Posted by : Shiny Reshiram 1 de out. de 2024


              Algures na encosta da mais alta montanha de Paldea, o forte nevão ofuscava a visão de uma imprudente mãe, carregando sua tão estimada cria. Cria esta que ainda não vira a luz do dia, nem as sombras da noite, nem o embalar do vento, das árvores ou do distante mar, mas já lutava muito antes de eclodir, para manter-se quente nos braços da sua progenitora.


Afinal, aquele calor precioso em meio de toda a gélida paisagem podia ser o último aconchego que iria sentir emanando no mundo exterior, em muito tempo. Se ela realmente desejasse nascer na próxima estação, necessitava de preservar um pouquinho de toda aquela força da herança em seu núcleo.


              A Pokémon certificava-se de apagar todas as pegadas deixadas na neve, pois não queria ser seguida por ninguém. Mesmo enfrentando as condições precárias que eram os ventos cortantes zumbindo por todas as direções e as pedras gélidas descendo dos céus sem parar, adotava todos os protocolos necessários para fazer com que sua passagem por ali fosse esquecida, que nem a de qualquer outra vítima que, do nada, desaparecia na nevasca por culpa da fúria da montanha.


              Depois de muito escalar a encosta, caminhando e procurando entre rochedos congelados e trilhos escorregadios, lá encontrou uma pequena fenda entre dois grandes pedregulhos, mesmo debaixo da copa de um velho e alto pinheiro. As agulhas deste pinheiro serviam como um excelente abrigo natural devido a seu formato cónico, pois eram tão largas e abundantes ao ponto de roçarem no chão, impedindo a passagem de vento, construindo então uma espécie de tenda, de modo a ampararem em seus ramos uma quantidade impressionante de gelo e neve.


              A Pokémon penetrou no abrigo natural com todo o cuidado para não derrubar a neve acumulada nos ramos do pinheiro. Analisou a fenda. Era um esconderijo perfeito.


Agarrou num martelo gigante de ferro que trazia consigo e deu um golpe certeiro entre os rochedos, abrindo-os e escavando-os um pouco mais fundo. O som ecoou na orla da montanha, fazendo o pinheiro estremecer e derramar algumas bolas de gelo na cabeça da Pokémon e na superfície do ovo.


              Limpou-o o mais rápido e o mais cuidadosa possível, e posicionou-o bem fundo na fenda, onde o vento não soprava e onde os sons exteriores eram abafados. Ali naquele abrigo, o solo lamacento ainda carregava vestígios de palha e agulhas do pinheiro, e a Pokémon procurou ajuntar o máximo possível. Esfregou-os com a mão para os secar um pouco mais, e cobriu o ovo de modo ao seu calor ali perdurar. Estes Pokémon, geralmente, faziam ninhos com pedaços de metal enferrujado e sucata, mas tal de momento não era um recurso disponível em meio de tal nevão.


Para finalizar o esconderijo perfeito, foi com a mão ao seu martelo, removendo uma pequena placa da sua superfície. Amolgou-a com cuidado, construindo um minucioso chocalho de ferro que deixou encostado ao ovo. Um item necessário à força da pequena criatura que dali nasceria, e um belo presente para o dia do seu nascimento, tal como fizera sua mãe para ela e sua avó para sua mãe – isto ao longo de gerações a fio.



E selou a fenda com as rochas que soltara devido ao seu golpe anteriormente.


Sua espécie pregava o abandono dos filhotes desde bem cedo por questões de sobrevivência, mesmo estes ainda sendo apenas uns ovinhos frágeis que necessitavam de todo cuidado e proteção do mundo. Cuidado e proteção estes que agora eram parte do dever que tal esconderijo lhe entregaria.


– Que a valentia do mais forte dos martelos te abençoe, pequena. – foi tudo o que ela disse na sua despedida.


Sem qualquer ressentimento, a enorme Tinkaton ajeitou o martelo que carregava em suas costas e deixou o local, partindo para longe, desaparecendo de vista entre os vastos e altos mantos de neve e névoa que cobriam o horizonte, sem nunca mais ali regressar.


