Posted by : Shiny Reshiram 15 de nov. de 2023


– HORA DE ACORDAR, MINHA DORMINHOCA! HOJE É O GRANDE DIA! – ouviu uma voz familiar, gritar em seu ouvido.


Juliana piscou os olhos, tonta de sono, a assimilar se a voz que a chamava, era, ou não, real. Virou-se para o lado, na tentativa de voltar a adormecer, pois estava tão bem a viajar nos seus sonhos e no quentinho das cobertas.


O seu quarto encontrava-se tanto escuro que era difícil acreditar que já era de manhã, mas uma luz branda acendeu-se e dissipou quase todas as sombras pelas paredes. Agarrou na almofada num gesto quase instintivo, cobrindo a cabeça para proteger suas pálpebras da luz do candeeiro recém ligado ao seu lado, que surtia um efeito escaldante aos olhos.


– Eu disse… Acorda! Julie, são horas de acordar! Se queres chegar a tempo e horas à escola, tem que ser agora! – Haruka insistia, em alto e bom som, sacudindo-lhe o ombro.


– humm… Mãe… Que barulheira é esta?… Só mais um bocadinho… Por favor… O sol ainda não nasceu sequer… Só mais cinco minutos… – a jovem procrastinou, enterrando-se mais na almofada e nos cobertores da cama.


Estava prestes a adormecer outra vez, quando a voz voltou firme e forte, ecoando na sua cabeça.


– Hey! Coisa! Tu ai! Sim! Tu!... Sê útil uma vez na vida e faz o teu trabalho. – notou a mãe a chamar, mas não chamava mais por ela.


E seguiu-se um tão desejado silêncio.


Nos segundos iniciais julgou estar outra vez a sonhar no meio do quentinho e do conforto do quarto, viajando entre as nuvens e Cyclizars fofos correndo os seus sonhos, mas um sexto sentido seu não tardou a revelar um peso enorme e muito estranho a mover as cobertas. Quando deu por si, Juliana sentiu algo penetrando debaixo dos lençóis. Alguma coisa estranha e húmida mordendo-lhe e puxando-lhe a perna.


E soltou um grito, quando, de súbito, se viu fora da cama, de cabeça para baixo, pendurada por um pé como quem era apanhada numa armadilha de uma árvore. E, por causa desse gesto repentino, perdera por completo a vontade de dormir mais.


– Moto-Moto! – exclamou, em pânico. – Põe-me no chão! Põe-me no chão! Põe-me no chão imediatamente! PÕE-ME NO CHÃOO!


Tamar gritava ali ao lado, histérico por ver a treinadora assim de cabeça para o ar. Tolya deliciava-se com o espectáculo. Rosa não dava a mínima, pois ainda dormia nas cobertas, ignorando toda a confusão. Já Haruka sorria imenso com a brincadeira, pois começava a gostar do dragão com a nova utilidade que lhe dera.


O Cyclizar estranho largou a sua treinadora ao fim de muitas súplicas da mesma. Largou de tal maneira violenta que Juliana caiu no chão duro do quarto num estrondo feroz que ecoou em todas as paredes. Elevou-se com dificuldade, sentindo uma dor aguda percorrer-lhe o corpo devido à pancada.


Sentou-se e ajeitou os pijamas, enquanto o grande dragão se instalava no topo da cama revirada ao seu lado, e tentava-lhe morder o braço em brincadeiras. O bicho sacudiu as penas enormes da sua cabeça, fazendo estas terlintar, e a fixou com ar divertido.


– Não voltes a fazer isso! – Juliana repreendeu-o, furiosa e já bem desperta. – Podia ter morrido ou partido alguma coisa!



Mas ela não queria ficar muito tempo zangada com aquela carinha dele, e atirou-se contra a enorme criatura, deixando-se ser inundada por sua língua áspera. A mulher aproximou-se, dando-lhe umas leves pancadas no focinho, para o afastar da jovem, com objectivo deste não lhe estragar mais os pijamas e ambas poderem conversar à vontade.


– Moto-Moto? Então é esse o nome que lhe deste? – Haruka soltou uma gargalhada, enquanto deixava o Cyclizar lamber e cheirar sua mão.


A mulher estava bem disposta, até demasiado, tento em conta a choradeira toda da véspera. Juliana fixou-a, satisfeita por ver a mãe com outra cara e com aquela proximidade toda ao dragão.


 – Sim… Era para ser Motoca, mas pensai melhor e Moto-Moto tem um tom mais selvagem. – e deu uma caricia leve no focinho do Cyclizar. – Tal como ele parecia ser quando eu andava em busca dele nas praias. Não é amigo?


O bicho sacudiu-se outra vez, gostando bastante do nome lhe dado.


– Motoca… Ainda gostava de saber onde foste buscar essa palavra… Mas Moto-Moto não é o nome de um Hippowdon sexy daquele filme de Unova que tem um Pyroar mordendo a traseira de um Zebstrika?


A jovem endireitou seus longos cabelos, mas não deixou de fitar a mãe com um certo nível de constrangimento.


– Sim?! Caramba, mãe! Tu ainda te lembras desse filme?


O diálogo entre as duas foi interrompido de súbito com os piares de excitação dos papagaios do telhado, seguido do som do sininho da porta frontal da Padaria. Sons característicos estes que fizeram Haruka ter que atender quem quer que fosse que estivesse lá em baixo naquela hora.


– Quem será a esta hora?... Bem. Vê se te despachas, querida. O pequeno-almoço está a arrefecer na sala. – disse, esfregando a mão nos cabelos de Juliana, antes de se retirar do quarto às pressas, na companhia de Tolya e Tamar que quiseram dar uma ajuda nos serviços iniciais da rotina antes de partirem.


A jovem desativou os despertadores, pois já não precisava mais deles. Apesar dos mesmos ainda não terem tocado, faltava poucos minutos para o fazerem.


Confirmou melhor as horas. Cinco e meia da manhã.


Soltou um bocejo.


Tinha a informação que as aulas em Mesagoza começavam às nove, mas tinha que estar a marcar presença na Academia meia hora antes, ou mais cedo ainda, como pedido do Diretor, que precisava de conversar com ela no seu gabinete.


Cabo Poco até Mesagoza demorava aproximadamente uma hora e meia de viagem, ou seja, tinham que sair de casa às seis e meia se quisessem prosseguir a viagem nas calmas e chegar à Academia às oito horas em ponto, e lá fazer tudo o que fosse necessário antes das aulas.


