Posted by : Shiny Reshiram 8 de out. de 2024


              Quando acordou, estava um frio de morte.


A manhã já ia avançada, tendo em conta a posição de um sol desmaiado que turvava a vista, intensificado pelo reflexo das nuvens.


Sua visão era ofuscada, mas aos poucos, com os solavancos que percorriam todo o seu corpo devido à subida, tornava-se mais clara. Manteve-se bem imóvel entre as barbatanas do cetáceo, afinal, ainda sentia o corpo todo dolorido e ao mínimo movimento, doía-lhe os músculos. A cada passada, ia sempre observando o que acontecia e para onde o Cetitan a levava. Foi tomada por um certo nível de esperança, na medida em que seus pensamentos eram postos no lugar.


Quando tentou fitar melhor a paisagem, notou o quanto estava numa altitude nunca antes atingida por si em sua jovem vida. O pico da maior montanha de Paldea se localizava a apenas uns escassos metros de distância, tanto que no meio da névoa a criança conseguiu fitar uma superfície de madeira cortada pelos humanos, que assinalava o preciso local no topo da colina mais próxima. Também conseguiu fitar entre as nuvens, parte da paisagem para a restante região, a aterradora Grande Cratera de Paldea era uma vizinha bem convidativa aos piores pesadelos, pois parte das suas montanhas (visíveis no meio das nuvens) lembravam uma gigantesca boca escancarada saindo do centro da terra.


Mas não era exatamente na direção desse extravagante marco do ponto mais alto da região que o Cetitan que a transportava se dirigia. Mas a Tinkatink engoliu em seco ao notar uma vasta sombra negra muito bem empoeirada por cima da placa de madeira ali instalada pelo homem.


De súbito, o Cetitan deixou de se mover, e ela sentiu seu corpo descer até o solo. A visão da criança fora encoberta por uma cauda de baleia. Ele a pousara e a escondia no meio de um buraco fundo na neve, bem atrás das suas costas.


– Aqui está a tua cota diária de Berries, majestade. – Começou o Cetitan a falar.


O Corvo continuou imóvel lá no seu trono por cima do ponto mais alto, e entretanto, a Tinkatink tentou espreitar por cima da cauda, apesar de só ter tido um vislumbre simples de um breve vulto de várias bagas sendo depositadas entre uns pedregulhos á sua frente. Os pedregulhos se amontoavam ao redor de um rochedo maior, como se de um altar o pequeno espaço se tratasse. Vestígios de outras bagas existiam ali ao lado, umas mais bicadas e apodrecidas que outras, mas quanto a isso, a criança não conseguira reparar, pois o Cetitan empurrou-a mais para baixo e mais para o meio do buraco com a base da sua cauda.


A criança não o viu, mas após a frase do Cetitan, sentiu a energia fria e penetrante que era a pressão de um olho encarnado de uma enorme ave contra um muro de um castelo. Após analisar a oferenda, a ave ergueu a asa, em sinal de aprovação, e depois do gesto, que despontou um certo nível de medo ao cetáceo (que a Tinkatink notara pela maneira como a cauda deste começou a tremer), ouviu-se a sua voz.


Voz que tremeu tudo.


Voz esta que fez a fada esquecer todo o mundo que a rodeava, e ansiar saltar dali para fora e enterrar aquele bico perverso na neve mais profunda, partindo-lhe consecutivamente a coluna vertebral.


– Fica com as sobras.


O Cetitan da cicatriz olhou para o minucioso altar e suas berries, umas podres, outras metade comidas. Esperou alguns segundos, respirou fundo, e depois prosseguiu.


– Mas, meu senhor... Isto não é suficiente para a minha família.


– E depois?... – Ele arqueou a sobrancelha, indiferente à suplica. – Na minha opinião, é bastante. Tivesses pensado melhor antes de fazeres barulho ao brigares com um dos teus comparsas por uma baga que mais lembrava um simplório pedaço de estrume.


O Cetitan estava incrédulo.


– Por favor. Eu lhe peço que aumente um pouco a minha parte da cota, pois…


O Corvo assobiou alto, interrompendo o cetáceo de imediato. Assobiou tão alto que fez os ouvidos da criança estalarem. O som estridente vinha bem fundo da sua garganta, e apesar do Cetitan ter recuado uns passos, ele não vacilou por completo.


A resposta do Rei da montanha estava bem clara.


O Cetitan olhou para cima, fitando-lhe os olhos e dando asas a toda a sua coragem.


– Fique a saber que um dia o teu pódio será derrubado, majestade. – Ele disse o mais educadamente possível, apesar do ódio súbito que lhe adotou o olhar. – Quando esse dia chegar, irás arrepender-te de tudo o que fazes. Meus filhos estão a morrer aos poucos por tua culpa! Todos aqui na montanha sofrem porque tu lhes roubas os alimentos diariamente!