              E o círculo feroz da natureza manteve-se vivo durante mais umas semanas ao longo daquele rigoroso Inverno. Mas a escuridão e a fúria não eram eternas, e o tempo não tardaria a acalmar para abraçar a Primavera.


Os primeiros raios de sol cortaram as cinzentas nuvens e derreteram a neve, neve esta que aos poucos ia sendo substituída por tufos de tenras plantas floridas e fartos arbustos. Apesar da altitude e do frio que de noite ainda se fazia sentir, aquele mantinho verdejante na encosta da montanha era um dos primeiros locais chamativos para os Pokémon que só ali regressavam naquela estação.


E um Fletchling cortou o ar, cantarolando e rodopiando ao som da brisa, em busca de um espacinho especial para descansar as asas da sua longa viajem. Um alto e antigo pinheiro parecia o sítio ideal para uma pausa, e foi ai, num dos seus ramos mais sublimes, que a pequena ave decidiu pousar.


Mas o seu momento de descanso não foi longo.


O Fletchling eriçou as penas e franziu o bico, alarmado, quando ouve uma pancada, seguida de outra e mais outra, bem no meio do tronco da árvore.


Toda a estrutura estremeceu.


– Puxa, que brutamontes. – A ave protestou, fitando o solo para contemplar a origem do problema. – Oh. Olá! Será que podes parar ai em baixo?


O pinheiro estremeceu por completo outra vez, e a pequena ave cinzenta e encarnada não teve alternativa a não ser sair dali o quanto antes quando o pinheiro começou, vagaroso, a inclinar-se. O Fletchling soltou outro esgar de reclamação, mas já lá ele estava bem longe no horizonte, quando o pinheiro caiu no solo envolto num violento baque.


Esfomeada, a autora do crime explorava aquele mesmo tronco, em busca de qualquer coisa que pudesse saciar o roncar de sua barriguinha. Podia ser pequena, uma cria jovem de poucos dias, mas com o seu chocalho em mãos – ou martelo, por assim melhor dizer – era imparável, como qualquer criança curiosa aprendendo sobre o mundo.



– Papa! Papa! Paparoca! – Pedia ela á árvore caída em sua vozinha infantil, como se o tronco tivesse consciência.


A Tinkatink deu mais umas marretadas no tronco, até ter uma ideia brilhante ditada pelo seu instinto.


Conseguira derrubar o pinheiro por inteiro, então, porque não quebrá-lo ao meio? Continuou a esbarrar e esbarrar o objeto metálico contra a casca enrugada, e a cada pancada, mais danificada a madeira ficaria.


Demorou tardes inteiras assim, martelando a sua árvore no mesmo preciso ponto, para o escavar, com breves pausas para descansar e beber de um riacho vizinho, alimentando-se de algumas bagas e plantas que encontrava ali perto, além de pequenos animais que vez ou outra a casca do tronco abrigava debaixo de si.


Ela usou então as metades conseguidas e os ramos arrancados do tronco para reforçar um pouco mais o conforto do seu pequeno covil entre os dois pedregulhos, onde de noite pernoitava numa cama feita de palha, agulhas de pinheiro e restos de casca de ovo quebrado.


– Quentinho! – Bramiu, contente, após contemplar a conclusão de sua obra. Fagulhas e mais fagulhas de madeira proveniente do tronco esmagado agora acrescentavam em tanto o conforto do solo do seu lar. Ela atirou-se ao espaço, e, de braços estendidos e barriga para cima, adormeceu sob a palha quente.


Era um espaço quente e seco, e isso para ela bastava, pois significava aconchego. Um aconchego de sua mãe, que apesar dela não ter conhecido, ainda se recordava da voz e do toque de quando estava no interior do ovo.


Mas a paz e a abundancia não eram constantes, e muito menos garantias para o mundo. Aconchego fazia parte do pacote que, com a mudança, também poderia desaparecer num piscar de olhos.


Certa manhã, a Tinkatink saiu de sua fortaleza e deparou-se com um cenário terrível: o riacho que saciava sua sede secara devido ao calor do ápice do Verão, e alguns Pokémon de porte maior, que habitavam as redondezas, arrancaram por completo um dos arbustos cujas bagas abundantes eram uma de suas principais fonte de alimentação.


