- Back to Home »
- Capítulos »
- Capítulo 10 – Pequeno Atraso em Los Platos
– HORA DE
ACORDAR, MINHA DORMINHOCA! HOJE É O GRANDE DIA! – ouviu uma voz familiar,
gritar em seu ouvido.
Juliana piscou
os olhos, tonta de sono, a assimilar se a voz que a chamava, era, ou não, real.
Virou-se para o lado, na tentativa de voltar a adormecer, pois estava tão bem a
viajar nos seus sonhos e no quentinho das cobertas.
O seu quarto
encontrava-se tanto escuro que era difícil acreditar que já era de manhã, mas
uma luz branda acendeu-se e dissipou quase todas as sombras pelas paredes. Agarrou
na almofada num gesto quase instintivo, cobrindo a cabeça para proteger suas
pálpebras da luz do candeeiro recém ligado ao seu lado, que surtia um efeito
escaldante aos olhos.
– Eu disse…
Acorda! Julie, são horas de acordar! Se queres chegar a tempo e horas à escola,
tem que ser agora! – Haruka insistia, em alto e bom som, sacudindo-lhe o ombro.
– humm… Mãe…
Que barulheira é esta?… Só mais um bocadinho… Por favor… O sol ainda não nasceu
sequer… Só mais cinco minutos… – a jovem procrastinou, enterrando-se mais na
almofada e nos cobertores da cama.
Estava prestes
a adormecer outra vez, quando a voz voltou firme e forte, ecoando na sua
cabeça.
– Hey! Coisa!
Tu ai! Sim! Tu!... Sê útil uma vez na vida e faz o teu trabalho. – notou a mãe
a chamar, mas não chamava mais por ela.
E seguiu-se um
tão desejado silêncio.
Nos segundos iniciais
julgou estar outra vez a sonhar no meio do quentinho e do conforto do quarto,
viajando entre as nuvens e Cyclizars fofos correndo os seus sonhos, mas um sexto
sentido seu não tardou a revelar um peso enorme e muito estranho a mover as
cobertas. Quando deu por si, Juliana sentiu algo penetrando debaixo dos lençóis.
Alguma coisa estranha e húmida mordendo-lhe e puxando-lhe a perna.
E soltou um
grito, quando, de súbito, se viu fora da cama, de cabeça para baixo, pendurada
por um pé como quem era apanhada numa armadilha de uma árvore. E, por causa
desse gesto repentino, perdera por completo a vontade de dormir mais.
– Moto-Moto! –
exclamou, em pânico. – Põe-me no chão! Põe-me no chão! Põe-me no chão imediatamente!
PÕE-ME NO CHÃOO!
Tamar gritava
ali ao lado, histérico por ver a treinadora assim de cabeça para o ar. Tolya
deliciava-se com o espectáculo. Rosa não dava a mínima, pois ainda dormia nas
cobertas, ignorando toda a confusão. Já Haruka sorria imenso com a brincadeira,
pois começava a gostar do dragão com a nova utilidade que lhe dera.
O Cyclizar
estranho largou a sua treinadora ao fim de muitas súplicas da mesma. Largou de
tal maneira violenta que Juliana caiu no chão duro do quarto num estrondo feroz
que ecoou em todas as paredes. Elevou-se com dificuldade, sentindo uma dor
aguda percorrer-lhe o corpo devido à pancada.
Sentou-se e
ajeitou os pijamas, enquanto o grande dragão se instalava no topo da cama
revirada ao seu lado, e tentava-lhe morder o braço em brincadeiras. O bicho
sacudiu as penas enormes da sua cabeça, fazendo estas terlintar, e a fixou com
ar divertido.
– Não voltes a
fazer isso! – Juliana repreendeu-o, furiosa e já bem desperta. – Podia ter
morrido ou partido alguma coisa!
Mas ela não
queria ficar muito tempo zangada com aquela carinha dele, e atirou-se contra a
enorme criatura, deixando-se ser inundada por sua língua áspera. A mulher
aproximou-se, dando-lhe umas leves pancadas no focinho, para o afastar da
jovem, com objectivo deste não lhe estragar mais os pijamas e ambas poderem
conversar à vontade.
– Moto-Moto? Então
é esse o nome que lhe deste? – Haruka soltou uma gargalhada, enquanto deixava o
Cyclizar lamber e cheirar sua mão.
A mulher
estava bem disposta, até demasiado, tento em conta a choradeira toda da
véspera. Juliana fixou-a, satisfeita por ver a mãe com outra cara e com aquela
proximidade toda ao dragão.
– Sim… Era para ser Motoca, mas pensai melhor
e Moto-Moto tem um tom mais selvagem. – e deu uma caricia leve no focinho do
Cyclizar. – Tal como ele parecia ser quando eu andava em busca dele nas praias.
Não é amigo?
O bicho
sacudiu-se outra vez, gostando bastante do nome lhe dado.
– Motoca…
Ainda gostava de saber onde foste buscar essa palavra… Mas Moto-Moto não é o
nome de um Hippowdon sexy daquele filme de Unova que tem um Pyroar mordendo a
traseira de um Zebstrika?
A jovem endireitou
seus longos cabelos, mas não deixou de fitar a mãe com um certo nível de
constrangimento.
– Sim?! Caramba,
mãe! Tu ainda te lembras desse filme?