Tendo em vista a forma bruta como acordara, era óbvio sentir uma pontada de dor de cabeça e no corpo enquanto matutava naqueles cálculos todos, e teve dificuldades em os esqueçer quando começou a se mover no cómodo. Sua mãe estava certa em lhe arranjar um dormitório na escola, pois a longo prazo, ela não conseguiria aguentar a pressão daquela rotina se ficasse as noites em casa e ainda levasse com os exigentes trabalhos e estudos ao final das tardes.


Mas mesmo assim, não existia garantias que o resto da situação seria fácil de enfrentar.


Juliana aproveitou a ausência da mãe no quarto para se vestir mais à vontade, escolhendo alguma peça leve no guarda-roupa. Sabia que se a mãe estivesse presente, ela iria exigir o melhor fato de gala que Juliana conseguisse encontrar entre as suas roupas, para chegar a Mesagoza mostrando o melhor da sua imagem.


Mas Juliana era uma jovem simples que não ligava muito a aparências, portanto, não se importava de vestir qualquer coisa por ai – claro que existia uns limites, tais como pijamas sujos de farinha.


Preparou várias mudas de roupa para levar numa mochila à parte. Sua mãe dissera para ela não se preocupar com nada daquilo, pois os alunos usavam o uniforme da escola a maior parte do tempo, e ela sempre podia ir carregando aos poucos qualquer coisa que fizesse falta dos seus pertences quando regressasse a casa. Mas Juliana estava demasiado ansiosa, e isso a fez pensar em vários detalhes minuciosos.


Era sempre melhor prevenir do que remediar.


Quando terminou os últimos preparos e certificou-se que tinha tudo necessário pela última vez, agarrou sua guitarra, afastou os cortinados e abriu a janela, deixando sua face ser inundada pelo ar gélido da manhã.


Tal como imaginava, o sol ainda não tinha nascido, mas já dava sinais dos seus primeiros raios, pois uma leve faixa alaranjada pouco a pouco se formava no horizonte. Seria um dia de bom tempo, tal como nas semanas anteriores que pareciam Verão naqueles dias de Setembro. As ondas do mar a abençoaram com sua maresia enquanto vários Wingull voaram baixinho por cima do jardim da casa.


Juliana respirou fundo, aproveitando o ar. Sabia que em poucos dias iria sentir falta de toda aquela natureza simples nada comparável á confusão da Academia e da cidade, e que vir a casa aos fins-de-semana nunca seria suficiente para matar a saudade de toda aquela paisagem deslumbrante.


Há muito tempo que não acordava antes do sol nascer, pois sempre se deitava bem tarde. Rosa juntara-se a ela, se apoiando no parapeito da janela para analisar a vista, deixando o Cyclizar arruinar o restante quarto. A humana esboçou um pequeno sorriso a ver o apoio silencioso dos seus Pokémon, e nunca imaginou como as manhãs podiam ser tanto inspiradoras como as madrugadas que ela passava em branco a produzir músicas e a percorrer as praias.


Fixou o olhar no horizonte escuro, muito além daquele promontório. Acariciou a Sprigatito entre as orelhas, e sentiu o Cyclizar lamber-lhe o ombro. A presença dos seus amigos Pokémon era um fator que a animava bastante, e tocar guitarra e cantar também incluía-se nas lista de coisas que a acalmavam, se no espírito certo.


Os dois Pokémon a fitaram, pois naquele breve momento, seriam seus espectadores atenciosos. E rapidamente, o ar matinal de Cabo Poco fora inundado por sua melodia.

 

É hoje, que tudo mudaaa;


É hoje, que tudo começaaa;


Só espero que a crença;


Não se partaaa, a mil!

 


Pois a mudança, é inquieta;


 Enquanto a palavra, é tão esbeltaaa;


E a realidade, perigosa;


Fina, como um fiooo!


 

E a hora aproxima-se;


Não dá mais para aguentar;


Não sei se vou sobreviver;


A onde, vou, estar!...


 

Os papagaios dos arredores, ainda ensonados, pousaram no parapeito para apreciarem a música. O uivo melancólico de Manjar foi ouvido, proveniente do andar inferior da casa, a acompanhar a melodia. Juliana parou de tocar e cantar quando sua mãe surgiu fora da porta, alguns minutos depois, e chamou por ela.


– Bela música. Mas não é a melhor altura para tocar. Temos que nos apressar.


– Eu sei, mãe… – e deu uma espreitadela na janela, uma ultima vez. – E não sei porquê, às vezes a inspiração vem nos piores momentos.


– Compreendo o que sentes…


No início pensou que ela iria comentar sobre a roupa que portava, mas a mulher após a elogiar, não parou foi de fitar o Cyclizar estranho por cima da cama desarrumada.


O olhar era tão atencioso que a fez encolher os ombros e mudar outra vez sua disposição, não só tomada de vergonha pelo quarto estar uma bagunça autêntica, mas também pela punição que estava a pensar que iria receber, pois ainda não se tinha livrado totalmente desta.


Mas Haruka não lhe repreendeu por nada nem mencionou nada a mais sobre o dia anterior.


– Vamos lá comer? Não te preocupes com o quarto, eu depois trato deste lixo mais tarde.


– Quem é que estava lá em baixo? – Juliana questionou com curiosidade, já agarrando tudo o que precisava de levar consigo e saindo pela porta ao lado da mãe.


– O senhor Andrew veio me agradecer pessoalmente pelo bolo de ontem.


– Veio cá só por isso?… De propósito?… A esta hora?... O que ele disse mais?


– Bom… Ele acorda sempre muito cedo para caminhadas matinais antes da hora do trabalho. E aproveitou para comprar uns pãezinhos quentes. Ele disse que o bolo estava muito bonito. O mais belo Dachsbun que ele alguma vez me encomendou. Ele quis saber os motivos do bolo ter um ar tão especial.


Juliana encolheu os ombros, recordando todos os detalhes da discussão que tivera com a mãe. Ainda não estava livre a cem por cento das consequências dos seus atos, e sabia muito bem disso, apesar da situação mais calma entre ambas. Lembrou-se da coisa terrível que gritou para ela quando a ajudara a construir o bolo.


– O que lhe disseste? Sobre o processo de construção do bolo…


A mulher fitou o vazio alguns momentos, e pareceu compreender o ponto onde Juliana queria chegar. Logo abriu um sorriso, a cada passo que realizava quando retomou o ritmo.


– Disse-lhe que tive uma ajuda muito especial… A estrela mais preciosa e brilhante do meu céu.


A frase fez Juliana encolher-se tímida, por completo, e seguiram a restante travessia do corredor em silêncio.


Quando chegaram à sala de estar, a jovem deparou-se com uma mesa muito bem posta e farta na central do cómodo. Tolya e Tamar estavam lá comendo ração de uma taça e Rosa e Moto-Moto juntaram-se a eles, com Rosa lambendo leite de uma taça e o grande Cyclizar querendo atacar o pequeno-almoço na mesa das humanas antes destas o petiscarem.