– Paparoca? – Questionou, ajuntando um dos machucados ramos dos arbustos com seu martelo, o inspecionando.


O galho desfez-se em pó, como se tivesse sido carbonizado por algum dos poucos Pokémon de fogo que passavam pela região.


Nunca antes ela se tinha visto naquela situação tão crítica, sentindo a necessidade de partir e explorar áreas mais longínquas da montanha por uma simples questão de sobrevivência. Ela tinha tudo o que precisava naquele pequenote vale, comida, água, e um bom lar. Mas agora, viu-se apertada, com medo do desconhecido e dos perigos que a esperavam longe dali.



Mas ela também crescia a um ritmo alarmante, e estava forte e saudável.


A criança apertou os punhos, respirou fundo, e segurou seu martelo, dando uns valentes passos em frente além fronteiras, ficando cada vez mais longe do mundo que conhecia.


Acordava de manhãzinha em busca de algum local perfeito, mas tentava voltar sempre antes do pôr-do-sol, pois os dois pedregulhos eram o único local que ela conseguia chamar de lar.


Seus movimentos eram furtivos, pois não queria chamar atenções de outros Pokémon, talvez, já com o ressentimento no interior de si que qualquer tipo de atenção podia lhe dar problemas.


Mas certo dia, a infelicidade ocorreu, e envolveu-se, sem querer, entre um conflito de tenebrosos Cetitan que disputavam por comida em um outro vale quilómetros mais abaixo daquele onde ela nascera.


– Eu cheguei aqui primeiro, gordo! – Bramiu uma das baleias. – Essas Oran Berry são minhas!


– Tu é que és gordo! Seu gordo! – Berrou a outra, começando a rebolar seu corpo no chão e chocando no adversário.


Os dois Cetitan faziam a terra e pouca neve que a cobria respingar em todas as direções devido á troca de golpes que não paravam de proferir. A Tinkatink nunca antes assistira a uma batalha, e estava parada atrás de alguns arvoredos, abismada com tamanha demonstração de força e poder, pois tudo aquilo instigara bastante a sua observação. Os dois Pokémon se chocavam um contra o outro. Suor, sangue e gordura embatiam entre si e cobriam o solo lamacento, enquanto os olhos da pequena se enchiam de um brilho apreciativo a tamanha violência.


– Gordo! Gordo! – A criança ria, apontando para ambos Pokémon enquanto os observava a luta na sua passagem. Era difícil saber qual deles ela apoiava, pois não parava de chamar a ambas baleias os nomes que ouvira, na sua mais pura inocência.


– A quem ela tá chamando de gordo? – Resmungou um dos Cetitan, a fitando com seu olhar gélido. – Ninguém deu educação a essa criança?


– Acho que ela quer roubar nossa fruta! Acho que aquela bebé precisa de aprender uma lição… – O outro disse e ambos concordavam, com tom mordaz, talvez, afectado pelo stress que já pairava no ar anteriormente.


Podiam ser bons sujeitos em situações normais, mas quando alguém entra assim no meio de uma briga, o mais provável é apanhar a mesma carga negativa por tabela.


A criança começou a tremer dos pés á cabeça quando se se dera conta do quanto as duas baleias de gelo se aproximavam a rebolar como uma avalanche em sua precisa direção, furiosas pelo insulto, e, como eles bem entenderam, tentativa de roubo.


E assim fugiu, entre os golpes e gritos de horror, atravessando trilhos de pedra, massas de neve, vales profundos e rochosos, sempre para baixo. Escapara por um triz. Só parou no fim da montanha, muito depois de deixar de sentir o peso das pisadas das duas baleias atrás de si, a perseguindo freneticamente. Por essa altura, o terreno começou a ficar menos frio e menos acidentado.


E quando parou e recuperou o fôlego, pois estava exausta da fuga devido ao esforço enorme da corrida das suas patinhas curtas, foi só quando notou o quanto descera da encosta, demasiado do que aquilo que gostaria tendo em conta o calor e humidade do ar.


Olhou para cima, tentando se situar.


Olhou em todo o seu redor, sem saber que caminho tomar.


Estava perdida.


Estava totalmente só.