O diálogo
entre as duas foi interrompido de súbito com os piares de excitação dos
papagaios do telhado, seguido do som do sininho da porta frontal da Padaria. Sons
característicos estes que fizeram Haruka ter que atender quem quer que fosse
que estivesse lá em baixo naquela hora.
– Quem será a
esta hora?... Bem. Vê se te despachas, querida. O pequeno-almoço está a
arrefecer na sala. – disse, esfregando a mão nos cabelos de Juliana, antes de se
retirar do quarto às pressas, na companhia de Tolya e Tamar que quiseram dar
uma ajuda nos serviços iniciais da rotina antes de partirem.
A jovem
desativou os despertadores, pois já não precisava mais deles. Apesar dos mesmos
ainda não terem tocado, faltava poucos minutos para o fazerem.
Confirmou melhor
as horas. Cinco e meia da manhã.
Soltou um
bocejo.
Tinha a
informação que as aulas em Mesagoza começavam às nove, mas tinha que estar a
marcar presença na Academia meia hora antes, ou mais cedo ainda, como pedido do
Diretor, que precisava de conversar com ela no seu gabinete.
Cabo Poco até
Mesagoza demorava aproximadamente uma hora e meia de viagem, ou seja, tinham
que sair de casa às seis e meia se quisessem prosseguir a viagem nas calmas e
chegar à Academia às oito horas em ponto, e lá fazer tudo o que fosse
necessário antes das aulas.
Tendo em vista
a forma bruta como acordara, era óbvio sentir uma pontada de dor de cabeça e no
corpo enquanto matutava naqueles cálculos todos, e teve dificuldades em os
esqueçer quando começou a se mover no cómodo. Sua mãe estava certa em lhe
arranjar um dormitório na escola, pois a longo prazo, ela não conseguiria
aguentar a pressão daquela rotina se ficasse as noites em casa e ainda levasse
com os exigentes trabalhos e estudos ao final das tardes.
Mas mesmo
assim, não existia garantias que o resto da situação seria fácil de enfrentar.
Juliana
aproveitou a ausência da mãe no quarto para se vestir mais à vontade,
escolhendo alguma peça leve no guarda-roupa. Sabia que se a mãe estivesse
presente, ela iria exigir o melhor fato de gala que Juliana conseguisse
encontrar entre as suas roupas, para chegar a Mesagoza mostrando o melhor da
sua imagem.
Mas Juliana
era uma jovem simples que não ligava muito a aparências, portanto, não se
importava de vestir qualquer coisa por ai – claro que existia uns limites, tais
como pijamas sujos de farinha.
Preparou
várias mudas de roupa para levar numa mochila à parte. Sua mãe dissera para ela
não se preocupar com nada daquilo, pois os alunos usavam o uniforme da escola a
maior parte do tempo, e ela sempre podia ir carregando aos poucos qualquer
coisa que fizesse falta dos seus pertences quando regressasse a casa. Mas
Juliana estava demasiado ansiosa, e isso a fez pensar em vários detalhes
minuciosos.
Era sempre melhor
prevenir do que remediar.
Quando
terminou os últimos preparos e certificou-se que tinha tudo necessário pela
última vez, agarrou sua guitarra, afastou os cortinados e abriu a janela,
deixando sua face ser inundada pelo ar gélido da manhã.
Tal como
imaginava, o sol ainda não tinha nascido, mas já dava sinais dos seus primeiros
raios, pois uma leve faixa alaranjada pouco a pouco se formava no horizonte. Seria
um dia de bom tempo, tal como nas semanas anteriores que pareciam Verão
naqueles dias de Setembro. As ondas do mar a abençoaram com sua maresia enquanto
vários Wingull voaram baixinho por cima do jardim da casa.
Juliana
respirou fundo, aproveitando o ar. Sabia que em poucos dias iria sentir falta
de toda aquela natureza simples nada comparável á confusão da Academia e da
cidade, e que vir a casa aos fins-de-semana nunca seria suficiente para matar a
saudade de toda aquela paisagem deslumbrante.
Há muito tempo
que não acordava antes do sol nascer, pois sempre se deitava bem tarde. Rosa
juntara-se a ela, se apoiando no parapeito da janela para analisar a vista, deixando
o Cyclizar arruinar o restante quarto. A humana esboçou um pequeno sorriso a
ver o apoio silencioso dos seus Pokémon, e nunca imaginou como as manhãs podiam
ser tanto inspiradoras como as madrugadas que ela passava em branco a produzir
músicas e a percorrer as praias.
Fixou o olhar
no horizonte escuro, muito além daquele promontório. Acariciou a Sprigatito
entre as orelhas, e sentiu o Cyclizar lamber-lhe o ombro. A presença dos seus
amigos Pokémon era um fator que a animava bastante, e tocar guitarra e cantar também
incluía-se nas lista de coisas que a acalmavam, se no espírito certo.
Os dois
Pokémon a fitaram, pois naquele breve momento, seriam seus espectadores
atenciosos. E rapidamente, o ar matinal de Cabo Poco fora inundado por sua
melodia.
É hoje, que tudo mudaaa;
É hoje, que tudo começaaa;
Só espero que a crença;
Não se partaaa, a mil!
Pois a mudança, é inquieta;
Enquanto a palavra, é tão esbeltaaa;
E a realidade, perigosa;
Fina, como um fiooo!
E a hora aproxima-se;
Não dá mais para aguentar;
Não sei se vou sobreviver;
A onde, vou, estar!...
