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- PARTE 5 – A Vingança – A Fada, o Corvo, e o Baleeiro
Dias passaram,
até se tornarem semanas, e depois alguns meses, para não dizer anos.
O Corvo havia
desaparecido.
Para alívio de
muitos. Para terror de outros.
A montanha
estava livre. Essa era a verdade inegável. Ninguém controlava ninguém, muito
menos seguiam regras idiotas.
Ninguém ousou
procurar pelo mesmo. Ninguém subiu até o topo da montanha para confirmar, ou,
no mínimo, encontrar pistas sobre o paradeiro da enorme ave negra outrora lá
bem empoleirada. E quem o faria, nunca se aproximava o suficiente do trono do
Corvikinght, preferindo apreciar o mesmo à distância.
E com isso, a paz dominou Glaseado.
Com a paz,
veio a abundância, e com a abundância, a sensação de conforto e tranquilidade
era cada vez maior. Em breve, todos esqueceriam os tempos negros ali outrora
vividos, como se os mesmos já não importassem mais.
Muitos dos
Cetoddle de outrora eram agora Cetitans iniciando as vidas adultas com suas
próprias famílias e crias. A nova alimentação devido à abundância que dominava
os ares contribuiu muito para a evolução individual de todos. Entretanto, a
jovem Tinkatuff cresceu mais e agora era uma revigorante donzela, apesar dos
treinos terem abrandado em frequência, se limitando a apenas uma ou duas vezes
por semana.
Entre todos os
habitantes do local, ela parecia ser a única que se lembrava do Corvo.
Afinal, o seu martelo nunca foi esquecido.
Ela iria
encontrar o maldito, e muitos recearam que os desejos da Tinkatuff se tornassem
uma obsessão.
O casal de
cetáceos principal do vale, Wohali e sua esposa, também foram abençoados com um
novo filhote. Nada melhor que expandir a família em tempos de paz. Proteger o
ovo diariamente passou a ser uma das novas tarefas favoritas da Tinkatuff,
enquanto os adultos aproveitavam o clima de tranquilidade, apesar de que
tamanha proteção vinda da fada era vista como um exagero por parte dos
restantes.
Dia e noite a
fada mantinha-se vigilante. Por vezes, mal dormia.
Era o mínimo
que ela podia fazer para pagar a Wohali e sua família tudo o que eles fizeram
por ela na infância. Todo o carinho, proteção, alimento, treino, histórias e
amor. E qualquer cria nova não precisava de crescer com medo tal como ela e
tantos outros ali. Assegurava-se que teria os primeiros dias de vida bem,
pacíficos. Os melhores que uma criança pudesse imaginar.
– Gordinha,
não precisas de ficar acordada o dia todo. – Wohali repreendeu-a. – Não vai
acontecer nada.
A Tinkatuff
encolheu os ombros. Gordinha passou a ser o nome pelo qual todos a tratavam.
Até que achava adequado, já que ela não tinha nome próprio.
– O Corvo pode
voltar a qualquer instante! – Ela resmungou entredentes. – Alguém tem que ficar
de vigia, só porque ele não aparece há anos não significa que não se lembre de
dizer um olá daqui a uma semana, ou, quem sabe, mesmo ainda hoje.
O Cetitan
calou-se, pensativo, e deixou a fada nos seus devaneios.
Apesar da
ansiedade em conhecerem o novo membro da família, o dia da eclosão do ovo não
fora exatamente um momento feliz.
Estava tudo
pronto na família para a chegada do pequeno Cetoddle. Os filhotes mais velhos,
davam pulos de entusiasmo em redor do irmãozinho, e aqueles que já atingiram a
maioridade e independência aguardavam, pacientes, com um esbelto sorriso
manchado no rosto. O ovo brilhou, tomando uma nova forma, explodindo em brilho.
As cascas do ovo voaram uns centímetros, dando lugar a uma criaturinha
rechonchuda de pele negra.
Esperem…
Pele… negra?
O casal se
abraçou, mas logo se largaram quando o pequeno bebé abriu os olhos no meio das
cascas quebradas.