– Moto-Moto! Não! Comporta-te! – avisou Juliana ao seu grande dragão, que já se encontrava de boca aberta, bem antes de dar um dentada num pedaço de pão.


Por momentos, lembrou-se que a mãe não queria aquele bicho enorme andando livremente pela casa, devido ao risco dele largar penas em cima do sofá ou destruir os tapetes do espaço com suas garras enormes, por isso, não tardou a guardar o Cyclizar em sua Pokéball. Logo depois sentou-se educadamente, apreciando o aroma dos alimentos.


Não estava habituada a acordar àquela hora, muito menos comer assim cedo, logo não tinha muito apetite, mas este se abriu quando começou a barrar a manteiga nas torradas quentes, vendo a mesma derreter-se. Também tinha leite achocolatado e café em chaleiras ainda a fumegar, pão, tortas, queques, palmiers, alfajores entre outros produtos de pastelaria frescos, legumes cozidos a vapor e frutas cortadas em várias metades, e aparas de bolo à disposição, para um pequeno-almoço o mais completo e caprichoso possível.


A mesa pequena e acolhedora estava posta para as duas, e eram tantos alimentos que as duas nunca iriam consumir tudo aquilo num dia. A Padeira de Cabo Poco gostava de abundância, para ter garantia que nunca faltava nada. Haruka separou um croissant de chocolate para si em seu prato, mas não se sentou de imediato. Viajou pelos armários da pequena sala, com um bloco de notas, conferindo tudo o que tinha no interior dos mesmos e tirando várias anotações.


– Vou aproveitar que vou a Mesagoza e reabastecer umas coisas aqui em casa. Queres que eu compre algo para depois te dar, Juliana? Precisas de mais canetas? Lápis?...


– Não… Não precisa mãe. – respondeu, de boca cheia, mas agradecida pela preocupação dela. – Acho que não tenho falta de nada, por enquanto.


– Ter coisas em excesso nunca faz mal a ninguém. Pensa nisso. E não fales de boca cheia, querida. Fica feio. Já agora… Que roupa esquisita é essa?...


Juliana engoliu a pequena repreensão e enfiou um pedaço de bolo de laranja pela garganta a baixo com algum esforço. Era muito cedo, por isso pensou em comer o máximo que pôde para não passar fome antes da hora do almoço, pois não sabia se iria conseguir comer algo mais a meio da manhã em Mesagoza, e não queria sua barriga a roncar no meio do silêncio das aulas.


– Calma, Julie, até parece que vais passar fome na Academia. Mastiga com calma antes de engolir. Assim ainda te engasgas. É falta de educação!


– Mas mãe… Eu nem sei se vou ter hora do almoço! – exclamou, ainda de boca cheia.


– Que ridículo! Claro que vais ter hora do almoço! Oras… Até parece que nunca frequentas-te uma escola antes!


– A última vez que tive numa escola foi há uns quatro anos. Isso é muito tempo… Acho que já me esqueci como funciona. E eu não tive que… viver nela.


O acentuar das palavras viver nela, fez logo a mãe chegar a conclusões dos motivos da sua criança estar a agir daquele jeito desprezível.


– Okay. Estás ansiosa, não é?...


– Não sei mãe… Viver sozinha parece ser muito…


– Assustador? – concluiu a frase da outra, a interrompendo.


Juliana acenou com a cabeça, enquanto dava um longo trago de café na sua chávena para ajudar a engolir o bolo alimentar. Encheu outra logo a seguir, inundando a boca com mais daquele líquido amargo. Iria precisar muito da energia daquele café para enfrentar o restante dia.


– Assustador… Tal como os primeiros passos o sempre são.


– Para mim primeiro, segundo ou terceiro é assustador, como caminhar numa ponte velha de madeira com as cordas prestes a rebentar. – a jovem disse, um pouco ríspida, já preparando outra chávena.


Haruka a impediu de beber esta com um gesto mudo, pois não queria sua filha exagerando no café.


– Sabes… O primeiro passo é sempre complicado, mas depois de subires o primeiro degraus e veres como é a sensação, vais te aperceber que não foi tão complicado e apavorante assim de subir como pensavas que era, e conseguirás seguir bem o resto do caminho e trilhar a tua própria direção. – ela disse-lhe, com um olhar carinhoso, para a acalmar.


– Dito dessa maneira até parece que viver sozinha e voltar a estudar vai ser a coisa mais simples do mundo.


– Eu não estou a dizer que vai ser, pois eu te conheço, filha, e sei como tu és… Mas acredita, no final, vai correr tudo bem. O pensamento é pior que o momento em si, minha Julie… Já comentámos sobre isto ontem… Agora come calmamente e tenta relaxar. E depois de comeres, não te esqueças de lavar os dentes.


Juliana esperava que ela estivesse certa quanto ao assunto. Mas a verdade é que Haruka se fazia forte para não voltar a desabar como ocorreu na noite antes. A mulher sentou-se à sua frente e começou a comer, mastigando os alimentos vagarosamente.


Pegou no controlo remoto e ligou a televisão, só para ver o que é que os canais passavam no noticiário. Haruka sempre dava uma olhada, pois naquele horário existia sempre alguma coisa nova em comparação ao dia anterior.


Acidente no Farol de Cabo Poco… Problemas no estabelecimento prisional de… – começou os apresentadores a dizer, nos canais por onde passava.


Não tardou muito tempo para a mulher decidir desligar a televisão, quando viu que as noticias transmitidas em todos os canais naquela hora só traziam dores e sofrimentos, como era o típico das notícias todas as manhãs.


– Porque desligaste, mãe? – Juliana disse, e como estava distraída a comer algo crocante, não ouviu o som do televisor na sua totalidade e mal tinha notado que este tinha sido ligado. – O que era?


– Nada demais. Queria ver o que estava a dar nas notícias, mas me lembrei que todos os dias é só desgraça nessa televisão… – murmurou. – É melhor não pensar nelas. Só te vai deixar ainda mais preocupada com a tua nova vida de estudante. E nos distrair também! Não temos tempo a perder!


– Nem está dando aqueles programas que tu gostas de ver?


– A esta hora nunca dá nada decente, tirando umas touradas como tapa buracos na programação e os mesmos episódios de umas novelas antigas que toda a gente já está cansada de ver e saber de cor e salteado.