– Paparoca?... – Murmurou, sentindo o estômago roncar e tentando não passar a tarde a chorar abraçada a seu pequeno martelo – a única recordação que agora tinha de casa.


Mas tal era inevitável. A pobre criança caminhara a noite inteira, aos constantes soluções e rios de lágrimas, guiada pela solitária luz da lua e pelas estrelas que salpicavam o céu escuro.


Apesar de não ter nenhum rumo certo que seguir, além de tentar escalar tudo aquilo e subir, subir, subir montanha acima, sentia que devia caminhar por aquela rota íngreme da encosta. Ouvia os instintos. Em certo ponto, parou para descansar os pezinhos doridos perto de um arvoredo.


O horizonte já clareava, mas o cansaço era tamanho que a pequena Tinkatink acabara por adormecer ao relento quando o mesmo era pintado com os primeiros raios de sol.


Teve um sono agitado, com o pressentimento de que algo, ou alguém, arrancara de si alguma coisa de valor inestimável. E assim acordou num sobressalto, após ouvir um piar indecifrável nos arredores.


Era um cacarejar diferente, algo único e aterrador vindo bem do interior da garganta que ela nunca antes tinha ouvido em sua jovem vida. E tal cantar também seria um marco na sua jornada.


Ao abrir os olhos, seu corpo paralisou por completo ao contemplar a grande e intimidadora ave que se encontrava bem empoleirada num rochedo ao seu lado, com todo um ar de superioridade.



E, entre o seu bico negro, lá estava o pequenote martelo!


O seu tão precioso martelo!


A única herança que ela tinha de milhares de gerações. O seu único objeto que a deixava confortável longe de casa, no seu novo dia a dia.


A pequena deu um pulo, dando asas a toda a sua coragem.


Com cara de má, foi direta contra as patas da enorme ave, que continuou imóvel, usando o martelo para limpar suas penas e lustrar sua armadura cinzenta.


– É meu! É meu! – Brandia a criança, num claro desespero que também mesclava inquietação.


A enorme ave apenas fitou a minúscula criatura com o seu olho vermelho, tão vermelho que parecia uma jóia de fogo vivo. A Tinkatink não parava de lhe dar socos, com todas as forças desesperadas que tinha, numa das suas patas, de forma bem ritmada. Mas ele era tão grande e pesado que não sentia nada além de uma simples coceira que nem dava vontade de coçar.


Ele soltou um piar, um tanto aterrador para a pequena, como se gozasse bem com a cara dela, que nem um adulto perverso ao sentir o prazer de roubar um doce de uma criança.


– MEU! MEUUU! – Continuou a pobre e minúscula Tinkatink.


A ave negra levantou a pata, um gesto simplório, mas suficiente para derrubar a leve fadinha no chão, e ele voltou logo á pose original. Mas a pequena era persistente, e voltou a bater-lhe e arranhar-lhe com seus dedos gordinhos, esperançosa em recuperar seu maior tesouro.


Ele queria continuar a gozar o brinquedo novo, mas os berros da Pokémon, e o seu toque constante na pata, se tornavam aos poucos mais um incómodo idiota que uma piada. Impaciente, estava na altura do corvo maldito avançar para o próximo passo da sua jogada perversa.


E assim, engoliu o minúsculo pedaço de metal como se fosse uma simples migalha. Logo a seguir, soltou um piar ainda maior, como se gargalha-se.


              A Pokémon fada empalideceu com o sucedido, ao ver a longa língua da ave limpar o bico de um lado para o outro, totalmente satisfeito por aquele belo sabor, bastante saciado.


Esta fora a primeira vez na vida que a Tinkatink aprendera algo deveras importante para sua existência, mesmo tendo sido da pior maneira. Muitos Pokémon do tipo Steel apreciavam os martelos das Tinkatink e sua linha evolutiva, pois o metal usado na construção destes, era de certa maneira bem nutritivo e saboroso, e resistente caso o Pokémon quisesse usar como armadura de seu corpo. Qualquer Pokémon do tipo Steel era desejoso de tal material, e muitos andavam sempre a roubar estes objetos, por serem como doces ao toque, sabor e textura.