O pequenino
Cetoddle olhou ao redor, sem compreender os motivos dele ser tão o centro das
atenções. A mãe o tomou nos braços, apesar de um ligeiro medo provocar-lhe um
formigueiro nas barbatanas.
Por fim,
alguém quebrou o gelo entre o povo que assistia.
– Ele tem uma
coloração diferente! – Balbuciou. – Isto não é bom…
– É um Pokémon
Shiny… – Wohali murmurou, sentindo uma vaga de ansiedade em cima de si.
– O que tem o
meu irmãozinho? Ele é doente? – A Tinkatuff questionou-lhe.
– Não. Nada
disso… Ele só é… Diferente…
Depois das
expressões de surpresa, vieram as de tristeza. Wohali não aguentou muito tempo
com o bebé nos braços, entregou-lhe à esposa e abandonou o local. Apenas assim.
Muitos outros Pokémon fizeram o mesmo, e, num piscar de olhos, só ficou a
Tinkatuff e a Cetitan fêmea presentes nos espaço, sem nenhum dos outros
habitantes do vale voltarem ali assim tão cedo para visitas.
O entusiasmo
todo apenas tinha… Desvanecido. Como se agora o pequeno Cetoddle não tivesse
mais importância.
– O que… O que
é que aconteceu? – A Tinkatuff não compreendia nada.
Tudo se
passara muito rápido, como os flashes
de tempestades de raios em seus olhos.
A fêmea
sentou-se ao lado dela, amamentando o seu bebé.
– Gostas de
histórias, miúda? – Questionou-lhe de súbito.
– Sim. – Ela
abanou a cabeça. – O Senhor Wohali costumava contar-me muitas histórias nas
pausas dos nossos treinos, quando eu era miúda.
Ela assentiu.
– Achas que
ainda aguentarias ouvir mais uma história? Desta feita, vinda de mim? Eu não
sou lá muito boa a contar histórias, mas já és da nossa família. Chegou a hora.
Tem uma coisa importante, que eu acho que precisas de saber.
– Claro.
Histórias são imortais e imateriais. Elas carregam ensinamentos que podem
auxiliar e ensinar pessoas de qualquer idade. – A fada respondeu, tentando
perceber a onde a amiga queria chegar.
– Muito bem. –
A mãe embalou a cria recém-nascida, com tanta serenidade, ao ponto do pequenito
adormecer. Depois, murmurou. – Vamos começar então.
Há muito tempo atrás, um treinador humano de
Zapapico adorava vir treinar seus Pokémon nestas montanhas. Porém, esse
treinador tinha um método curioso de treino. Se algum Pokémon perdesse uma
batalha, ele o descartaria, e capturaria um novo.
Certo dia, depois de perder uma batalha com
outro treinador, esse humano desprezível largou dois Pokémon no topo da
montanha, e de seguida, desapareceu para sempre.
Um desses Pokémon… Era um Cetitan… E bem… O
outro era… Um Corviknight…
O Corviknight não estava habituado ao clima
frio de Glaseado, por isso, ele tinha muita dificuldade em adaptar-se em nome
da sua sobrevivência. Não sabia onde encontrar comida, e sempre andava em rixas
com os Pokémon locais. Graças a Arceus, seu amigo, o Cetitan, estava em seu
habitat natural, e logo auxiliou-o e protegeu-o o máximo que conseguiu
consoante seus instintos.
Ambos eram companheiros inseparáveis,
enquanto recuperavam a perda que era a dor de serem abandonados pelo treinador.
Porém, eles não ficariam para sempre assim
juntos e unidos, pois nada é eterno.
Numa tarde fria, quando exploravam a
montanha para encontrar abrigo face a uma tempestade que se avizinhava,
encontraram um vale, que era governado por uma colónia de Cetitan. O
Corviknight não quis continuar a caminhada, pois sentia que não seria bem-vindo
lá em baixo, já que os Cetitan eram um povo bem territorial, o que podia entrar
em conflito com sua natureza.