A jovem sorriu, mas seu sorriso se desvaneceu, pois apercebeu-se que já fazia muito tempo que não comia o pequeno-almoço na companhia da mãe, e o quanto o ambiente parecia ser tão solitário. Quando terminaram as duas o pequeno-almoço, Tolya e Tamar ajudaram a mulher a limpar o pequeno espaço, enquanto Juliana terminava seus afazeres na casa de banho. Haruka juntou parte do que restou do pequeno-almoço numa lancheira para Juliana levar consigo.


Ao regressar à sala, as duas se fitaram mutuamente respirando longos minutos de silêncio.


– Bom… Vamos então?... – começou a mãe, de forma demorada.


Juliana apenas acenou-lhe com um gesto de cabeça enquanto agarrava suas coisas e ajeitou sua guitarra às costas em movimentos lentos, como se uma força invisível a dissesse para não sair de seu lar. Mas que remédio ela tinha?


A lentidão que usaram para descer a escadaria dava a entender que a mesma não teria fim. Em meio ao silêncio da casa, a madeira dos degraus da mesma pareceu mais ruidosa do que quando o Diretor Clavell ali tropeçara.


Juliana fitou as típicas fotografias na parede ao seu lado expostas, em silêncio. As paisagens de Paldea, as viagens que fizera com a mãe, familiares distantes e amigos de família... Tantas memórias ali, guardadas com imenso carinho.


Ela nunca tinha ligado tanto às fotografias, mas agora, elas todas pareciam adotar um significado diferente, pois estava a abandonar aquela vida pacata em Cabo Poco para entrar no início de outra… Uma vida de estudante na Academia Naranja e Uva, e isto era uma mudança brusca que não devia ser ignorada.


Haruka também acompanhava o observar da filha, e parou abruptamente seus passos, dando especial atenção a uma das fotografias. Juliana não precisava de olhar para ela para saber qual era a imagem emoldurada que ela fitava. Afinal, sua mãe adorava aquelas fotografias, e em cada uma delas, sempre dirigia um olhar próprio, que demostrava o quanto cada uma era uma recordação única e seu momento especial.


A demora obrigou Juliana a lhe chamar a atenção. O olhar de Haruka parecia perdido nos seus pensamentos.


– Mãe?… Assim vou chegar atrasada.


– Ah!… Sim!… Desculpa filha… – comentou, ao despertar-se do transe, apesar de não ter tirado assim tão cedo a imagem daquela fotografia rasgada da mente.


No final da escadaria, todos os Pokémon que trabalhavam na Padaria as esperavam enfileirados. Juliana não hesitou em entregar um abraço caloroso a cada um.


Começou por apertar as bochechas rechonchudas do Skwovet, acariciou as penas brilhantes do lombo de Espathra, apertou a mão à delicada Tsareena, deu umas palmadinhas nas costas do longo Dudunsparce e quando chegou na Tinkatuff… a Pokémon rosa apenas realizou um gesto militar, que Juliana procurou retribuir de forma desajeitada.


– Cuidem de minha mãe e da padaria. Okay? Não quero que ela se sinta sozinha.


No outro lado, Tolya e Tamar abraçaram Haruka, e apesar de Rosa não conhecer bem a humana, também foi envolvida pelos braços desta.


– Meus caros. Hoje os encarrego de uma missão de extrema importância e espero que vocês não desrespeitem este juramento à espada. A vida da minha menina está nas vossas mãos a partir de agora. Cuidem dela na minha ausência… – a mulher disse-lhes, séria. – Tamar, certifica-te que ela tem o quarto arrumado, cuida da sua higiene pessoal, estuda, faz os trabalhos de casa e tem tudo em dia e boas notas! Tolya, sua pequena arruaceira, controla-te e não inventes muitas palhaçadas nem te envolvas em problemas. E quanto a ti Rosa… Sei que não tenho ainda muita confiança para te dizer isto, mas se a Juliana ficou contigo, é porque és uma gatinha especial. Vê se esses crocodilos não roubam nada. Pode não parecer, mas, eles tem mania de furtar coisas. Se algum aluno estiver a procurar por sua carteira, já sabes os possíveis responsáveis.


Os crocodilos olharam para a Sprigatito, incrédulos, mas todos acabaram por acenar em concordância quando viram a gatinha planta esticar suas patas com as garras à mostra.


Quando Juliana acabou largando os Pokémon da mãe dos seus braços, o grupo de Pokémon afastou-se, dando lugar para Manjar, o velho Daschbun o chefe da cozinha e aquele que dava nome à Padaria, passar. Era o único monstrinho que faltava se despedir da humana, e este aproximava-se devagar da jovem, em seus pequenos passos, um por vez, nas placas de azulejo do pavimento. O cão idoso tinha certas dificuldades em se locomover, e sentou-se, bem imóvel, em frente a Juliana, numa extensa troca de olhares.


Apesar de também querer muito um abraço ou caricia, sabia que não o teria, com o devido respeito da fobia da humana. Juliana respirou fundo na presença dele, e ajoelhou-se, fitando-o de perto.



Não hesitou em falar seu pensamento em voz alta.


– Por Arceus… Esta despedida toda… Até parece que um de nós não vai voltar nunca mais… Mas quando eu voltar no próximo fim-de-semana, será que esse cão velho ainda vai estar vivo?...


A frase de Juliana fez a mãe mudar sua expressão para um horror, abaixar a cabeça e acariciar o seu cachorrinho num gesto quase impulsivo. Juliana encolheu os ombros, e tentou mudar o tom da situação de uma forma um tanto atrapalhada. Podia não gostar de cães mas também não desejava a morte daquele que fora o primeiro Pokémon da sua progenitora.


– Muito obrigado, Chefe Manjar! Cantares ao som da minha guitarra dá um toque único às minhas canções! E se algum dia eu ter coragem para fazer amizade com algum cão que cantasse para mim, duvido que este o faria com a mesma convicção que tu tens! Serás sempre o melhor cantor que eu tenho!


O Dachsbun fechou os olhos devagarinho, e latiu baixinho como resposta. O velho Pokémon parecia voltar a sorrir graças ao elogio dado pela filha da sua treinadora. Depois a humana ouviu vários piares e olhou para a janela.


E lá estavam o bando de Squawkabilly dançarinos do telhado, é claro! Pedindo uma ‘’ultima’’ canção em conjunto para despedida, e Juliana não iria fazer a desfeita aos companheiros, que apesar de serem selvagens, compreendiam que não iriam voltar a ouvir aquela guitarra assim tão cedo.


Tal como treinados e como sempre faziam, os diversos Pokémon puseram-se a fazer barulho com qualquer instrumento da cozinha, e a cantar e a dançar, enquanto a jovem fazia as cordas do seu instrumento musical vibrarem.


 

É hoje, que tudo mudaaa!


É hoje, que tudo começaaa!


Com o apoio desta comitiva;


Não terá mais desavença!