Quando o imponente Corviknight bateu as asas, criando uma poderosa rasada de vento que o fez planar para longe dali, a pequena cambaleou para trás, por não aguentar a força de tal vendaval.


              E ali, deitada no solo em meio da poeira, ela permaneceu até o grande corvo negro desaparecer no horizonte, e o sol se pôr, dando lugar a mais uma nova noite solitária e fria, longe do conforto do seu lar.


E chorou as horas seguintes, e lamentou sua perda, fitando as estrelas que faiscavam com um brilho distante.


              Sem o martelo, ela sentia-se incompleta.


              Sem o martelo, a Tinkatink não era ninguém.



              A tristeza, a solidão, a falta do martelo, a falta do seu precioso lar e a saudade do conforto logo tornaram sua inocência em outra coisa.


Em algo mais…


              Depois da tristeza, veio a revolta. Os dias foram passando, e ela aos poucos crescia. A Tinkatink sentia que devia ter feito mais, que tinha que fazer mais, portanto, com as aprendizagens que vinham da rotina, adotou um novo objetivo para a sua vida, em parte, guiada pelos instintos: iria encontrar o grande corvo negro, dar cabo dele e com a sua armadura metálica construir um novo martelo para si.


Para essa ousada tarefa, ela tinha que ser mais forte, ficar mais forte.


E apesar de ser novinha, sabia perfeitamente por onde começar.


Iria retornar ao mesmo campo ao qual ficara impressionada por força e violência meses atrás.


Naquela tarde ensoleirada, subir outra vez a montanha não fora tarefa fácil, muito menos reencontrar a estrada até o local almejado, mas a fada, depois de muito tentar e explorar, mal por mal chegou ao seu novo objetivo.


As duas baleias rebolavam, e a cada embate que seus corpos proferiam, um contra o outro, o solo estremecia tamanha era a ferocidade dos golpes. O ar encontrava-se mais frio ao redor dos Pokémon do tipo gelo, não só pela altitude, mas também devido ás baforadas de gás criogénico que saiam de suas mandíbulas.


A pele grossa dos corpos de ambos eram repletas de grandes cicatrizes, provenientes do embate dos chifres e das mordidelas que ambos trocavam entre si. Quem sabe, também lições de toda uma longa vida a sobreviver a predadores. A Tinkatink nesta fase já estava um pouco mais velha, o suficiente para criar opinião própria, e gostou das cicatrizes, davam-lhes um certo charme.


Será que doeram muito?...


Ambos os Pokémon pararam quase de imediato, ao repararem que estavam a ser observados pelos olhos curiosos da pequena fada cor-de-rosa.


– Não é aquela criança que uns tempos atrás nos chamou de gordos? – Disse um deles, este no caso, não tinha um chifre, pois o mesmo fora arrancado, deixando uma mancha em forma de tronco de árvore no espaço em falta, cicatriz esta que descia até uma das garras da sua grossa pata direita.


– Parece mesmo. Espero que ela não nos venha irritar outra vez. – Disse o outro, este o qual lhe faltava um dos dentes da frente, como se alguém lhe tivesse dado um soco ou um golpe de cauda naquela área (o que provavelmente acontecera mesmo).


Era a chance perfeita para a criança tomar uma aproximação.


Em vez de um martelo, ela carregava um minúsculo galho de uma árvore, pois metal naquela área de Glaseado era um recurso pouco acessível, e a pequena sentia-se mais confortável e confiante ao sentir o peso de algo na mão. Não era a mesma coisa que um martelo, mas estava a ocupar o lugar e preenchia bem nos momentos de necessidade.


Pelo menos, por enquanto.


– Quero ser forte. – Começou ela. – Igual vocês. Vocês ser fortes!


Os dois cetáceos encararam a fada com bastante alerta mesclado com hesitação. Para começar, ver uma Tinkatink sem um martelo, usando uma varinha de madeira no lugar, era uma novidade irresistível a qualquer atenção. Por outro lado, os dois não eram lá muito inteligentes, e olharam com desconfiança, tentando processar o esforço enorme que a criança fazia para tentar se comunicar com eles, pois a pequena não tivera a melhor instrução em termos de fala.


