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- PARTE 2 – O Corvo – A Fada, o Corvo, e o Baleeiro
Quando
acordou, estava um frio de morte.
A manhã já ia
avançada, tendo em conta a posição de um sol desmaiado que turvava a vista,
intensificado pelo reflexo das nuvens.
Sua visão era
ofuscada, mas aos poucos, com os solavancos que percorriam todo o seu corpo
devido à subida, tornava-se mais clara. Manteve-se bem imóvel entre as
barbatanas do cetáceo, afinal, ainda sentia o corpo todo dolorido e ao mínimo
movimento, doía-lhe os músculos. A cada passada, ia sempre observando o que
acontecia e para onde o Cetitan a levava. Foi tomada por um certo nível de
esperança, na medida em que seus pensamentos eram postos no lugar.
Quando tentou
fitar melhor a paisagem, notou o quanto estava numa altitude nunca antes
atingida por si em sua jovem vida. O pico da maior montanha de Paldea se
localizava a apenas uns escassos metros de distância, tanto que no meio da
névoa a criança conseguiu fitar uma superfície de madeira cortada pelos
humanos, que assinalava o preciso local no topo da colina mais próxima. Também
conseguiu fitar entre as nuvens, parte da paisagem para a restante região, a
aterradora Grande Cratera de Paldea era uma vizinha bem convidativa aos piores
pesadelos, pois parte das suas montanhas (visíveis no meio das nuvens)
lembravam uma gigantesca boca escancarada saindo do centro da terra.
Mas não era
exatamente na direção desse extravagante marco do ponto mais alto da região que
o Cetitan que a transportava se dirigia. Mas a Tinkatink engoliu em seco ao
notar uma vasta sombra negra muito bem empoeirada por cima da placa de madeira
ali instalada pelo homem.
De súbito, o
Cetitan deixou de se mover, e ela sentiu seu corpo descer até o solo. A visão
da criança fora encoberta por uma cauda de baleia. Ele a pousara e a escondia
no meio de um buraco fundo na neve, bem atrás das suas costas.
– Aqui está a
tua cota diária de Berries, majestade. – Começou o Cetitan a falar.
O Corvo
continuou imóvel lá no seu trono por cima do ponto mais alto, e entretanto, a
Tinkatink tentou espreitar por cima da cauda, apesar de só ter tido um
vislumbre simples de um breve vulto de várias bagas sendo depositadas entre uns
pedregulhos á sua frente. Os pedregulhos se amontoavam ao redor de um rochedo
maior, como se de um altar o pequeno espaço se tratasse. Vestígios de outras
bagas existiam ali ao lado, umas mais bicadas e apodrecidas que outras, mas
quanto a isso, a criança não conseguira reparar, pois o Cetitan empurrou-a mais
para baixo e mais para o meio do buraco com a base da sua cauda.
A criança não
o viu, mas após a frase do Cetitan, sentiu a energia fria e penetrante que era
a pressão de um olho encarnado de uma enorme ave contra um muro de um castelo.
Após analisar a oferenda, a ave ergueu a asa, em sinal de aprovação, e depois
do gesto, que despontou um certo nível de medo ao cetáceo (que a Tinkatink
notara pela maneira como a cauda deste começou a tremer), ouviu-se a sua voz.
Voz que tremeu
tudo.
Voz esta que
fez a fada esquecer todo o mundo que a rodeava, e ansiar saltar dali para fora
e enterrar aquele bico perverso na neve mais profunda, partindo-lhe
consecutivamente a coluna vertebral.
– Fica com as
sobras.
O Cetitan da
cicatriz olhou para o minucioso altar e suas berries, umas podres, outras
metade comidas. Esperou alguns segundos, respirou fundo, e depois prosseguiu.
– Mas, meu
senhor... Isto não é suficiente para a minha família.
– E depois?...
– Ele arqueou a sobrancelha, indiferente à suplica. – Na minha opinião, é
bastante. Tivesses pensado melhor antes de fazeres barulho ao brigares com um
dos teus comparsas por uma baga que mais lembrava um simplório pedaço de
estrume.
O Cetitan
estava incrédulo.
– Por favor.
Eu lhe peço que aumente um pouco a minha parte da cota, pois…
O Corvo
assobiou alto, interrompendo o cetáceo de imediato. Assobiou tão alto que fez
os ouvidos da criança estalarem. O som estridente vinha bem fundo da sua
garganta, e apesar do Cetitan ter recuado uns passos, ele não vacilou por
completo.
A resposta do
Rei da montanha estava bem clara.
O Cetitan
olhou para cima, fitando-lhe os olhos e dando asas a toda a sua coragem.
– Fique a
saber que um dia o teu pódio será derrubado, majestade. – Ele disse o mais
educadamente possível, apesar do ódio súbito que lhe adotou o olhar. – Quando
esse dia chegar, irás arrepender-te de tudo o que fazes. Meus filhos estão a
morrer aos poucos por tua culpa! Todos aqui na montanha sofrem porque tu lhes
roubas os alimentos diariamente!