Mas seu amigo Cetitan ficou maravilhado por,
depois de tantos anos, reencontrar Pokémon da sua própria espécie, e desejou
conviver com eles. Enquanto isso, o Corviknight apoiou as escolhas do amigo a
cada segundo.
Pela primeira vez em muito tempo, o
Corviknight ficou sozinho e enfrentou os perigos da natureza da montanha
sozinho. Viu-o descer até o vale e desaparecer, e no topo da montanha, aguardou
o retorno do seu amigo.
Aquilo que julgou ser uma simples visita
passageira ao início, tornou-se em visitas frequentes, e quase todos os dias, o
corvo negro ficava à espera dele, enquanto o cetáceo descia sempre até a
comunidade que lhe passou a ser muito amada.
O Cetitan partia de manhã antes do sol
nascer, e regressava sempre, muito feliz, ao anoitecer, e o Corviknight sorriu
com ele, feliz por ele, mas no fundo, começou um certo tipo de remorso. O
Corviknight sabia que, para breve, ficaria sozinho naquele mundo frio, enquanto
o seu amigo ia ao vale e convivia com seus iguais.
Certa noite, o pior aconteceu: o Cetitan não
regressou.
O Corviknight eriçou as penas, preocupado,
mas não quis descer ao vale, e então, aguardou pela manhã.
Mas na manhã seguinte, também não havia
qualquer sinal. Não existia qualquer vestígio do seu regresso.
E os dias, tornaram-se semanas.
As semanas, tornaram-se meses sufocantes de
espera.
Cansado de esperar, e faminto por não se
acostumar ao clima de Glaseado e não encontrar alimento suficiente sem qualquer
ajuda, o Corviknight soltou um piar de fúria. Elevou as asas e mergulhou colina
abaixo, cortando o ar gélido, em direção ao vale.
A primeira coisa que a colónia de Cetitans
sentiu foi uma ventania como a de um vendaval. Eles correram em direção ao
corvo para expulsarem a ameaça do seu território, e o corvo, completamente
alterado, atacou-os sem piedade, em busca do amigo, pois aqueles malditos
tiraram dele quem lhe era mais especial. As perdas foram imensas, pois o poder
do Corviknight se sobrepunha a qualquer poder dos outros.
Quando, por fim, encontrou o Cetitan, no
centro de uma gruta gélida, seu olhar encarnado mostrou confusão, que logo
tornou-se em revolta e fúria após contemplar a visão. O cetáceo estava ao lado
de uma fêmea, e ambos tinham uma pequena cria nos braços. A cria era um pequeno
Cetoddle, de cor diferente.
Muitos Pokémon rejeitam os Shinies pois
acreditam que eles são um mau presságio. Talvez, os Cetitan daquele vale ainda
hoje pensam nisso devido ao que aconteceu logo a seguir ao nascimento daquele
Cetoddle. Aquele pequeno nasceu, e o desastre caiu dos céus em forma de
massacre.
As penas do corvo negro eriçaram-se. Suas
pisadas fizeram tremer a terra, enquanto se aproximava e fitava mais de perto
toda a cena.
– Porque não me contaste que tinhas uma
família aqui! Eu cansei-me de esperar por ti! – Gritou o corvo, em fúria. –
Esqueceste de mim! Deixaste-me à fome!
– Amigo… Eu… Eu posso explicar… – O Cetitan
começou, cheio de confusão. Ele próprio não sabia o que dizer.
Talvez, no fundo, o Corviknight tinha um
pouco de razão quanto a isso. Ele o abandonara sem dizer nada. Apenas virara as
costas a seu passado e tentara construir uma vida ali, sem dar resolução às
pontas soltas. E o passado regressou para o atormentar, cedo demais.
– Abandonaste-me, tal como o nosso
treinador! – O corvo piou mais alto, mas tão alto, de tal maneira que as
estalactites que pendiam no teto da gruta quebraram e caíram tamanho fora a
vibração do eco do som.
O casal desesperou em se proteger, mas tudo
o que fizeram foi em vão face à queda repentina das farpas do teto. E uma delas
atingiu em cheio, a cria recém-nascida… Bem em cheio, no coração.