– Estás a nos chamar de gordos outra vez? – Resmungou o que não tinha os dentes da frente.


O outro, que era maior e mais velho que o companheiro, e, mal por mal, um tanto mais sensato, apesar de intimidante devido á marca enormíssima que lhe cobria o corpo arredondado, bufou de desdém.


– Ela quer ser treinada por nós. – Explicou ao amigo (ou seria rival?). – Como se nós fossemos humanos capazes de treinar bonecas de peluche.


– Cala-te. Apenas… Apenas ignora. – Disse o cetáceo desdentado. – Talvez essa coisa vá embora se ignorada.


– Por favor! – Gritou a pequena, quase implorando! – Vocês fortes! Eu querer ser forte! Me treinem! Por favor!


Os dois Cetitan se entreolharam, com desconfiança, mas naquele momento, ignorar parecia um bom plano, e logo voltaram ao que estavam a fazer. A criança persistiu, ainda uns longos minutos, mesmo que eles estivessem a fingir que não a ouviam e muitos menos a viam. Voltaram à troca de golpes, sem esmagarem a fada, que corria entre os seus pés, procurando a atenção e a aceitação, sempre a brandir o seu raminho de árvore em direção aos céus.


– Por favor! Por favor! Também quero lutar! – Pediu, quase a ser esmagada, mas com tanta força de vontade reunida em indescritível coragem, que dava socos na parte de baixo das barrigas enormes.


A varinha de madeira logo quebrou contra a pele dura de uma das patas dos Cetitan, mas apesar da nova infelicidade, ela não vacilou. Por outro lado, um dos Cetitan ia tropeçando nela como se a mesma fosse uma raiz saindo do solo, e fez um esforço enorme com seu corpo para não cair que nem um pedregulho em cima de uma semente minúscula.


– Acho que ela não se irá embora assim tão facilmente se dissermos que não. – Murmurou um dos Cetitan.


– Treinar! Treinar! Ser forte! – Persistia, sempre, ainda nos socos.


Os dois voltaram a se imobilizar em meio da súplica.


– Posso acabar com ela com uma patada? Já não a posso ouvir mais a berrar.


– Ela pelo menos reconheceu o potencial de nossa força. – Admitiu o da grande cicatriz, levando com mais um soco no abdómen. – E ela até que tem uma forcinha e tanto...


Mantivera-se imóvel, testando mais um pouco a ousadia da criança, que preservava sempre o ritmo, tentando provar a eles (e quem sabe, também a si própria) de que era capaz de os derrubar. Em certo ponto, o Cetitan encolheu a barriga e aguardou, e quando a criança se aproximou o suficiente para mais um soco, ele expandiu-a e embateu nesta mal sentiu em si o seu toque.


A Tinkatink voou alguns metros atrás devido à força brutal do golpe. Bateu com todo o corpo num rochedo afiado e caiu ao chão, completamente KO.


 – Vamos mas é deixá-la falando para o boneco e continuar nos nossos treinos. Essa criança será um desperdício de tempo.


– Olha que não sei. Tenho certeza que ela não vai embora quando acordar. – O Cetitan mais velho disse, pensativo. – Elas evoluem, com paciência, e eu acho que, afinal, essa pequena tem potencial.


– Eu não quero ser um babysitter! – O desdentado protestou. – É para isso que servem as nossas fêmeas! Ou os treinadores humanos!


– Para de ser antiquado. – O velho resmungou. – Lembra-te que a ajuda de uma Tinkaton pode ser útil contra o Corvo.


O Corvo.


A palavra ressoou em toda a encosta da montanha, como se a mesma carregasse uma conotação tão negativa ao ponto de que não devia ser pronunciada, nunca, por ninguém naqueles lados de tamanho território, em circunstância alguma.


– Ouve lá oh gordo, eu não quero problemas com ele… – O Cetitan estremeceu, discordando com a ideia de modo total. – Se queres tu, então fica a saber que eu quero ficar fora disto.


              – Quem é o Corvo? – Ambos ouviram uma vozinha aflautada, e olharam para o lado, procurando a origem da questão.


              A pequena criança já acordara, e tentava se erguer com claras dificuldades, apesar de que seu corpo machucado não ajudava, ela fazia os possíveis para não se dar como fraca e não voltar a adormecer.