– Estás outra
vez a subjugar a minha autoridade. – O Corvo expressou um riso malicioso. Sua
frase não fora uma questão, mas sim uma certeza. – Espero que tenhas noção
plena dos castigos que te esperam, Wohali, meu bom e velho amigo.
– Estou sempre
pronto para mais, amigo.
– Minha
montanha. Minhas regras. Já devias saber. – Ele riu, e a Tinkatink sentiu ódio
pelo seu escárnio e ironia. – Cai-me sempre uma pena quando tenho que proceder
a uns métodos severos para impulsionar o teu aprendizado. És um dos meus mais
poderosos súbditos, e um desperdício de potencial.
– Sinto-me
lisonjeado pelo elogio, mas se isto tudo continuar assim, fique a saber que um dos teus mais poderosos súbditos
terminará tão magro que não passará de carne e osso.
A ave
sacudiu-se. Suas penas bateram umas nas outras, criando um barulho aterrador
que ecoou por toda a encosta, seguido de outro piar. A criança sentiu uma
sensação estranha, como se tal terlintar fosse algum tipo de chamamento. Muito
em breve a dupla não estaria sozinha.
– Que pena…
Acho que vou acelerar um pouco mais o processo da tua deterioração. – E voltou a rir-se. – Que tal?
– Que eles
venham. – O Cetitan rugiu e pisou o solo, fixando melhor suas enormes patas
para se preparar a defesa e ataque, sabendo o infortúnio que ai vinha.
Uma sombra
enorme estendeu-se na tundra, sombra esta que eram as asas estendidas da enorme
ave, cobrindo a claridade ofuscante do sol. Por detrás da placa de madeira,
surgiram também outros Pokémon, que a criança não conseguiu identificar por ter
a visão oculta, mas conseguiu persentir devido ao súbito peso que se fez no ar,
característica comum de quando se está rodeado de respirações pesadas de
predadores.
Quando tentou
mirar melhor o exterior, a cauda do Cetitan fez um gesto bruto por cima da sua
cabeça.
Tudo
escureceu, e a pequena fadinha viu-se no meio de mais e mais neve.
Encolheu-se
mais sob o seu esconderijo, bem imobilizada.
Estava parcialmente subterrada na cova, mas ainda sentia muito calor em si, o bastante para permanecer ali viva ainda algumas horas antes de morrer congelada, afinal, as Tinkatink devido a sua tipagem tinha uma resistência maior ao gelo.
– Colegas! Que
comesse uma nova punição. Acabem com ele e não o deixem escapar até segunda
ordem! – Ouviu a ordem do Corvo, como se esta fosse um som distante, abafado.
Ouve um
estrondo inicial, tremores de terra se seguiam sempre um após o outro, e ela
conseguiu distinguir o som característico de uma troca de golpes que se faziam
sentir na superfície. Ouviu a vocalização do Cetitan diversas vezes, e era
difícil distinguir se tais canções eram gritos carregados de dor, ou gritos
severos de uma dedicação e reunião de poder enorme, um aviso solene a seus
inimigos.
Tudo pareceu
iniciar-se tão rápido, como tudo rapidamente cessou.
Existiu um
silêncio tremendo, e minutos que mais pareceram horas.
A Tinkatink
temeu o pior, e abraçou-se a si própria, ansiosa se devia ou não sair dali, ou
aguardar qualquer que fosse o sinal de vida do seu novo treinador. Ela nunca
tinha sentido tanto medo em sua jovem vida. O mundo parecia rodopiar, e o ar
era tão pesado que ela mal conseguia respirar.
Mas lá sentiu
a barbatana do cetáceo a empurrando para cima. Um consolo muito bem-vindo,
apesar de breve, antes dela dar de caras com a presença do Corviknight em cima
da placa, no seu trono imprudente de sempre. As penas da ave negra estavam intocadas.
A
pobre criança viu-se no colo de Wohali, envolta por algumas berries, que de
certa maneira, a camuflavam em frente ao olhar penetrante do predador. Um
líquido encarnado e quente descia da face do Cetitan, e banhava tanto ela como
aos pequenos frutos de má qualidade, criando uma poça profunda por debaixo de
ambos.
A
fada tremia de medo entre as frutas, vá que ela não fosse confundida com alguma
das bagas e servisse de alimento a algum Pokémon faminto que roubasse aquela
baleia, mas no fundo, em frente ao Corvo, tal camuflagem ousada era o mais
sensato a fazer para sua proteção. Ela acabou por se encolher cheia de frio,
fazendo os possíveis para não mexer um músculo sequer, e não olhou para mais
nada da cena de terror que pintava o recinto.
Apesar
de não se ver mais ninguém presente, dava para notar vestígios de outros
Pokémon através das inúmeras pegadas e marcas na neve revolta. Muitas áreas
eram salpicadas de vermelho, tripas, terra e lama, um autêntico cenário de
terror de um campo de batalha. O Cetitan quase pisou uma peça de pele e pelo,
tanto deformada ao ponto de ser indistinguível.