– O quê… O que é que fizeste? – O Cetitan
gritou, com a cria imóvel nos braços, enquanto a fêmea chorava aos prantos, e a
tentava reanimar.
O desespero caiu naquela terra, naqueles
segundos, era claro no jovem casal.
Mas o olhar do Corvo não demonstrava
qualquer nível de arrependimento, e muito menos, de perdão. Pelo contrário,
sentiu prazer naquilo.
Ao se aperceber que sua cria não voltaria à
vida, e ao notar todas as mortes que existiam lá fora, o Cetitan atirou-se ao Corvo.
Ambos lutavam de igual para igual. Mas a
fúria da ave era maior que a dor da perda da criança, e o Cetitan vacilou,
depois de horas e mais horas que ambos trocaram golpes que fizeram a montanha
tremer.
O cetáceo recuou alguns passos. Perdera um
chifre, e parte do corpo estava desfigurada devido às garras do grande maldito
corvo. O Corviknight também ganhara umas boas cicatrizes, mas estava mais revigorado
do que nunca, como se toda a batalha o tivesse enriquecido em vez de
enfraquecido.
Ambos ofegavam.
O Corviknight podia ter acabado com ele
naquela altura com um golpe certeiro na nuca do Cetitan. Mas apenas não o
fizera. Queria ver o seu ex melhor amigo sofrer, igual àqueles meses todos que
ele esteve sozinho no ponto mais alto de Paldea, a tentar sobreviver no meio da
neve e gelo.
– Querem brincar às casinhas? – O Corviknight
gargalhou, com o corpo da cria entre as suas garras enormes. Apertou tanto o
corpo arredondado do pequeno que o mesmo explodiu em pedaços. – Então vamos
brincar.
Ele foi ao exterior e dirigiu-se no meio da
multidão, o grupo de Cetitan rugiam e outros ainda lamentavam as perdas dos
familiares e auxiliavam os feridos. Foi quando o Corvo atirou o corpo
desfigurado da criança para o centro do vale, e com o peito estufado, bramiu
aos céus.
– A partir de hoje, vocês serão os meus
bichinhos de estimação. E eu serei o vosso treinador! – Anunciou ele, com uma
gargalhada histérica, que nunca mais seria esquecida entre os presentes.
Ergueu as asas e voltou ao ponto mais alto
de Glaseado. Reuniu os Pokémon mais perversos que habitavam em suas sombras, em
troca de poder e recompensas, enquanto os Pokémon do vale lamentavam toda a
tragédia. Com medo do Corvo regressar, e voltar a desvanecer sobre eles a sua
fúria, começaram todos a lhe prestar culto e a lhe oferecerem alimento e
proteção. E quem se rebeliava face a suas ordens, mais tarde ou mais cedo,
sofria terríveis consequências.
Era apenas o início do seu reinado de terror
sob a montanha.
As palavras da
mãe Cetitan cederam. A Tinkatuff moveu-se, como se estivesse a despertar de um
sonho que tivera enquanto acordada. Até aquele momento, não tinha pestanejado.
As sombras de ambas tremeluziam, sinistras, nas paredes da gruta, em contraste
com a luz existente lá fora.
– Isso…
explica muita coisa. – Começou a dizer, procurando as palavras certas. – Sempre
me questionei dos motivos de Wohali saber tanta coisa sobre os humanos. E já
estava óbvio que ele tinha um passado com o Corvo.
– Brites era o
nome dela… da minha menina… – A mãe começou a chorar, fitando a sua nova
criança adormecida em seus braços, e beijando-lhe a testa. – Ele não é ela… Mas
o mesmo peso… A mesma cor rara… Lembrou-me todos os dias daquele massacre, como
se fosse ontem.
– Eu vou
encontrar o Corvo. Não era motivo para tudo o que ele fez. Ele merece a morte
depois de tudo isto… – A Tinkatuff cerrou o punho, com o coração carregado de
revolta. – Mas mesmo assim, porque é que o Senhor Wohali não foi sincero com
ele? Isso podia ter evitado tanta coisa, certo?...