 

A mudança, é inquieta;


A palavra, é tão esbeltaaa;


E a realidade, perigosa;


Fina que nem um fio;


Muito em breve;


Deixará, de, o, serrr!


 

Enquanto a filha tocava, Haruka foi em frente, e na lateral das traseiras da casa, abriu uma garagem. Um velho Revavroom saiu do interior da garagem, saudando as humanas com sua língua de fora, pronto para a viagem. Rosa, Tolya e Tamar deram um ‘’até logo’’ aos companheiros, e entraram em suas respectivas Pokéballs, pois seriam demasiado peso para o Revavroom.


As duas subiram no dorso do Pokémon semelhante a um automóvel, e prosseguiram então caminho. A Padaria Sonhos de Dachsbun desaparecera de vista num piscar de olhos na curva ao final da rua principal da pequena vila, mas Juliana continuou a tocar na sua guitarra, até o sol nascer totalmente e clarear o céu e o mar. Descerem as ruas de Cabo Poco, atravessarem o farol, os promontórios e suas praias e trilhos dentro das matas…


A última nota ressoou nas cordas, só quando a jovem ficou com os dedos doloridos de  tanto tocar, e foi ai que notou exatamente o quanto já se encontrava longe do seu lar.




– Mãe, estou curiosa com uma coisa… Como conseguiste uma vaga nos dormitórios da própria escola? Los Platos está cheio de alunos que não conseguiram vaga nem lá nem na cidade.


– Quando telefonei para a Academia para te matricular, questionei sobre os quartos disponíveis que estão por conta da Academia, tanto nos arredores como dentro da cidade, e o Diretor Clavell comentou sobre uma aluna que tinha sido transferida para outra escola, e o seu dormitório ficou vago em última hora. Posso dizer que, tendo em conta que a Academia em si está lotada, foi uma oportunidade imperdível. A questão dos quartos sempre foi uma dor de cabeça, uma competição bem do género ‘’quem chega primeiro, fica’’.


– Quando estudavas também dormias na Academia?


– Não… Mas fiquei uns bons anos a viver num apartamento que existia na periferia da cidade. Apesar de Cabo Poco ser minha verdadeira casa, eu adorava aquele apartamento. Se chegarmos cedo a Mesagoza eu posso pedir aqui ao Pópó para fazer um desvio rápido e te mostrar onde ficava, mas o edifício hoje em dia já não existe mais. Foi demolido para a construção de uma pequena lagoa artificial.


– Oh… Deve ter sido triste.


– Sim… Eu fiquei chocada quando descobri… Posso garantir que o apartamento era bem mais bonito que aquela porcaria de lago.


– Sentes saudades desse local?


– Saudades? Claro que sim! Tinha muitas recordações boas lá. Vocês jovens tem dificuldade em compreender isto, mas as memórias boas é que sempre ficam no final, Julie, se sentires saudades de algo é porque valeu a pena viver. Sei que não gostas de estudar, mas tenta viver teus dias ao máximo e pensar apenas nas coisas boas da rotina. No futuro, quando chegares a minha idade, ainda vais sentir muito a falta dos tempos que viveste na época.


Enquanto conversavam no dorso de Revavroom, os galhos mais altos das copas das árvores do trilho passavam sombras refrescantes por cima de suas cabeças, causadas pelos primeiros raios de sol da manhã. Vários Fletchling voavam de uma árvore a outra, com seus piares característicos. Tarountulas balançavam calmos em suas teias em árvores e grupos de Lechonk em abundância esgravatavam as folhas caídas na lateral do caminho em busca de comida, correndo para o interior dos arbustos para não serem avistados. Hoppip animados aproveitavam a brisa matinal e voavam ao redor do Revavroom, acompanhando o ritmo de viagem do Pokémon motor. A ausência súbita do predador na noite passada fizera a natureza por aqueles lados retornar à normalidade a olhos vistos.



Depois de passarem Poco Path, atravessaram a ponte que transpunha o pequeno riacho que banhava os limites da área envolvente do farol de Cabo Poco, e começaram a avistar as primeiras casas de Los Platos. A pequena vila servia como dormitório de muitos alunos, devido a toda a sua aproximação com o portão sul de Mesagoza, mas vários adultos que trabalhavam na grande cidade também faziam do pacato local a sua moradia.


O Revavroom seguiu a uma velocidade controlada pela rua principal. Como era de esperar, estavam no meio da hora mais movimentada da vila. Juliana encolheu-se atrás da mãe quando viu grupos de alunos ensonados caminharem como zombies até uma paragem de autocarro. A pequena cabine chamou sua atenção, pois era velha, tinha suas janelas de vidro partidas e o banco cheio de rabiscos de grafite.


Um pequeno lago entre árvores mesmo ali ao lado era uma atração festiva aos jovens que esperavam o transporte. Estes brincavam ao atirar pedras para suas águas com o objectivo de as verem chapinhar, ou atingirem alguns Pokémon selvagens que nesta habitavam. Por vários instantes, Juliana sentiu que aquele grupinho de adolescentes lá abrigado acompanhavam-nas com o olhar a travessia.


Os mais sortudos com boleia de mentores ou pais já se punham a caminho a subir o morro que existia a norte da vila. O seu Revavroom fez de súbito um barulho ensurdecedor quando começou a subir as estradas que o levavam nessa mesma direção, soltando uma golfada de fumo negro e carregado de toxinas dos seus tubos de escape atrás de si.


Quando deram por si, as humanas perderam a velocidade.


– O que se passa? Pópó? – Haruka questionou-lhe, preocupada.


– Alguma coisa errada com ele? Mãe?... – Juliana perguntou, com medo do que tivesse ocorrido e do grande atraso que isso podia gerar.


A mulher conduziu o seu Revavroom para a beira da estrada, com o objetivo de não incomodar quem estivesse a passar pelo local. O Pokémon motor logo parou seu movimento, aterrando as rodas na erva carregada de orvalho. Haruka e Juliana saíram de cima dele para lhe darem conforto com o alívio do peso.


Haruka analisou o seu Pokémon com preocupação. Como já tinha sido uma treinadora no passado, ela entendia um pouco sobre a saúde dos seus monstrinhos, o suficiente para o auxiliar quando estivesse longe de Centros Pokémon ou sem medicina em mãos.


– Por Arceus… Como é que isto foi acontecer?...


– O que ele tem?


A mulher passou a mão pelo cilindro que formava a cabeça do Pokémon, o acariciando. A língua da criatura moveu-se com dificuldade. Juliana seguiu com atenção os movimentos da mão da mãe.


– Alguma coisa entrou num dos tubos de escape, e não o está a deixar respirar como devia. Vou ter que o levar ao Centro Pokémon.