Os papagaios dos
arredores, ainda ensonados, pousaram no parapeito para apreciarem a música. O
uivo melancólico de Manjar foi ouvido, proveniente do andar inferior da casa, a
acompanhar a melodia. Juliana parou de tocar e cantar quando sua mãe surgiu
fora da porta, alguns minutos depois, e chamou por ela.
– Bela música.
Mas não é a melhor altura para tocar. Temos que nos apressar.
– Eu sei, mãe…
– e deu uma espreitadela na janela, uma ultima vez. – E não sei porquê, às
vezes a inspiração vem nos piores momentos.
– Compreendo o
que sentes…
No início
pensou que ela iria comentar sobre a roupa que portava, mas a mulher após a
elogiar, não parou foi de fitar o Cyclizar estranho por cima da cama
desarrumada.
O olhar era
tão atencioso que a fez encolher os ombros e mudar outra vez sua disposição,
não só tomada de vergonha pelo quarto estar uma bagunça autêntica, mas também
pela punição que estava a pensar que iria receber, pois ainda não se tinha
livrado totalmente desta.
Mas Haruka não
lhe repreendeu por nada nem mencionou nada a mais sobre o dia anterior.
– Vamos lá
comer? Não te preocupes com o quarto, eu depois trato deste lixo mais tarde.
– Quem é que
estava lá em baixo? – Juliana questionou com curiosidade, já agarrando tudo o
que precisava de levar consigo e saindo pela porta ao lado da mãe.
– O senhor
Andrew veio me agradecer pessoalmente pelo bolo de ontem.
– Veio cá só
por isso?… De propósito?… A esta hora?... O que ele disse mais?
– Bom… Ele
acorda sempre muito cedo para caminhadas matinais antes da hora do trabalho. E
aproveitou para comprar uns pãezinhos quentes. Ele disse que o bolo estava
muito bonito. O mais belo Dachsbun que ele alguma vez me encomendou. Ele quis
saber os motivos do bolo ter um ar tão especial.
Juliana
encolheu os ombros, recordando todos os detalhes da discussão que tivera com a
mãe. Ainda não estava livre a cem por cento das consequências dos seus atos, e
sabia muito bem disso, apesar da situação mais calma entre ambas. Lembrou-se da
coisa terrível que gritou para ela quando a ajudara a construir o bolo.
– O que lhe disseste?
Sobre o processo de construção do bolo…
A mulher fitou
o vazio alguns momentos, e pareceu compreender o ponto onde Juliana queria
chegar. Logo abriu um sorriso, a cada passo que realizava quando retomou o
ritmo.
– Disse-lhe
que tive uma ajuda muito especial… A estrela mais preciosa e brilhante do meu
céu.
A frase fez
Juliana encolher-se tímida, por completo, e seguiram a restante travessia do
corredor em silêncio.
Quando
chegaram à sala de estar, a jovem deparou-se com uma mesa muito bem posta e
farta na central do cómodo. Tolya e Tamar estavam lá comendo ração de uma taça
e Rosa e Moto-Moto juntaram-se a eles, com Rosa lambendo leite de uma taça e o
grande Cyclizar querendo atacar o pequeno-almoço na mesa das humanas antes
destas o petiscarem.
– Moto-Moto!
Não! Comporta-te! – avisou Juliana ao seu grande dragão, que já se encontrava
de boca aberta, bem antes de dar um dentada num pedaço de pão.
Por momentos,
lembrou-se que a mãe não queria aquele bicho enorme andando livremente pela
casa, devido ao risco dele largar penas em cima do sofá ou destruir os tapetes
do espaço com suas garras enormes, por isso, não tardou a guardar o Cyclizar em
sua Pokéball. Logo depois sentou-se educadamente, apreciando o aroma dos
alimentos.
Não estava
habituada a acordar àquela hora, muito menos comer assim cedo, logo não tinha
muito apetite, mas este se abriu quando começou a barrar a manteiga nas
torradas quentes, vendo a mesma derreter-se. Também tinha leite achocolatado e
café em chaleiras ainda a fumegar, pão, tortas, queques, palmiers, alfajores entre
outros produtos de pastelaria frescos, legumes cozidos a vapor e frutas
cortadas em várias metades, e aparas de bolo à disposição, para um
pequeno-almoço o mais completo e caprichoso possível.
A mesa pequena
e acolhedora estava posta para as duas, e eram tantos alimentos que as duas
nunca iriam consumir tudo aquilo num dia. A Padeira de Cabo Poco gostava de
abundância, para ter garantia que nunca faltava nada. Haruka separou um
croissant de chocolate para si em seu prato, mas não se sentou de imediato.
Viajou pelos armários da pequena sala, com um bloco de notas, conferindo tudo o
que tinha no interior dos mesmos e tirando várias anotações.
– Vou
aproveitar que vou a Mesagoza e reabastecer umas coisas aqui em casa. Queres
que eu compre algo para depois te dar, Juliana? Precisas de mais canetas?
Lápis?...
– Não… Não
precisa mãe. – respondeu, de boca cheia, mas agradecida pela preocupação dela.
– Acho que não tenho falta de nada, por enquanto.
– Ter coisas
em excesso nunca faz mal a ninguém. Pensa nisso. E não fales de boca cheia,
querida. Fica feio. Já agora… Que roupa esquisita é essa?...