A mãe Cetitan
continuou com os olhos perdidos nas lágrimas. Sua mente procurou as palavras
certas no meio da mágoa e da dor.
– O corvo era
ciumento. O Wohali disse-me que apenas não sabia como lhe contar. Ele aguardou
até se sentir pronto a isso, mas a hora nunca chegou e foi tarde de mais. Não
gosto de lhe pressionar, e ele não menciona o assunto. Acredito que tenha algo
mais nessa história, sinto que ele não foi sincero comigo a cem por certo
quanto ao assunto. Acho que em certo ponto, ele esqueceu-se a sério que o seu
melhor amigo esperava por ele e sentiu-se culpado.
– Isso é
horrível… – A Tinkatuff acabou por soltar, incrédula.
– De certa
maneira, também me sinto responsável. Fui eu que implorei ao Wohali para passar
as noites comigo na época… Éramos um casal jovem, maluco, apaixonado, mas eu
não sabia sobre o amigo dele… e por outro lado, não tenho arrependimentos. Foi
a nossa escolha, e com ela, criamos uma família e vivemos uma vida maravilhosa…
Fez-se um
breve minuto de silêncio.
– Acredito que
o Senhor Wohali não vai descansar enquanto a situação do Corvo não for
resolvida. – A Tinkatuff suspirou, algum tempo depois.
Ela segurou a
barbatana da amiga, de forma bem firme.
– Eu prometo.
Vou encontrá-lo e dar um final a esta história toda uma vez por todas. Assim,
posso recuperar meu martelo, e vocês, viver em paz graças à justiça… Numa paz
verdadeira e palpável.
– Não… Não
sei… Esta criança foi um sinal e…
– Se tem uma coisa que as histórias do Wohali me ensinaram é que não podemos julgar um povo inteiro por um individuo só. – A fada declarou, lembrando-se do final da história da Lechonk caída do céu que Wohali lhe contara, tantos Verões atrás, enquanto fitava o pequeno Cetoddle com ternura. A Cetitan ficou em silêncio. – A situação com a vossa primeira cria não correu certo, mas não significa que, com este pequeno, a mesma história se repita.
...
Na manhã que
se seguiu à história reveladora, a Tinkatuff decidiu reunir algumas berries,
agarrar sua pá, e partir viagem. Não disse nada a ninguém, pois sabia que, se
comentasse alguma coisa, levaria sermão. Além disso, não planeava ir muito
longe… Pelo menos, para já.
A sua primeira
paragem seria o pico mais alto de Paldea. O lar do Corvo. O local onde, de
acordo com a história, o treinador humano os havia abandonado aos dois.
Subir a
montanha até ali não era difícil, e ficaria próxima do vale o suficiente, caso
alguma coisa, ou alguém, lhe atacasse, e ela sentisse a necessidade de pedir e
gritar por ajuda.
E ela tinha
que começar a caçar o Corvo em algum lugar. Nada melhor que explorar um pouco o
próprio ninho onde aquela besta sempre se empoleirava durante o seu reinado de
terror.
Sentiu algo
sinistro com o facto de nenhum Pokémon querer se aproximar do espaço… Ela não
os julgava, afinal, o local e o pequeno altar onde os alimentos oferecidos ao
Corvo eram depositados, davam-lhe calafrios, como se o espaço inteiro fosse
constantemente assombrado por más energias. Remexeu-se, nervosa, sempre com o
punho bem serrado no cabo de madeira polida da sua pá valiosa. A energia
negativa que pairava o ar era quase palpável, como uma fera viva espreitando em
todas as sombras.
Ninguém ousava
aproximar-se da placa de madeira ali instalada pelas mãos humanas, tirando,
talvez, um ou dois Gimmighoul que gostavam de apreciar as vistas e roubar as
carteiras dos poucos humanos que por ali se aventuravam, já que, para eles, era
um ponto turístico famoso.