– É grave?


– Não sei… – e Haruka retornou o seu monstrinho para o interior da sua esfera bicolor. – O Centro Pokémon não muito fica longe daqui. As enfermeiras vão saber o que fazer. Vamos. Rápido.


Não era a primeira vez que Juliana se deparava com um acidente do género. Na Padaria, era comum algum Pokémon se magoar ou queimar quando manuseavam os produtos e instrumentos, e certa vez, aquele mesmo Revavroom mostrou sintomas semelhantes por inalar um pedaço de pão sem querer.


A primeira coisa que veio à mente da jovem foi o grupo de adolescentes de ar desconfiado que estavam ao lado do lago a atirar pedras quando chegaram a Los Platos. Talvez acertaram com uma pedra num dos orifícios do pobre Revavroom e ambas as humanas não notaram por estarem de costas.


A caminhada de regresso à entrada da vila demorou cerca de quinze minutos. A jovem viu o autocarro partir ruidosamente pela estrada, carregado de alunos até Mesagoza, e ficou impaciente, pois a probabilidade de chegar atrasada às aulas agora era muito mais alta.


Os Centros Pokémon de Paldea não eram grandes edifícios como nas restantes regiões do mundo Pokémon, mas ainda mantinham seu charme apelativo. A arquitectura única que os dominavam seguiam um padrão praticamente igual aos postos de abastecimento ou lojas de conveniência, com um longo telhado sem paredes dando cobertura a uma vasta área que servia como esplanada. Na sua fachada, ao lado da cor vermelha e logótipo característico do Centro Pokémon, imagens de marcas e patrocínios em luzes néon atraiam olhares curiosos.


A recepção parecia pequena, mas a maior parte da instalação se localizava no subsolo. Haruka foi até a enfermeira entregar-lhe a sua Pokéball e falar da situação delicada do seu Pokémon. A enfermeira analisou alguns momentos a Pokéball numa máquina, e depois, permitiu que ela descesse para o interior do Centro como companhia do Revavroom até a ala de tratamento.


– Fica aqui e não saias daqui, está bem, Juliana? – Haruka virou-se para ela. – Não parece muito grave, mas pode demorar.


E a mulher não tardou a desaparecer na companhia da enfermeira, seguindo uma escadaria na lateral do edifício.


A jovem encostou-se então a um dos pilares que sustentava o telhado, com as mãos firmes na correia da sua guitarra e nas alças da mochila, olhando o tempo e as pessoas a passar enquanto esperava. O cansaço por acordar cedo e o tédio da espera a começaram a atingir mais rápido do que deviam.


Algumas crianças pequenas, acompanhadas dos pais, brincavam com Pokémon debaixo de árvores e em descampados nos arredores. O vento soprava de forma agradável. Eram poucos os que passavam e olhavam para ela, ou sequer a notavam ali imóvel, mas a jovem pressentia uma carga estranha de olhares que lhe era dirigida por todos os lados, talvez proveniente do seu imaginário.


Se a mesma fosse real, não era de admirar, pois Los Platos e Cabo Poco eram um meio pequeno, muitos conheciam a sua família.


De qualquer das maneiras, Juliana não esperava fazer amizades novas assim tão cedo (Nemona foi uma grande excepção). Nunca apreciou muito a companhia de pessoas, preferindo mil vezes a presença dos Pokémon.


Contemplou vários grupos de alunos a tomar o pequeno-almoço na esplanada do Centro Pokémon, pois os mesmos pareciam muito despreocupados. As mesas estavam lotadas e todos ainda tinham cara de que suas estadias iriam demorar por ali, mastigando lentamente os alimentos ao lado dos seus monstrinhos. Talvez suas turmas não tinham aulas na parte da manhã. Uns portavam o uniforme da Casa Uva, já outros o uniforme da Casa Naranja da Academia de Mesagoza.


Algo a destacar era que a maioria tinha os olhos fissurados no Rotom Phone e mal levantavam a cabeça para o que ocorria ao redor. Outros liam um livro de capa encarnada de forma bem entusiasmante, livro este que lhe era bem familiar. Apesar do interesse mútuo, ela não se aproximou destes.


Ela fez um esforço para se manter acordada. Juliana não hesitou em murmurar para si um pouco da canção que criara inspirada naquela obra, que por culpa da agitação toda do dia anterior, tinha esquecido que existia.


Olhei para trás, e me vi, no meio do mar… Nem as estrelas, conseguiam, me guiar… Dia e noite, à deriva, indo lés a lés… Quando o ventoo-o-o arrancou o paraíso a meus pés.


Era óbvio que o fez, bem baixinho, para ninguém notar, não gostava de cantar em público, principalmente se fosse em frente a um bando de desconhecidos. Em certo ponto, Juliana cedeu à mesma tentação dos outros e agarrou no Rotom Phone, confirmando se algum dos seus streamers favoritos tinham atualizado as contas com vídeos novos, ou se a Nemona mandara alguma mensagem nova.


Pelo menos as imagens do ecrã a iriam distrair alguns minutos da ansiedade que sentia face ao clima hostil ao qual estava enquadrada. Acontece que quando deu por si, um grupinho aproximou-se da esplanada vindo da direção da estação de autocarro.


Reconheceu-os de imediato.


Era o mesmo grupo de adolescentes que avistara quando chegaram a Los Platos a atirar pedras no lago. Um dos adolescentes começou às gargalhadas quando a notaram, mas logo um outro deu-lhe uma cotovelada.


Só esperava que eles não viessem falar com ela.


E com a proximidade toda que aos poucos os mesmos tomavam, Juliana não deixou de reparar melhor nos seus trajes exóticos, apesar de tentar não olhar. Os seis ou sete jovens portavam versões modificadas do uniforme da Academia, alguns deles usavam capacetes cheios de glitter e óculos escuros, outros tinham tatuagens em forma de estrela adornadas nas roupas ou no próprio corpo em partes expostas. Enfileirados, seguindo algum género de hierarquia, caminhavam seguindo o mesmo padrão de passos que os gangues de diversos filmes de ficção utilizavam.


Ela encolheu os ombros, pois aquilo não cheirava bem.


Nada bem.


– Hey! É a miúda que estava em cima daquele Revavroom com a mamã! – um deles chamou a atenção dos restantes.


– Eu não sabia que a Padeira de Cabo Poco tinha uma filha. Minha mãe compra o pão todo a ela. – comentou um outro adolescente.


A jovem encolheu-se mais e olhou para o chão, evitando os fitar nos olhos e abrir qualquer brecha para conversa. Era claro que sua mãe era conhecida por ali, mas por vezes ela se esquecia que ela tinha bastante influência em Cabo Poco e Los Platos.


