando provar a eles (e quem sabe, também a si própria) de que era
capaz de os derrubar. Em certo ponto, o Cetitan encolheu a barriga e aguardou,
e quando a criança se aproximou o suficiente para mais um soco, ele expandiu-a
e embateu nesta mal sentiu em si o seu toque.
A Tinkatink
voou alguns metros atrás devido à força brutal do golpe. Bateu com todo o corpo
num rochedo afiado e caiu ao chão, completamente KO.
– Vamos mas é deixá-la falando para o boneco
e continuar nos nossos treinos. Essa criança será um desperdício de tempo.
– Olha que não
sei. Tenho certeza que ela não vai embora quando acordar. – O Cetitan mais
velho disse, pensativo. – Elas evoluem, com paciência, e eu acho que, afinal,
essa pequena tem potencial.
– Eu não quero
ser um babysitter! – O desdentado protestou. – É para isso que servem as nossas
fêmeas! Ou os treinadores humanos!
– Para de ser
antiquado. – O velho resmungou. – Lembra-te que a ajuda de uma Tinkaton pode
ser útil contra o Corvo.
O Corvo.
A palavra
ressoou em toda a encosta da montanha, como se a mesma carregasse uma conotação
tão negativa ao ponto de que não devia ser pronunciada, nunca, por ninguém
naqueles lados de tamanho território, em circunstância alguma.
– Ouve lá oh
gordo, eu não quero problemas com ele… – O Cetitan estremeceu, discordando com
a ideia de modo total. – Se queres tu, então fica a saber que eu quero ficar
fora disto.
–
Quem é o Corvo? – Ambos ouviram uma
vozinha aflautada, e olharam para o lado, procurando a origem da questão.
A
pequena criança já acordara, e tentava se erguer com claras dificuldades,
apesar de que seu corpo machucado não ajudava, ela fazia os possíveis para não
se dar como fraca e não voltar a adormecer.
Fraca.
Não…
Ela não o seria. Pelo menos desta vez.
Mas
voltou a cair, e semicerrou os olhos, tentando aguentar a dor que o seu corpo
protestava.
–
O Corvo é o maldito Corviknight que governa esta montanha. – O Cetitan com
cicatrizes disse, tomando uma aproximação vagarosa. – Ele não é uma brincadeira
para crianças como tu… – E acrescentou, mais uma afirmação que um pedido. – Mas
os Pokémon da tua espécie são inimigos naturais dos Corviknight. Talvez, se
devidamente treinada e evoluída, consigas travá-lo. Mas vais precisar de
trabalhar no duro para tal.
–
O… O que é ele?... – Ela questionou, com clara dor na voz.
–
Uma gigantesca ave de penas negras com armadura de metal. Não costumam habitar
naturalmente Glaseado, por isso ele é único nestes lados. E irreconhecível.
Como ele veio aqui parar e iniciar seu reinado de terror é um mistério. Ela
rouba todos os nossos alimentos e não para de perturbar as nossas crias.
A
Tinkatink era muito nova para compreender metade daquelas palavras, mas pela
descrição, reconheceu o indivíduo na hora. O Cetitan encontrava-se demasiado
tenso, fitando o ar, para se aperceber que, naquele mesmo instante, conversava
apenas com uma simplória criança. Afinal, o que ele dizia aos céus parecia mais
um pensamento para si próprio.
– Meu… Meu
martelo… – A fada começou a chorar amargamente. – Ele comeu meu martelo!
E foi aquele
choro que despertou o cetáceo para a realidade, dando-lhe uma expressão mais
solene, comportando-se de forma mais adequada face à mais nova. E também
criando um peso de culpa por a ter perseguido dias antes por um motivo bobo.
– Todos nós
aqui na montanha perdemos coisas para o Corvo… – Murmurou, olhando para cima, e
tentando adotar um vocabulário um pouco mais simples e apropriado para a
pequena. – Estás a ver estas marcas no meu corpo? Foi ele que me bicou como se
eu fosse uma Oran Berry.
– A teoria
mais popular diz que ele foi abandonado por algum humano, pois é impossível um
Pokémon sozinho chegar àquele nível de poder. – O desdentado declarou, ao
empurrar o outro para o lado e tentar manter uma conversa mais a dois. – Eu não
quero envolver uma criança nisto. E lembra-te que tudo pode piorar nossa
situação, como se ela já não fosse muito boa!
–
Eu… Eu sei. – Suspirou. – Apenas sinto que não devo desperdiçar esta
oportunidade de ouro… – O mais velho murmurou, olhando de esguelha para a
fadinha que ainda jazia no chão duro, em sofrimento.
– Depois não
digas que eu não te avisei. Enfim, vou procurar mais comida. – E o desdentado
virou as costas, retirando-se do local.
– Está na
altura de mudanças amigo, confia em mim. – Brandiu o Cetitan das cicatrizes,
com a voz bem alto, contra o vento, como se o mesmo pudesse transmitir sua
mensagem ao universo.
E
então tomou uma aproximação, tomando a criança nos seus braços.
A Tinkatink
parecia um pontinho rosa minúsculo no meio das barbatanas carnudas do enorme e
valente Cetitan. Soltou um pequeno gemido, e o cetáceo, guiado por um certo
nível de instinto paternal, acabou por ceder e acariciar a mesma.
A pele dele
era fria, tão gelada ao ponto de aquecer a fúria das suas feridas, como um
calor anestésico. Rapidamente, deixou de sentir qualquer tipo de dor, e embalada
pelos solavancos dos passos do gradíssimo Pokémon, acabou por voltar a
adormecer, envolta num conforto estranho, muito diferente daquele que conhecia
do seu lar, mas, ao mesmo tempo… Uma sensação de calor familiar.
–
Não temas, criança. Eu cuidarei de ti…
Nessa
mesma noite, a Tinkatink sonhou que derrubava com um único soco a grande e
temível ave de penas negras e olhos de fogo.
E mais
importante que isso, arrancara-lhe a armadura e recuperava o seu precioso
martelo de metal polido.