Juliana engoliu
a pequena repreensão e enfiou um pedaço de bolo de laranja pela garganta a
baixo com algum esforço. Era muito cedo, por isso pensou em comer o máximo que
pôde para não passar fome antes da hora do almoço, pois não sabia se iria
conseguir comer algo mais a meio da manhã em Mesagoza, e não queria sua barriga
a roncar no meio do silêncio das aulas.
– Calma,
Julie, até parece que vais passar fome na Academia. Mastiga com calma antes de
engolir. Assim ainda te engasgas. É falta de educação!
– Mas mãe… Eu
nem sei se vou ter hora do almoço! – exclamou, ainda de boca cheia.
– Que
ridículo! Claro que vais ter hora do almoço! Oras… Até parece que nunca
frequentas-te uma escola antes!
– A última vez
que tive numa escola foi há uns quatro anos. Isso é muito tempo… Acho que já me
esqueci como funciona. E eu não tive que… viver
nela.
O acentuar das
palavras viver nela, fez logo a mãe
chegar a conclusões dos motivos da sua criança estar a agir daquele jeito
desprezível.
– Okay. Estás
ansiosa, não é?...
– Não sei mãe…
Viver sozinha parece ser muito…
– Assustador?
– concluiu a frase da outra, a interrompendo.
Juliana acenou
com a cabeça, enquanto dava um longo trago de café na sua chávena para ajudar a
engolir o bolo alimentar. Encheu outra logo a seguir, inundando a boca com mais
daquele líquido amargo. Iria precisar muito da energia daquele café para
enfrentar o restante dia.
– Assustador… Tal
como os primeiros passos o sempre são.
– Para mim
primeiro, segundo ou terceiro é assustador, como caminhar numa ponte velha de
madeira com as cordas prestes a rebentar. – a jovem disse, um pouco ríspida, já
preparando outra chávena.
Haruka a
impediu de beber esta com um gesto mudo, pois não queria sua filha exagerando
no café.
– Sabes… O
primeiro passo é sempre complicado, mas depois de subires o primeiro degraus e
veres como é a sensação, vais te aperceber que não foi tão complicado e apavorante
assim de subir como pensavas que era, e conseguirás seguir bem o resto do
caminho e trilhar a tua própria direção. – ela disse-lhe, com um olhar
carinhoso, para a acalmar.
– Dito dessa
maneira até parece que viver sozinha e voltar a estudar vai ser a coisa mais
simples do mundo.
– Eu não estou
a dizer que vai ser, pois eu te conheço, filha, e sei como tu és… Mas acredita,
no final, vai correr tudo bem. O pensamento é pior que o momento em si, minha Julie…
Já comentámos sobre isto ontem… Agora come calmamente e tenta relaxar. E depois
de comeres, não te esqueças de lavar os dentes.
Juliana esperava
que ela estivesse certa quanto ao assunto. Mas a verdade é que Haruka se fazia
forte para não voltar a desabar como ocorreu na noite antes. A mulher sentou-se
à sua frente e começou a comer, mastigando os alimentos vagarosamente.
Pegou no
controlo remoto e ligou a televisão, só para ver o que é que os canais passavam
no noticiário. Haruka sempre dava uma olhada, pois naquele horário existia
sempre alguma coisa nova em comparação ao dia anterior.
Acidente no Farol de Cabo Poco… Problemas no
estabelecimento prisional de… – começou os apresentadores a dizer, nos
canais por onde passava.
Não tardou
muito tempo para a mulher decidir desligar a televisão, quando viu que as
noticias transmitidas em todos os canais naquela hora só traziam dores e
sofrimentos, como era o típico das notícias todas as manhãs.
– Porque
desligaste, mãe? – Juliana disse, e como estava distraída a comer algo crocante,
não ouviu o som do televisor na sua totalidade e mal tinha notado que este
tinha sido ligado. – O que era?
– Nada demais.
Queria ver o que estava a dar nas notícias, mas me lembrei que todos os dias é
só desgraça nessa televisão… – murmurou. – É melhor não pensar nelas. Só te vai
deixar ainda mais preocupada com a tua nova vida de estudante. E nos distrair
também! Não temos tempo a perder!
– Nem está
dando aqueles programas que tu gostas de ver?
– A esta hora
nunca dá nada decente, tirando umas touradas como tapa buracos na programação e
os mesmos episódios de umas novelas antigas que toda a gente já está cansada de
ver e saber de cor e salteado.
A jovem sorriu,
mas seu sorriso se desvaneceu, pois apercebeu-se que já fazia muito tempo que
não comia o pequeno-almoço na companhia da mãe, e o quanto o ambiente parecia
ser tão solitário. Quando terminaram as duas o pequeno-almoço, Tolya e Tamar
ajudaram a mulher a limpar o pequeno espaço, enquanto Juliana terminava seus
afazeres na casa de banho. Haruka juntou parte do que restou do pequeno-almoço
numa lancheira para Juliana levar consigo.
Ao regressar à
sala, as duas se fitaram mutuamente respirando longos minutos de silêncio.
– Bom… Vamos
então?... – começou a mãe, de forma demorada.
Juliana apenas
acenou-lhe com um gesto de cabeça enquanto agarrava suas coisas e ajeitou sua
guitarra às costas em movimentos lentos, como se uma força invisível a dissesse
para não sair de seu lar. Mas que remédio ela tinha?
A lentidão que
usaram para descer a escadaria dava a entender que a mesma não teria fim. Em
meio ao silêncio da casa, a madeira dos degraus da mesma pareceu mais ruidosa
do que quando o Diretor Clavell ali tropeçara.