A Tinkatuff
deu uns passos em frente, contornando o altar. O espaço entre a rochas
encontrava-se vazio. Não passava de um pilar encoberto de neve, uma simplória
lembrança de outros tempos. Ela recordou-se da primeira vez que ali estivera,
da voz do Corvo, tremendo a terra e o ar, da discussão e da luta sangrenta que
sucedeu-se após isso, e da má qualidade dos alimentos que Wohali tinha direito.
Dos dias a fio que as crias e as famílias do vale passavam fome.
Agarrou a sua
pá com ainda mais firmeza, reunindo toda a sua fúria e frustração.
Aterrou a mesma
no pilar.
Ele já não
precisava de existir. Só trazia memórias ruins.
As rochas se
desfizeram devido à ferocidade do seu golpe. Alguns dos pedregulhos voaram, em
diferentes direções. Um deles foi até a placa de madeira, batendo nas letras lá
gravadas pelas mãos humanas. Quando a rocha desceu na neve, a Tinkatuff notou
um ‘’ping’’ característico de… metal?
A fada olhou,
totalmente desperta, procurando a origem do som. Seu instinto de apreciadora
daquele material nunca se enganava quando estava perto de alguma peça que
pudesse moldar a seu prazer.
Aproximou-se,
ultrapassando os limites, pisando neve que ninguém ousava nunca pisar.
Passou seus
dedos grossos pela placa, sentindo-lhe a textura. Inúmeros traços eram recortados
ao longo da madeira. Eram letras, que diziam algo como ‘’O Ponto mais Alto de
Paldea, uma das dez maravilhas da região’’ mas a Pokémon não sabia isso, pois
nunca convivera com humanos o bastante para reconhecer aqueles símbolos
bizarros que agora preenchiam a sua imaginação.
Mas apesar do
seu conhecimento limitado, sabia que uns três furos encontrados ao longo da
placa não lhe eram saliências naturais. Alguma coisa cintilava no fundo do
abismo negro de cada um desses buracos.
Esfuracou a
madeira, abrindo-a mais, e removendo com cautela uma espécie de cilindro comprido
de metal.
Fez o mesmo
com os restantes dois buracos. Precisou de um pouco de força e agilidade a
manobrar seus dedos gordos para conseguir remover aquilo da placa, mas com
calma, lá conseguiu.
As três peças
minúsculas de metal tinham um tom prateado, e, numa das extremidades, era mais
comprida e afiada que a outra.
Com ar
confuso, ficou a fitar aquelas três peças na palma da sua mão, pois nunca antes
vira nada daquilo. Olhou ao redor, pensando em o que fazer a seguir.
Depois olhou
para baixo.
Algo lhe disse
para… apenas, olhar para baixo.
Várias rochas
estavam ali amontoadas, parcialmente encobertas de neve e galhos soltos de
algum arbusto rasteiro, já sem folhas. Alguns daqueles rochedos serviam para
sustentar a placa de madeira no ar, mas a Tinkatuff sentiu que, ali, bem no
meio, estava escondido algo… Algo mais.
Uma das rochas reluzia à luz fraca do sol, e
lembrava mais um pedaço enorme de metal que outra coisa, já há muito enterrada
na neve. E, de facto, o era. O barulho que ouvira quando a rocha do altar caíra
ali, fora, possivelmente, causada pelo impacto que tivera naquela peça há muito
perdida.
Segurou na sua
pá e penetrou-a ao lado daquela peça de metal, bem a fundo.
Expirou e
inspirou.
Expirou e
inspirou.
Preparou-se, e
fez força com a pá, cavando o gelo.
Tentou
aguentar o peso que a revelação teria, para não gritar em choque.
Penas negras,
pele, placas de metal do que outrora fora uma armadura, e ossos, ergueram-se ao
ar com o movimento proferido pelo seu longo instrumento de batalha. Um grito
silencioso formava-se num grande bico aberto, ainda preso num crânio, que
surgiu quando o gelo que o encobria deslizou ao chão. As asas, outrora, sempre
eretas, viradas aos céus, encobrindo o sol, agora pendiam, inertes.