– Ela deve estar esperando o Revavroom no Centro Pokémon. Eu te disse para não atirares a pedra! Ainda vamos ter problemas. – a jovem sentiu náuseas a ouvir aquilo vindo daquele rapaz.


– Mais problemas do que faltar às aulas? Ou achas que estudar é mais divertido que atirar pedra a Pokémon? – Debochou o outro, e depois olhou Juliana. – Eu juro que não queria acertar nele!


– Já sabemos da tua boa pontaria, não precisas de te gabar pela vigésima vez. – um outro amigo seu gozou ao seu lado.


Apertou o punho ao ouvir a confirmação das suas desconfianças, mas aguentou-se para não se soltar em fúria. Sempre aprendera que a ignorância era, muitas vezes, a salvação de certas situações sociais face a estranhos.


– Nunca te vejo muito por aqui, miúda. – um começou, diretamente para ela. – Não és do tipo de sair de casa, pois não?


Silêncio foi a resposta que ela lhes deu.


– Que sorte a nossa, além desta ser feia é mais parada que uma parede. – um outro disse, levando logo um soco na cabeça vindo do companheiro.


O grupinho a rodeava como um bando de Squawkabilly ao redor de migalhas de pão, apesar dos papagaios do telhado da padaria terem uma pose bem mais agradável. A jovem só tinha vontade de fugir dali, mas estava no meio do cerco construído pelos jovens que a abordavam, e para onde se virasse, só via aquela gente estranha a julgando. Um deles sorriu, com ar folgado, mostrando os seus dentes enfileirados perfeitamente, que eram tão brancos cujo brilho quase cegava.


– Ela não diz mesmo nada? – questionou, curioso.


– Deve ser muda. Parece que é moda agora gente com algum nível de deficiência aparecer em público.


Outro comentário maldoso que fez o companheiro dar-lhe mais uma vez uma cotovelada.


– És mesmo um otário!


– Por Arceus… Esses idiotas não se vão embora… O que eles querem de mim? – Juliana murmurou, já perto de entrar em pânico, mas logo conteve-se para não falar mais.


O mais velho do grupinho olhou para ela. Juliana encolheu-se mais.


– Acho que ela disse alguma coisa.


– Só podes estar louco. Eu não a ouvi dizer nada, mano.


– Eu tenho certeza que ela disse algo! Eu não estou maluco! Tu é que és surdo como uma porta!


– Já agora vou dizer que jurei que o meu vizinho cego me viu esta manhã quando sai de casa. – riu um outro.


A jovem engoliu a seco e olhou para todos os lados possíveis, já começando a adotar uma pose ainda mais hostil. Depois algo veio à sua mente e ela tirou uma das Pokéballs do seu bolso. Uma pequena crocodilo materializou-se em frente dela, e começou a rosnar como um cão raivoso.


O grupo permaneceu estático, encarando a crocodilo.


– Olhem! Ela soltou o seu bichinho fofinho de estimação! – exclamou uma das meninas do grupo, animada com a presença do Pokémon cor de areia. – Vem cá amiguinho! Bchee bcheee bchee bchee


Bchee, bchee, bchee?? Estás chamando por um gato ou por um jacaré por acaso? – um dos adolescentes olhou para ela.


– Sandiles não são jacarés, são crocodilos. – comentou outro, indignado.


– Jacarés… Crocodilos. É a mesma coisa!


– Não são não, maninha!


–  Esperem… Sandiles não são alligators? – Interrogou um outro, com ar perdido.


Estes virgens desesperados estão a me tratar como uma aberração de circo! – a pequena Sandile assoprou, ainda a assimilar o que estava ocorrendo à sua volta.


– Tolya, usa Scary Face! – Juliana ordenou, interrompendo o diálogo dos adolescentes.


A jovem esperava que o golpe da sua Sandile surtisse algum efeito naquele grupo para os mesmos se irem embora o mais depressa possível. Tolya podia ser bem intensa quando provocada, e o seu olhar assustador e dentes afiados fez a maioria do grupo começar a dar meia volta e correr aos tropeções, quando notaram que a mesma não era tão fofinha assim como achavam.



Apenas dois dos membros ficaram, e apesar do medo que tiveram da Sandile, a olharam nos olhos.


– Calma, amiga. – um deles botou as mãos ao ar, tremendo. – Não era preciso reagires dessa maneira… Puxa… Só queríamos saber se querias ser nossa amiga…


Tolya, ainda a se sentir provocada, deu um pulo, e desferiu um Bite rápido na perna do rapaz que acabara de falar. Ele soltou um grito cheio de adrenalina, e voltou correndo para a sua companhia que já iam de volta na direção do lago. Depois, a Sandile reposicionou-se em frente à treinadora, fitando o adolescente que restara nos olhos.


– N… Nós te vimos em… em… em cima daquele Revavroom e… e pensámos que talvez gostasses de… de Revavrooms… – ele encolheu os ombros tentando explicar, e depois virou as costas, cheio de medo da vez da Sandile saltar contra ele. – Vamos organizar uma corrida de Revavrooms aqui em Los Platos próximo fim-de-semana... Somos a Team Star e nosso convite está aberto… Hasta la Vistar, amiga…


Corrida de Revavrooms? Team Star?...


Aquele diálogo não era, definitivamente, uma forma agradável de convidar alguém para entrar em alguma facção ou assistir um evento do género. Juliana soltou um suspiro, aliviada em voltar a ficar sozinha, e acariciou sua Sandile antes de retornar a mesma para sua Pokéball, antes que ela começa-se a usar mais Bites sem sua ordem a todos os presentes.


As pessoas sentadas na esplanada trocaram olhares de reprovação, mas logo esqueceram o ocorrido. Juliana continuou a fitar a direção do lago, com as costas encostadas ao pilar, receando o regresso do grupo. Já não via o grupo com suas roupas exóticas, capacetes cintilantes, tatuagens e óculos em formato de estrela.


Mas, dentro de si, tinha a certeza que este seria o primeiro, entre muitos, dos encontros futuros que teria com os membros arruaceiros dessa tal Team Star.


Haruka retornou cerca de vinte minutos depois do encontro de Juliana com aquele gangue. O Revavroom estava ao seu lado, totalmente recuperado, e dava umas voltas de alegria em torno das humanas, pronto para voltar a tomar a estrada a alta velocidade.


– Desculpa a demora… Querida. A enfermeira depois de extrair uma pedra que entrou dentro do tubo de escape dele disse que o Pópó precisa de fazer bastante exercício para que o seu sistema respiratório volte à normalidade. É interessante pensar como cada Pokémon tem uma anatomia única.