Juliana fitou
as típicas fotografias na parede ao seu lado expostas, em silêncio. As
paisagens de Paldea, as viagens que fizera com a mãe, familiares distantes e
amigos de família... Tantas memórias ali, guardadas com imenso carinho.
Ela nunca
tinha ligado tanto às fotografias, mas agora, elas todas pareciam adotar um
significado diferente, pois estava a abandonar aquela vida pacata em Cabo Poco
para entrar no início de outra… Uma vida de estudante na Academia Naranja e
Uva, e isto era uma mudança brusca que não devia ser ignorada.
Haruka também
acompanhava o observar da filha, e parou abruptamente seus passos, dando
especial atenção a uma das fotografias. Juliana não precisava de olhar para ela
para saber qual era a imagem emoldurada que ela fitava. Afinal, sua mãe adorava
aquelas fotografias, e em cada uma delas, sempre dirigia um olhar próprio, que
demostrava o quanto cada uma era uma recordação única e seu momento especial.
A demora
obrigou Juliana a lhe chamar a atenção. O olhar de Haruka parecia perdido nos
seus pensamentos.
– Mãe?… Assim
vou chegar atrasada.
– Ah!… Sim!…
Desculpa filha… – comentou, ao despertar-se do transe, apesar de não ter tirado
assim tão cedo a imagem daquela fotografia rasgada da mente.
No final da
escadaria, todos os Pokémon que trabalhavam na Padaria as esperavam
enfileirados. Juliana não hesitou em entregar um abraço caloroso a cada um.
Começou por
apertar as bochechas rechonchudas do Skwovet, acariciou as penas brilhantes do
lombo de Espathra, apertou a mão à delicada Tsareena, deu umas palmadinhas nas
costas do longo Dudunsparce e quando chegou na Tinkatuff… a Pokémon rosa apenas
realizou um gesto militar, que Juliana procurou retribuir de forma desajeitada.
– Cuidem de
minha mãe e da padaria. Okay? Não quero que ela se sinta sozinha.
No outro lado,
Tolya e Tamar abraçaram Haruka, e apesar de Rosa não conhecer bem a humana, também
foi envolvida pelos braços desta.
– Meus caros.
Hoje os encarrego de uma missão de extrema importância e espero que vocês não
desrespeitem este juramento à espada. A vida da minha menina está nas vossas
mãos a partir de agora. Cuidem dela na minha ausência… – a mulher disse-lhes,
séria. – Tamar, certifica-te que ela tem o quarto arrumado, cuida da sua
higiene pessoal, estuda, faz os trabalhos de casa e tem tudo em dia e boas
notas! Tolya, sua pequena arruaceira, controla-te e não inventes muitas palhaçadas
nem te envolvas em problemas. E quanto a ti Rosa… Sei que não tenho ainda muita
confiança para te dizer isto, mas se a Juliana ficou contigo, é porque és uma
gatinha especial. Vê se esses crocodilos não roubam nada. Pode não parecer, mas, eles tem mania de furtar
coisas. Se algum aluno estiver a procurar por sua carteira, já sabes os
possíveis responsáveis.
Os crocodilos
olharam para a Sprigatito, incrédulos, mas todos acabaram por acenar em
concordância quando viram a gatinha planta esticar suas patas com as garras à
mostra.
Quando Juliana
acabou largando os Pokémon da mãe dos seus braços, o grupo de Pokémon
afastou-se, dando lugar para Manjar, o velho Daschbun o chefe da cozinha e
aquele que dava nome à Padaria, passar. Era o único monstrinho que faltava se
despedir da humana, e este aproximava-se devagar da jovem, em seus pequenos
passos, um por vez, nas placas de azulejo do pavimento. O cão idoso tinha
certas dificuldades em se locomover, e sentou-se, bem imóvel, em frente a
Juliana, numa extensa troca de olhares.
Apesar de
também querer muito um abraço ou caricia, sabia que não o teria, com o devido
respeito da fobia da humana. Juliana respirou fundo na presença dele, e ajoelhou-se,
fitando-o de perto.
Não hesitou em
falar seu pensamento em voz alta.
– Por Arceus… Esta
despedida toda… Até parece que um de nós não vai voltar nunca mais… Mas quando
eu voltar no próximo fim-de-semana, será que esse cão velho ainda vai estar
vivo?...
A frase de
Juliana fez a mãe mudar sua expressão para um horror, abaixar a cabeça e
acariciar o seu cachorrinho num gesto quase impulsivo. Juliana encolheu os
ombros, e tentou mudar o tom da situação de uma forma um tanto atrapalhada.
Podia não gostar de cães mas também não desejava a morte daquele que fora o
primeiro Pokémon da sua progenitora.
– Muito obrigado,
Chefe Manjar! Cantares ao som da minha guitarra dá um toque único às minhas
canções! E se algum dia eu ter coragem para fazer amizade com algum cão que
cantasse para mim, duvido que este o faria com a mesma convicção que tu tens!
Serás sempre o melhor cantor que eu tenho!
O Dachsbun
fechou os olhos devagarinho, e latiu baixinho como resposta. O velho Pokémon
parecia voltar a sorrir graças ao elogio dado pela filha da sua treinadora.
Depois a humana ouviu vários piares e olhou para a janela.