Devido ao
frio, a maior parte do corpo ainda se encontrava bem conservada.
A figura do
Corvo era irreconhecível, e, ao mesmo tempo, um terror familiar.
A Tinkatuff
deixou a sua pá cair como reação à descoberta. Permaneceu, imóvel, observando
aquela criatura toda retorcida. A armadura que cobria o peito do Corviknight
contava com vários furos, semelhantes ao que a Tinkatuff avistara na placa de
madeira.
O que quer que
tivesse acabado com o Corvo, ia muito além da sua compreensão.
Arrancou o
metal do corpo da ave morta para o moldar e o usar a seu bel-prazer. Continuou à
procura de mais provas que pudessem levar à origem de tudo aquilo, mas não
encontrou mais nada de suspeito.
Tinha o metal
do seu precioso martelo de volta. Sua vingança estava, tecnicamente, concluída.
Mas porque é que aquilo tudo tanto a inquietava? Jurava que iria ser inundada
por uma onda de paz e felicidade quando tivesse o seu martelo em mãos, mas não
fora isso que acontecera.
Muito pelo
contrário, o incómodo dos tempos calmos tornou-se ainda maior.
Talvez, tal má
sensação na boca era derivada do facto de não ter sido ela a o enfrentar e a o
matar? Ela não sabia, mas tinha a certeza, que tinha que resolver aquilo.
O Corvo fora
derrubado.
O Corvo estava
morto.
Mas, como ela
previa… E como a superstição dos Cetitan face a Pokémon de coloração diferente
ditavam…
Um mal novo
espreitava a montanha.
…
A descida até
o vale fora mais pesada do que o costume.
A primeira
coisa que tinha que ser feita era dirigir-se até a gruta do casal e informar
Wohali da macabra descoberta. Ao mesmo tempo, ela não queria anunciar a toda a
gente a existência do corpo, pois sabia que o seu velho amigo Cetitan precisava
do momento de luto e reflexão só para si devido a seu passado. Por hora,
limitou-se a lhe dizer que tinham que lhe mostrar qualquer coisa no topo da
montanha.
Partiram mesmo
no final daquela noite, chegando ao destino logo de manhãzinha, pouco antes do
sol nascer. Toda a viagem foi silenciosa, como se Wohali já desconfiasse o que
a Tinkatuff tinha para lhe contar.
Ao chegarem ao
topo, não demoraram muito a analisar o corpo. O céu clareou com o nascimento do
sol, deixando toda a paisagem ainda mais clara e solene. A fada já havia
retirado metade da armadura e expandido a sua pá. O Cetitan auxiliou-a a
retirar o que restava de metal que podia ser aproveitado. Os restos mortais do
Corvo foram enterrados no local onde outrora existia o altar, com as pedras do
mesmo encobrindo o espaço.
Os trabalhos
foram feitos sem troca de palavras.
Cada pedra
fora posicionada de forma estratégica, lembrando o velho altar que a Tinkatuff
destruíra, logo, quem por ali passasse não desconfiaria de nada. Era como se o
pilar de rochas nunca tivesse saído daquele espaço, abrigando a ossada de uma
ave negra perversa.
A fadinha
desejou protestar. O Corviknight não merecia aquele espaço de descanso tão
digno. Por ela, ela atirava a ossada do maldito corvo para algum local
distante. Talvez, desse de alimento a alguma matilha faminta de Lycanroc. Ou
atirasse-o bem no fundo da Grande Cratera de Paldea, para as feras que lá
habitavam deliciarem-se com os restos. Reduzir aquele corpo a pó era uma
certeza sua.
Mas nada
disse, respeitou os desejos do velho cetáceo.
– Espero que a
natureza da montanha te tenha alinhado os pensamentos, amigo. – O Cetitan
começou a dizer. – Quando Arceus me levar a seu reinado, espero que possamos
fazer as pazes e falar sobre arrependimentos… Isto, caso as portas de Giratina
sejam abertas para permitir nosso reencontro.