Olhou para a filha silenciosa, que fitava tensa a mata na direção do farol.


– Aconteceu algo? – questionou-a, sabendo que a mesma estava preocupada.


Ela encolheu os ombros, não querendo revelar muita coisa sobre o encontro com aqueles adolescentes.


– Nada demais. Estou nervosa, e vou chegar atrasada! Já bastou ter faltado ontem e antes de ontem…


– Eu admito que também foi culpa minha. Eu fiquei calada para ver se te lembravas dessa responsabilidade, mas não te lembraste. De qualquer forma, o que te salvou foi como a matrícula atrasou. Enfim. Vamos seguir viagem?


E subiu para o lombo do seu Pokémon, ajudando a filha a subir também.


– Vamos Pópó! Para Mesagoza! Para a Academia! – Haruka exclamou para ele.


Assim, seguiram a colina a norte de Los Platos, até os portões da zona sul da grande cidade.




– Não estás a te esquecer de nada?... – Haruka questionou, sorridente, para a sua filha, com ar misterioso.


A jovem pisou a calçada lisa do chão e piscou os olhos.


Olhou para as costas vazias do Revavroom que a mãe conduzia, e que lhe tinha trazido até aquela rua movimentada. Estava com a sua guitarra, com a lancheira e com a mochila às costas, com o Rotom Phone, também já tinha a chave do dormitório, bem guardada, no seu porta-chaves. Suas Pokéballs terlintavam no bolso. Tinha todos os seus documentos de identificação consigo.


Não lhe faltava mais nada pois já carregava tudo às costas.


As duas, afinal, chegaram mais cedo à cidade do que o previsto, e, apesar de já ter estado em Mesagoza antes, Juliana estranhou pela primeira vez a falta do som e aroma do mar, que estava tanto habituada a sentir na sua pacata casa.


Ao seu lado, uma enorme escadaria estendia-se até um edifício antigo e de paredes esbeltas. A Academia Naranja e Uva saudava a sua nova aluna com toda a sua superioridade. Vários Pokémon voadores sobrevoavam as torres mais altas, pousando num pequeno poleiro próprio para eles que existia na lateral, junto com uma árvore natural que fora naquela torre plantada, e que dava uma gracinha estranha ao edifício.


A mulher sorria, para tentar não se por a chorar naquela pequena despedida em público. Evitava olhar a face da filha diretamente, tendo os olhos fixos no edifício, mas a presença da Academia Naranja e Uva mesmo ali, como plano de fundo entre as duas, não ajudava. Alunos subiam continuamente a enorme escadaria, e a visão lhe entregava demasiadas recordações.


Juliana ai notou o que a mãe não só queria… Mas como também precisava.


Aproximou-se, e atirou-se a seus braços.


A mãe não a deixou afastar-se assim tão cedo e encheu-a de beijos na testa, enquanto a apertava com força.


– Quero que tires boas notas, okay? Sê a melhor aluna desta espelunca. – a mãe começou a sussurrar-lhe no ouvido, ainda apegada a ela.


– Sim mãe… Mas acho que vai ser meio impossível ser boa aluna. – a jovem começou a rir, enterrando-se mais em seus braços, procurando sentir tão familiar e protetor calor, sem saber ao certo o que responder a cada pedido dela.


– Porta-te bem, sê responsável, e não te envolvas em coisas que não devias. Nem penses em beber álcool. Não negues que eu sei que bebes!


– Está bem, mãe… – e voltou a rir, nervosa.


– Tenta ser agradável e fazer amizades…


– Isso… Vai ser complicado…


– Deita-te cedo e estuda bastante.


–  Isso… Vai ser… Complicado também. Mãe.


– Vê se a Tolya e o Tamar não roubam nada. Teus Pokémon vão ser a tua melhor companhia a partir de agora. Cuida deles.


– Vou cuidar muito bem deles sim, da mesma maneira que eles cuidam sempre bem de mim!


– Não deixes que ninguém te desrespeite e te bote o dedo em cima com falsas intenções, muito menos se te obrigarem a fazer algo contra a tua vontade. Não dá para agradar todas as pessoas. Apenas sê tu própria e mostra o melhor de ti. Se alguma piranha te provocar, dá-lhe um soco.


– Claro… – Juliana murmurou, assustada com o súbito incentivo à violência.


– Não te esqueças de me telefonar, principalmente se precisares de auxílio em alguma coisa e tiveres dúvidas em algo! Estou sempre com meu Rotom Phone por perto. Posso atender a qualquer hora.


– Mãe, achas mesmo que eu não te iria telefonar? Vou-te telefonar umas cinquenta vezes por dia! Agora podes parar de me apertar… Estás a sufocar-me!


– Se arranjares namorado ou namorada, sexo só depois do casamento, com meu conhecimento prévio e autorização por escrito.


– MÃEEE?!


Naquele momento súbito, largou a mulher, completamente vermelha. Haruka soltou uma gargalhada animada. Gargalhada esta também acompanhada de gargalhadas vindas de um outro grupo de jovens que passavam ali perto.


Talvez a mulher dissera aquilo demasiado alto. Juliana encolheu os ombros, constrangida.


Aprendera da pior maneira uma das regras mais importantes que os adolescentes tinham na escola: Nunca dar aos pais ou mentores um abraço ou um beijo de despedida quando chegassem à escola. Pior ainda se a mesma caricia viesse acompanhada de uma lista quase infinita de conselhos e ordens tensas.


– Agora, meu doce passarinho… Está na altura de eu libertar as tuas asas e deixar-te voar… – Haruka disse-lhe, dando-lhe um beijo final na testa.


A jovem, tensa, tentou ignorar os sininhos que ainda dominavam os ares, e encarou as enormes escadas, assustando-se com a altura que a enorme escadaria tinha em cada um dos seus degraus de pedra polida.


– Mãe! Tens a certeza que não me podes levar até lá acima com o teu Revavroom? Isto é muito degrau para subir!


Haruka já se movimentava para longe montada no seu Pokémon carro, com lágrimas nos olhos, prestes a desabar. O Revavroom também tinha um ar muito infeliz.


– Bem-Vinda a Mesagoza, filha! Esse é o teu primeiro rito de passagem! Eu… Eu espero que sobrevivas!


– O QUÊ? Como assim??


A jovem procurou-a com o olhar, mas Haruka e seu Revavroom já haviam desaparecido entre a multidão das ruas. Juliana voltou a observar o edifício enorme e a sua longa e alta escadaria, super assustada.


E ali, muito tempo ficou imóvel, no mesmo local onde a mãe a deixou, ainda a assimilar o desafio que tinha em frente e a nova virada da sua rotina.



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