– Estás outra vez a subjugar a minha autoridade. – O Corvo expressou um riso malicioso. Sua frase não fora uma questão, mas sim uma certeza. – Espero que tenhas noção plena dos castigos que te esperam, Wohali, meu bom e velho amigo.


– Estou sempre pronto para mais, amigo.


– Minha montanha. Minhas regras. Já devias saber. – Ele riu, e a Tinkatink sentiu ódio pelo seu escárnio e ironia. – Cai-me sempre uma pena quando tenho que proceder a uns métodos severos para impulsionar o teu aprendizado. És um dos meus mais poderosos súbditos, e um desperdício de potencial.


– Sinto-me lisonjeado pelo elogio, mas se isto tudo continuar assim, fique a saber que um dos teus mais poderosos súbditos terminará tão magro que não passará de carne e osso.


A ave sacudiu-se. Suas penas bateram umas nas outras, criando um barulho aterrador que ecoou por toda a encosta, seguido de outro piar. A criança sentiu uma sensação estranha, como se tal terlintar fosse algum tipo de chamamento. Muito em breve a dupla não estaria sozinha.


– Que pena… Acho que vou acelerar um pouco mais o processo da tua deterioração. – E voltou a rir-se. – Que tal?


– Que eles venham. – O Cetitan rugiu e pisou o solo, fixando melhor suas enormes patas para se preparar a defesa e ataque, sabendo o infortúnio que ai vinha.


Uma sombra enorme estendeu-se na tundra, sombra esta que eram as asas estendidas da enorme ave, cobrindo a claridade ofuscante do sol. Por detrás da placa de madeira, surgiram também outros Pokémon, que a criança não conseguiu identificar por ter a visão oculta, mas conseguiu persentir devido ao súbito peso que se fez no ar, característica comum de quando se está rodeado de respirações pesadas de predadores.


Quando tentou mirar melhor o exterior, a cauda do Cetitan fez um gesto bruto por cima da sua cabeça.


Tudo escureceu, e a pequena fadinha viu-se no meio de mais e mais neve.


Encolheu-se mais sob o seu esconderijo, bem imobilizada.


Estava parcialmente subterrada na cova, mas ainda sentia muito calor em si, o bastante para permanecer ali viva ainda algumas horas antes de morrer congelada, afinal, as Tinkatink devido a sua tipagem tinha uma resistência maior ao gelo.


– Colegas! Que comesse uma nova punição. Acabem com ele e não o deixem escapar até segunda ordem! – Ouviu a ordem do Corvo, como se esta fosse um som distante, abafado.


Ouve um estrondo inicial, tremores de terra se seguiam sempre um após o outro, e ela conseguiu distinguir o som característico de uma troca de golpes que se faziam sentir na superfície. Ouviu a vocalização do Cetitan diversas vezes, e era difícil distinguir se tais canções eram gritos carregados de dor, ou gritos severos de uma dedicação e reunião de poder enorme, um aviso solene a seus inimigos.


Tudo pareceu iniciar-se tão rápido, como tudo rapidamente cessou.


Existiu um silêncio tremendo, e minutos que mais pareceram horas.


A Tinkatink temeu o pior, e abraçou-se a si própria, ansiosa se devia ou não sair dali, ou aguardar qualquer que fosse o sinal de vida do seu novo treinador. Ela nunca tinha sentido tanto medo em sua jovem vida. O mundo parecia rodopiar, e o ar era tão pesado que ela mal conseguia respirar.


Mas lá sentiu a barbatana do cetáceo a empurrando para cima. Um consolo muito bem-vindo, apesar de breve, antes dela dar de caras com a presença do Corviknight em cima da placa, no seu trono imprudente de sempre. As penas da ave negra estavam intocadas.


A pobre criança viu-se no colo de Wohali, envolta por algumas berries, que de certa maneira, a camuflavam em frente ao olhar penetrante do predador. Um líquido encarnado e quente descia da face do Cetitan, e banhava tanto ela como aos pequenos frutos de má qualidade, criando uma poça profunda por debaixo de ambos.


A fada tremia de medo entre as frutas, vá que ela não fosse confundida com alguma das bagas e servisse de alimento a algum Pokémon faminto que roubasse aquela baleia, mas no fundo, em frente ao Corvo, tal camuflagem ousada era o mais sensato a fazer para sua proteção. Ela acabou por se encolher cheia de frio, fazendo os possíveis para não mexer um músculo sequer, e não olhou para mais nada da cena de terror que pintava o recinto.



Apesar de não se ver mais ninguém presente, dava para notar vestígios de outros Pokémon através das inúmeras pegadas e marcas na neve revolta. Muitas áreas eram salpicadas de vermelho, tripas, terra e lama, um autêntico cenário de terror de um campo de batalha. O Cetitan quase pisou uma peça de pele e pelo, tanto deformada ao ponto de ser indistinguível.