              Fraca.


              Não… Ela não o seria. Pelo menos desta vez.


              Mas voltou a cair, e semicerrou os olhos, tentando aguentar a dor que o seu corpo protestava.


              – O Corvo é o maldito Corviknight que governa esta montanha. – O Cetitan com cicatrizes disse, tomando uma aproximação vagarosa. – Ele não é uma brincadeira para crianças como tu… – E acrescentou, mais uma afirmação que um pedido. – Mas os Pokémon da tua espécie são inimigos naturais dos Corviknight. Talvez, se devidamente treinada e evoluída, consigas travá-lo. Mas vais precisar de trabalhar no duro para tal.


              – O… O que é ele?... – Ela questionou, com clara dor na voz.


              – Uma gigantesca ave de penas negras com armadura de metal. Não costumam habitar naturalmente Glaseado, por isso ele é único nestes lados. E irreconhecível. Como ele veio aqui parar e iniciar seu reinado de terror é um mistério. Ela rouba todos os nossos alimentos e não para de perturbar as nossas crias.


              A Tinkatink era muito nova para compreender metade daquelas palavras, mas pela descrição, reconheceu o indivíduo na hora. O Cetitan encontrava-se demasiado tenso, fitando o ar, para se aperceber que, naquele mesmo instante, conversava apenas com uma simplória criança. Afinal, o que ele dizia aos céus parecia mais um pensamento para si próprio.


– Meu… Meu martelo… – A fada começou a chorar amargamente. – Ele comeu meu martelo!


E foi aquele choro que despertou o cetáceo para a realidade, dando-lhe uma expressão mais solene, comportando-se de forma mais adequada face à mais nova. E também criando um peso de culpa por a ter perseguido dias antes por um motivo bobo.


– Todos nós aqui na montanha perdemos coisas para o Corvo… – Murmurou, olhando para cima, e tentando adotar um vocabulário um pouco mais simples e apropriado para a pequena. – Estás a ver estas marcas no meu corpo? Foi ele que me bicou como se eu fosse uma Oran Berry.


– A teoria mais popular diz que ele foi abandonado por algum humano, pois é impossível um Pokémon sozinho chegar àquele nível de poder. – O desdentado declarou, ao empurrar o outro para o lado e tentar manter uma conversa mais a dois. – Eu não quero envolver uma criança nisto. E lembra-te que tudo pode piorar nossa situação, como se ela já não fosse muito boa!


              – Eu… Eu sei. – Suspirou. – Apenas sinto que não devo desperdiçar esta oportunidade de ouro… – O mais velho murmurou, olhando de esguelha para a fadinha que ainda jazia no chão duro, em sofrimento.


– Depois não digas que eu não te avisei. Enfim, vou procurar mais comida. – E o desdentado virou as costas, retirando-se do local.


– Está na altura de mudanças amigo, confia em mim. – Brandiu o Cetitan das cicatrizes, com a voz bem alto, contra o vento, como se o mesmo pudesse transmitir sua mensagem ao universo.


              E então tomou uma aproximação, tomando a criança nos seus braços.


A Tinkatink parecia um pontinho rosa minúsculo no meio das barbatanas carnudas do enorme e valente Cetitan. Soltou um pequeno gemido, e o cetáceo, guiado por um certo nível de instinto paternal, acabou por ceder e acariciar a mesma.


A pele dele era fria, tão gelada ao ponto de aquecer a fúria das suas feridas, como um calor anestésico. Rapidamente, deixou de sentir qualquer tipo de dor, e embalada pelos solavancos dos passos do gradíssimo Pokémon, acabou por voltar a adormecer, envolta num conforto estranho, muito diferente daquele que conhecia do seu lar, mas, ao mesmo tempo… Uma sensação de calor familiar.


              – Não temas, criança. Eu cuidarei de ti…


              Nessa mesma noite, a Tinkatink sonhou que derrubava com um único soco a grande e temível ave de penas negras e olhos de fogo.


E mais importante que isso, arrancara-lhe a armadura e recuperava o seu precioso martelo de metal polido.



Capítulo Adicional Continua Na

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