A fada torceu
um pouco o nariz. Se achava o ‘’belo altar’’ uma porcaria para abrigar o corpo
daquele maldito, então aquela prece era dispensável. Enquanto Wohali estava de
costas viradas para ela, ainda a fitar a paisagem e a refletir sobre a
finalidade de tudo aquilo, ela encarava os pedacinhos prateados que tinha na
palma da mão.
Não dissera
nada a seu companheiro sobre aqueles estranhos cilindros. Preferiu esconder os
mesmos do olhar sábio dele.
Ele julgava
que a morte do Corvo não passava de causas naturais. Fizera um frio excepcional
naquele dia a seguir ao ataque da alcateia. Talvez, a ave negra não aguentara a
pressão, e a neve cobrira o corpo caído muito antes de alguém reparar nele.
Era melhor
assim.
Tudo estava
terminado.
A Tinkatuff
não queria que o Cetoddle recém-nascido arcasse outra preocupação. Não queria
que o vale e seus habitantes vivessem, mais uma vez, a pressão que era saberem
que existia um predador à espreita.
Apertou o
punho, escondeu aqueles pedaços misteriosos e olhou em frente. Uma suave brisa
de vento moveu-lhe os cabelos desgrenhados. Sentiu um peso por esconder a real
causa de morte do Cetitan, mas era o mais indicado no meio de tantas
circunstâncias.
– Sei no que
estás a pensar… – Ouviu a voz do amigo, de súbito. Ele se aproximava dela. –
Que o teu trabalho aqui está feito… não é?...
– Toda a minha
vida eu ansiava recuperar meu martelo e derrubar o Corviknight que mo roubou. –
Disse, fitando a sua pá e a nova camada de metal que a revestia e mais pesada a
deixava. – Mas, ainda não me sinto completa.
Ele assentiu.
– Sabes… Em tempos
senti essa mesma sensação. Acho que nunca pensaste bem no que viria a seguir,
estou correto?
– Sim. – Ela
não o podia negar. Mas ao mesmo tempo, procurou as palavras certas, para não
revelar seus planos. – Acho que preciso de um novo objetivo para me guiar na
vida.
Wohali esboçou
um sorriso. Um lento e triste sorriso.
– Então… Era
assim que ali o velho corvo se iria sentir se eu lhe tivesse contado… –
Murmurou para si. – Minha gordinha. Não te quero obrigar a nada. Se achas que
deves partir… Apenas vai. Vai e encontra um novo lugar na natureza. Terás todo
o meu apoio. Mas antes, quero que saibas que foste uma das melhores coisas que
me aconteceu, e és como uma filha para mim. Uma bênção. E aqui, serás sempre
bem-vinda.
A Tinkatuff
deixou uma lágrima escapar. Virou-se, e sem hesitar, abraçou o velho cetáceo,
com todas as suas forças. Ficaram tanto tempo assim que a pequena fada até
sentiu em seu corpo a textura de todas as cicatrizes que o pintavam. Wohali
também chorava, enquanto a apertava com força, como se desejasse pegar nela em
suas barbatanas como uma minúscula berry. Ela já estava maior, muito maior, e
dificilmente se iria voltar a confundir no meio de um montinho de bagas, mas,
para ele, ela seria para sempre a sua pequenina.
– Obrigado.
Muito obrigado Senhor Wohali. Muito obrigado por tudo.
Após um breve
observar ao vale, que seria o seu último em muito tempo, começou a se
distanciar. Levava consigo apenas a sua pá. Ela não precisava de mais nada
depois daquele momento precioso de despedida.
Já uns metros á frente, ouviu a voz do amigo a
chamando. Quando olhou para trás, este acenava.
– O gordo de nosso vizinho desdentado foi visitar a família a um outro vale, ele já saiu há umas semanas com suas crias... Se o vires, chama-o de gordo!
– É claro! – A
Tinkatuff começou a rir, retomando sua marcha. – E vou-me certificar que nós os
dois iremos rebolar outra vez montanha a baixo!
– E boa sorte,
minha gordinha! Que Arceus te guie na tua demanda!