– Espero que
tenhas aprendido a lição, e dá-te sortudo por ainda não estares morto. – O
Corvo gritou aos ventos. – Tenho trabalho mais importante para ti antes de desfazer-te
em pedacinhos.
– Que bom ver
que ainda resta dentro de ti um pouco de piedade... – O Cetitan cuspiu as
palavras. Apesar do esforço para falar devido à dor que o cobria, o seu tom
fora sarcástico. – Eu sei que estás apenas a torturar-me.
– Como já
disse, não desperdiço um bom súbdito.
– A ave gargalhou, sádica, enquanto fitava o Cetitan imundo que se distanciava,
cambaleando no solo lamacento. – Agora desaparece. E amanhã, ordeno-te que
tragas o dobro da cota.
O Cetitan,
insatisfeito, virou as costas viradas para a ave, e foi em frente, descendo a
montanha pelo lado contrário ao qual ali havia chegado. Sua marcha era lenta e
melancólica devido ao fardo da dor.
Apenas lhe
respondeu o seguinte, apesar de tal o ter dito com um tom sofrido:
– Seus desejos
são uma ordem, meu amo…
À medida que
desciam pela encosta e seus trilhos íngremes, a situação tornava-se numa
realidade completamente diferente daquela que a Tinkatink estava habituada nos
poucos locais que explorou e visitou. Por outro lado, era provável a experiência
de vida a ter feito notar em coisas que já existiam, mas que nunca antes dera a
devida atenção.
Para começar,
uma nevasca começou, atrasando ainda mais a marcha cambaleante do cetáceo.
Grupos de
Pokémon esqueléticos escondiam-se entre as rochas e montes de gelo e neve na
medida em que o Cetitan ferido avançava. Pareciam recear qualquer coisa que a
criança não conseguiu decifrar, mas uma coisa era certa: se naquele clima
gélido já era difícil encontrar abrigo e alimento, ainda mais o era com um
Pokémon tão aterrador controlando tamanho território.
– Chegamos…
Estamos em casa. – Wohali disse, cerca de trinta minutos mais tarde, após
atravessar uma curva e chegar a um vale fundo, que era ultrapassado por um
leito de um estreito rio.
Cerca de uns
pequenos seis Cetoddle, que brincaram perto das águas do rio, logo o rodearam
mal o avistaram a se aproximar. A Tinkatink nunca tinha visto uma cria de
Cetitan antes, mas tinha a certeza que aquele grupo tinha um ar bem abatido,
pois todos eram extremamente magros dentro dos padrões que ela conhecia.
O Cetitan
pousou-a no solo de um lado, em frente a todos os pequeninos cetáceos, e do
outro, depositou as poucas berries que ele trazia. Nesse momento, a pequena
apercebeu-se o quanto o seu novo amigo encontrava-se coberto em sangue, com um
novo chifre arrancado pelas garras aterradoras da ave e seus capangas.
Os pequenos,
esfomeados, aproximaram-se, e cada um agarrou num pedacinho minúsculo para se
alimentarem, que o Cetitan lhes entregou. Tentavam não fitar o pai, olhos nos
olhos… A nova ferida estampada era demasiado para os pequenos observarem sem
incômodo, mas apesar do silêncio, dava para notar que estavam agradecidos por
mais uma refeição e mais um dia vivos.
– Toma, esta é
para ti, minha gordinha – Wohali entregou-lhe uma berry azulada conhecida por
Oran Berry, com um sorriso cansado, estampado no rosto sujo. – Ela curará as
tuas feridas. Irás sentir-te muito melhor.
Era mentira.
Ele precisava
mais daquela comida do que ela.
Ele estava
mais fraco, ele perdera imenso sangue.
Tentou
resistir, tentou-lhe dizer que não a queria, mas sentiu a pressão do grupo que
a rodeava consumindo cada um sua metade. E ai apercebeu-se o quanto também
estava faminta, e não resistiu ao aroma doce que o pequeno alimento emanava.
Abocanhou logo
a fruta.
Uma Oran Berry
nunca lhe tinha saído tão bem na vida.
Foi bem
refrescante sentir a baga explodido e seu suco inundar-lhe as papilas
gustativas. Com uma nova percepção, saboreou aquela pequena Berry como se não
fosse comer mais nada dentro dos próximos dias (o que não era totalmente
mentira, já que na montanha tudo era escasso e ela perdera muito devido à falta
do martelo, sem mencionar que quem enfrentava o Corvo logo tinha a sua vida
dificultada, sempre).
Entre todas as
poucas frutas que o Cetitan carregou e distribuiu aos pequenos, aquela era a
única Oran Berry madura, bem redondinha e inchada, de superfície cintilante,
sem nenhuma marca de podridão, ou bicada, ou dentada.
Ou seja, a
única frutinha que se encontrava em perfeito estado dentro da pequena cota
entregue pelo Corvo.
Mas a
Tinkatink só se apercebeu disso quando se recordou, com bastante ternura,
daquele dia peculiar, muitos, mas mesmo muitos anos mais tarde.