E lá estavam o
bando de Squawkabilly dançarinos do telhado, é claro! Pedindo uma ‘’ultima’’
canção em conjunto para despedida, e Juliana não iria fazer a desfeita aos
companheiros, que apesar de serem selvagens, compreendiam que não iriam voltar
a ouvir aquela guitarra assim tão cedo.
Tal como
treinados e como sempre faziam, os diversos Pokémon puseram-se a fazer barulho
com qualquer instrumento da cozinha, e a cantar e a dançar, enquanto a jovem fazia
as cordas do seu instrumento musical vibrarem.
É hoje, que tudo mudaaa!
É hoje, que tudo começaaa!
Com o apoio desta comitiva;
Não terá mais desavença!
A mudança, é inquieta;
A palavra, é tão esbeltaaa;
E a realidade, perigosa;
Fina que nem um fio;
Muito em breve;
Deixará, de, o, serrr!
Enquanto a
filha tocava, Haruka foi em frente, e na lateral das traseiras da casa, abriu
uma garagem. Um velho Revavroom saiu do interior da garagem, saudando as humanas
com sua língua de fora, pronto para a viagem. Rosa, Tolya e Tamar deram um
‘’até logo’’ aos companheiros, e entraram em suas respectivas Pokéballs, pois
seriam demasiado peso para o Revavroom.
As duas subiram no dorso do Pokémon semelhante a um automóvel, e prosseguiram então caminho. A Padaria Sonhos de Dachsbun desaparecera de vista num piscar de olhos na curva ao final da rua principal da pequena vila, mas Juliana continuou a tocar na sua guitarra, até o sol nascer totalmente e clarear o céu e o mar. Descerem as ruas de Cabo Poco, atravessarem o farol, os promontórios e suas praias e trilhos dentro das matas…
A última nota ressoou nas cordas, só quando a jovem ficou com os dedos doloridos de tanto tocar, e foi ai que notou exatamente o quanto já se encontrava longe do seu lar.
– Mãe, estou curiosa
com uma coisa… Como conseguiste uma vaga nos dormitórios da própria escola? Los
Platos está cheio de alunos que não conseguiram vaga nem lá nem na cidade.
– Quando
telefonei para a Academia para te matricular, questionei sobre os quartos disponíveis
que estão por conta da Academia, tanto nos arredores como dentro da cidade, e o
Diretor Clavell comentou sobre uma aluna que tinha sido transferida para outra escola,
e o seu dormitório ficou vago em última hora. Posso dizer que, tendo em conta
que a Academia em si está lotada, foi uma oportunidade imperdível. A questão
dos quartos sempre foi uma dor de cabeça, uma competição bem do género ‘’quem
chega primeiro, fica’’.
– Quando
estudavas também dormias na Academia?
– Não… Mas
fiquei uns bons anos a viver num apartamento que existia na periferia da
cidade. Apesar de Cabo Poco ser minha verdadeira casa, eu adorava aquele
apartamento. Se chegarmos cedo a Mesagoza eu posso pedir aqui ao Pópó para
fazer um desvio rápido e te mostrar onde ficava, mas o edifício hoje em dia já
não existe mais. Foi demolido para a construção de uma pequena lagoa
artificial.
– Oh… Deve ter
sido triste.
– Sim… Eu fiquei
chocada quando descobri… Posso garantir que o apartamento era bem mais bonito
que aquela porcaria de lago.
– Sentes
saudades desse local?
– Saudades? Claro
que sim! Tinha muitas recordações boas lá. Vocês jovens tem dificuldade em
compreender isto, mas as memórias boas é que sempre ficam no final, Julie, se
sentires saudades de algo é porque valeu a pena viver. Sei que não gostas de
estudar, mas tenta viver teus dias ao máximo e pensar apenas nas coisas boas da
rotina. No futuro, quando chegares a minha idade, ainda vais sentir muito a
falta dos tempos que viveste na época.
Enquanto conversavam
no dorso de Revavroom, os galhos mais altos das copas das árvores do trilho passavam
sombras refrescantes por cima de suas cabeças, causadas pelos primeiros raios
de sol da manhã. Vários Fletchling voavam de uma árvore a outra, com seus
piares característicos. Tarountulas balançavam calmos em suas teias em árvores
e grupos de Lechonk em abundância esgravatavam as folhas caídas na lateral do
caminho em busca de comida, correndo para o interior dos arbustos para não
serem avistados. Hoppip animados aproveitavam a brisa matinal e voavam ao redor
do Revavroom, acompanhando o ritmo de viagem do Pokémon motor. A ausência
súbita do predador na noite passada fizera a natureza por aqueles lados
retornar à normalidade a olhos vistos.
Depois de
passarem Poco Path, atravessaram a
ponte que transpunha o pequeno riacho que banhava os limites da área envolvente
do farol de Cabo Poco, e começaram a avistar as primeiras casas de Los Platos.
A pequena vila servia como dormitório de muitos alunos, devido a toda a sua
aproximação com o portão sul de Mesagoza, mas vários adultos que trabalhavam na
grande cidade também faziam do pacato local a sua moradia.
O Revavroom
seguiu a uma velocidade controlada pela rua principal. Como era de esperar, estavam
no meio da hora mais movimentada da vila. Juliana encolheu-se atrás da mãe
quando viu grupos de alunos ensonados caminharem como zombies até uma paragem
de autocarro. A pequena cabine chamou sua atenção, pois era velha, tinha suas
janelas de vidro partidas e o banco cheio de rabiscos de grafite.