– Espero que tenhas aprendido a lição, e dá-te sortudo por ainda não estares morto. – O Corvo gritou aos ventos. – Tenho trabalho mais importante para ti antes de desfazer-te em pedacinhos.


– Que bom ver que ainda resta dentro de ti um pouco de piedade... – O Cetitan cuspiu as palavras. Apesar do esforço para falar devido à dor que o cobria, o seu tom fora sarcástico. – Eu sei que estás apenas a torturar-me.


– Como já disse, não desperdiço um bom súbdito. – A ave gargalhou, sádica, enquanto fitava o Cetitan imundo que se distanciava, cambaleando no solo lamacento. – Agora desaparece. E amanhã, ordeno-te que tragas o dobro da cota.


O Cetitan, insatisfeito, virou as costas viradas para a ave, e foi em frente, descendo a montanha pelo lado contrário ao qual ali havia chegado. Sua marcha era lenta e melancólica devido ao fardo da dor.


Apenas lhe respondeu o seguinte, apesar de tal o ter dito com um tom sofrido:


– Seus desejos são uma ordem, meu amo…



À medida que desciam pela encosta e seus trilhos íngremes, a situação tornava-se numa realidade completamente diferente daquela que a Tinkatink estava habituada nos poucos locais que explorou e visitou. Por outro lado, era provável a experiência de vida a ter feito notar em coisas que já existiam, mas que nunca antes dera a devida atenção.


Para começar, uma nevasca começou, atrasando ainda mais a marcha cambaleante do cetáceo.


Grupos de Pokémon esqueléticos escondiam-se entre as rochas e montes de gelo e neve na medida em que o Cetitan ferido avançava. Pareciam recear qualquer coisa que a criança não conseguiu decifrar, mas uma coisa era certa: se naquele clima gélido já era difícil encontrar abrigo e alimento, ainda mais o era com um Pokémon tão aterrador controlando tamanho território.


– Chegamos… Estamos em casa. – Wohali disse, cerca de trinta minutos mais tarde, após atravessar uma curva e chegar a um vale fundo, que era ultrapassado por um leito de um estreito rio.


Cerca de uns pequenos seis Cetoddle, que brincaram perto das águas do rio, logo o rodearam mal o avistaram a se aproximar. A Tinkatink nunca tinha visto uma cria de Cetitan antes, mas tinha a certeza que aquele grupo tinha um ar bem abatido, pois todos eram extremamente magros dentro dos padrões que ela conhecia.


O Cetitan pousou-a no solo de um lado, em frente a todos os pequeninos cetáceos, e do outro, depositou as poucas berries que ele trazia. Nesse momento, a pequena apercebeu-se o quanto o seu novo amigo encontrava-se coberto em sangue, com um novo chifre arrancado pelas garras aterradoras da ave e seus capangas.


Os pequenos, esfomeados, aproximaram-se, e cada um agarrou num pedacinho minúsculo para se alimentarem, que o Cetitan lhes entregou. Tentavam não fitar o pai, olhos nos olhos… A nova ferida estampada era demasiado para os pequenos observarem sem incômodo, mas apesar do silêncio, dava para notar que estavam agradecidos por mais uma refeição e mais um dia vivos.


– Toma, esta é para ti, minha gordinha – Wohali entregou-lhe uma berry azulada conhecida por Oran Berry, com um sorriso cansado, estampado no rosto sujo. – Ela curará as tuas feridas. Irás sentir-te muito melhor.


Era mentira.


Ele precisava mais daquela comida do que ela.


Ele estava mais fraco, ele perdera imenso sangue.


Tentou resistir, tentou-lhe dizer que não a queria, mas sentiu a pressão do grupo que a rodeava consumindo cada um sua metade. E ai apercebeu-se o quanto também estava faminta, e não resistiu ao aroma doce que o pequeno alimento emanava.


Abocanhou logo a fruta.


Uma Oran Berry nunca lhe tinha saído tão bem na vida.


Foi bem refrescante sentir a baga explodido e seu suco inundar-lhe as papilas gustativas. Com uma nova percepção, saboreou aquela pequena Berry como se não fosse comer mais nada dentro dos próximos dias (o que não era totalmente mentira, já que na montanha tudo era escasso e ela perdera muito devido à falta do martelo, sem mencionar que quem enfrentava o Corvo logo tinha a sua vida dificultada, sempre).


Entre todas as poucas frutas que o Cetitan carregou e distribuiu aos pequenos, aquela era a única Oran Berry madura, bem redondinha e inchada, de superfície cintilante, sem nenhuma marca de podridão, ou bicada, ou dentada.


Ou seja, a única frutinha que se encontrava em perfeito estado dentro da pequena cota entregue pelo Corvo.


Mas a Tinkatink só se apercebeu disso quando se recordou, com bastante ternura, daquele dia peculiar, muitos, mas mesmo muitos anos mais tarde.




Capítulo Adicional Continua Na

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