Um pequeno
lago entre árvores mesmo ali ao lado era uma atração festiva aos jovens que
esperavam o transporte. Estes brincavam ao atirar pedras para suas águas com o
objectivo de as verem chapinhar, ou atingirem alguns Pokémon selvagens que nesta
habitavam. Por vários instantes, Juliana sentiu que aquele grupinho de
adolescentes lá abrigado acompanhavam-nas com o olhar a travessia.
Os mais
sortudos com boleia de mentores ou pais já se punham a caminho a subir o morro
que existia a norte da vila. O seu Revavroom fez de súbito um barulho
ensurdecedor quando começou a subir as estradas que o levavam nessa mesma
direção, soltando uma golfada de fumo negro e carregado de toxinas dos seus
tubos de escape atrás de si.
Quando deram
por si, as humanas perderam a velocidade.
– O que se
passa? Pópó? – Haruka questionou-lhe, preocupada.
– Alguma coisa
errada com ele? Mãe?... – Juliana perguntou, com medo do que tivesse ocorrido e
do grande atraso que isso podia gerar.
A mulher
conduziu o seu Revavroom para a beira da estrada, com o objetivo de não
incomodar quem estivesse a passar pelo local. O Pokémon motor logo parou seu
movimento, aterrando as rodas na erva carregada de orvalho. Haruka e Juliana
saíram de cima dele para lhe darem conforto com o alívio do peso.
Haruka
analisou o seu Pokémon com preocupação. Como já tinha sido uma treinadora no
passado, ela entendia um pouco sobre a saúde dos seus monstrinhos, o suficiente
para o auxiliar quando estivesse longe de Centros Pokémon ou sem medicina em
mãos.
– Por Arceus… Como
é que isto foi acontecer?...
– O que ele
tem?
A mulher
passou a mão pelo cilindro que formava a cabeça do Pokémon, o acariciando. A
língua da criatura moveu-se com dificuldade. Juliana seguiu com atenção os
movimentos da mão da mãe.
– Alguma coisa
entrou num dos tubos de escape, e não o está a deixar respirar como devia. Vou
ter que o levar ao Centro Pokémon.
– É grave?
– Não sei… – e
Haruka retornou o seu monstrinho para o interior da sua esfera bicolor. – O
Centro Pokémon não muito fica longe daqui. As enfermeiras vão saber o que
fazer. Vamos. Rápido.
Não era a
primeira vez que Juliana se deparava com um acidente do género. Na Padaria, era
comum algum Pokémon se magoar ou queimar quando manuseavam os produtos e
instrumentos, e certa vez, aquele mesmo Revavroom mostrou sintomas semelhantes
por inalar um pedaço de pão sem querer.
A primeira
coisa que veio à mente da jovem foi o grupo de adolescentes de ar desconfiado
que estavam ao lado do lago a atirar pedras quando chegaram a Los Platos. Talvez
acertaram com uma pedra num dos orifícios do pobre Revavroom e ambas as humanas
não notaram por estarem de costas.
A caminhada de
regresso à entrada da vila demorou cerca de quinze minutos. A jovem viu o
autocarro partir ruidosamente pela estrada, carregado de alunos até Mesagoza, e
ficou impaciente, pois a probabilidade de chegar atrasada às aulas agora era
muito mais alta.
Os Centros
Pokémon de Paldea não eram grandes edifícios como nas restantes regiões do
mundo Pokémon, mas ainda mantinham seu charme apelativo. A arquitectura única
que os dominavam seguiam um padrão praticamente igual aos postos de
abastecimento ou lojas de conveniência, com um longo telhado sem paredes dando
cobertura a uma vasta área que servia como esplanada. Na sua fachada, ao lado
da cor vermelha e logótipo característico do Centro Pokémon, imagens de marcas
e patrocínios em luzes néon atraiam olhares curiosos.
A recepção
parecia pequena, mas a maior parte da instalação se localizava no subsolo.
Haruka foi até a enfermeira entregar-lhe a sua Pokéball e falar da situação delicada
do seu Pokémon. A enfermeira analisou alguns momentos a Pokéball numa máquina,
e depois, permitiu que ela descesse para o interior do Centro como companhia do
Revavroom até a ala de tratamento.
– Fica aqui e
não saias daqui, está bem, Juliana? – Haruka virou-se para ela. – Não parece
muito grave, mas pode demorar.
E a mulher não
tardou a desaparecer na companhia da enfermeira, seguindo uma escadaria na
lateral do edifício.
A jovem
encostou-se então a um dos pilares que sustentava o telhado, com as mãos firmes
na correia da sua guitarra e nas alças da mochila, olhando o tempo e as pessoas
a passar enquanto esperava. O cansaço por acordar cedo e o tédio da espera a
começaram a atingir mais rápido do que deviam.
Algumas
crianças pequenas, acompanhadas dos pais, brincavam com Pokémon debaixo de
árvores e em descampados nos arredores. O vento soprava de forma agradável. Eram
poucos os que passavam e olhavam para ela, ou sequer a notavam ali imóvel, mas
a jovem pressentia uma carga estranha de olhares que lhe era dirigida por todos
os lados, talvez proveniente do seu imaginário.
Se a mesma
fosse real, não era de admirar, pois Los Platos e Cabo Poco eram um meio
pequeno, muitos conheciam a sua família.
De qualquer
das maneiras, Juliana não esperava fazer amizades novas assim tão cedo (Nemona
foi uma grande excepção). Nunca apreciou muito a companhia de pessoas,
preferindo mil vezes a presença dos Pokémon.
Contemplou
vários grupos de alunos a tomar o pequeno-almoço na esplanada do Centro
Pokémon, pois os mesmos pareciam muito despreocupados. As mesas estavam lotadas
e todos ainda tinham cara de que suas estadias iriam demorar por ali,
mastigando lentamente os alimentos ao lado dos seus monstrinhos. Talvez suas turmas
não tinham aulas na parte da manhã. Uns portavam o uniforme da Casa Uva, já
outros o uniforme da Casa Naranja da Academia de Mesagoza.
Algo a
destacar era que a maioria tinha os olhos fissurados no Rotom Phone e mal
levantavam a cabeça para o que ocorria ao redor. Outros liam um livro de capa
encarnada de forma bem entusiasmante, livro este que lhe era bem familiar.
Apesar do interesse mútuo, ela não se aproximou destes.
Ela fez um
esforço para se manter acordada. Juliana não hesitou em murmurar para si um
pouco da canção que criara inspirada naquela obra, que por culpa da agitação
toda do dia anterior, tinha esquecido que existia.
Olhei para trás, e me vi, no meio do mar…
Nem as estrelas, conseguiam, me guiar… Dia e noite, à deriva, indo lés a lés…
Quando o ventoo-o-o arrancou o paraíso a meus pés.
Era óbvio que
o fez, bem baixinho, para ninguém notar, não gostava de cantar em público,
principalmente se fosse em frente a um bando de desconhecidos. Em certo ponto,
Juliana cedeu à mesma tentação dos outros e agarrou no Rotom Phone, confirmando
se algum dos seus streamers favoritos
tinham atualizado as contas com vídeos novos, ou se a Nemona mandara alguma
mensagem nova.
Pelo menos as
imagens do ecrã a iriam distrair alguns minutos da ansiedade que sentia face ao
clima hostil ao qual estava enquadrada. Acontece que quando deu por si, um
grupinho aproximou-se da esplanada vindo da direção da estação de autocarro.
Reconheceu-os
de imediato.
Era o mesmo
grupo de adolescentes que avistara quando chegaram a Los Platos a atirar pedras
no lago. Um dos adolescentes começou às gargalhadas quando a notaram, mas logo
um outro deu-lhe uma cotovelada.
Só esperava
que eles não viessem falar com ela.
E com a
proximidade toda que aos poucos os mesmos tomavam, Juliana não deixou de
reparar melhor nos seus trajes exóticos, apesar de tentar não olhar. Os seis ou
sete jovens portavam versões modificadas do uniforme da Academia, alguns deles
usavam capacetes cheios de glitter e
óculos escuros, outros tinham tatuagens em forma de estrela adornadas nas
roupas ou no próprio corpo em partes expostas. Enfileirados, seguindo algum
género de hierarquia, caminhavam seguindo o mesmo padrão de passos que os
gangues de diversos filmes de ficção utilizavam.
Ela encolheu
os ombros, pois aquilo não cheirava bem.
Nada bem.
– Hey! É a
miúda que estava em cima daquele Revavroom com a mamã! – um deles chamou a
atenção dos restantes.
– Eu não sabia
que a Padeira de Cabo Poco tinha uma filha. Minha mãe compra o pão todo a ela.
– comentou um outro adolescente.
A jovem
encolheu-se mais e olhou para o chão, evitando os fitar nos olhos e abrir
qualquer brecha para conversa. Era claro que sua mãe era conhecida por ali, mas
por vezes ela se esquecia que ela tinha bastante influência em Cabo Poco e Los
Platos.
– Ela deve
estar esperando o Revavroom no Centro Pokémon. Eu te disse para não atirares a
pedra! Ainda vamos ter problemas. – a jovem sentiu náuseas a ouvir aquilo vindo
daquele rapaz.
– Mais problemas
do que faltar às aulas? Ou achas que estudar é mais divertido que atirar pedra
a Pokémon? – Debochou o outro, e depois olhou Juliana. – Eu juro que não queria
acertar nele!
– Já sabemos
da tua boa pontaria, não precisas de te gabar pela vigésima vez. – um outro
amigo seu gozou ao seu lado.
Apertou o
punho ao ouvir a confirmação das suas desconfianças, mas aguentou-se para não
se soltar em fúria. Sempre aprendera que a ignorância era, muitas vezes, a
salvação de certas situações sociais face a estranhos.
– Nunca te
vejo muito por aqui, miúda. – um começou, diretamente para ela. – Não és do
tipo de sair de casa, pois não?
Silêncio foi a
resposta que ela lhes deu.
– Que sorte a nossa, além desta ser feia é mais parada que uma parede. – um outro disse, levando logo um soco na cabeça vindo do companheiro.
O grupinho a
rodeava como um bando de Squawkabilly ao redor de migalhas de pão, apesar dos
papagaios do telhado da padaria terem uma pose bem mais agradável. A jovem só
tinha vontade de fugir dali, mas estava no meio do cerco construído pelos
jovens que a abordavam, e para onde se virasse, só via aquela gente estranha a
julgando. Um deles sorriu, com ar folgado, mostrando os seus dentes
enfileirados perfeitamente, que eram tão brancos cujo brilho quase cegava.
– Ela não diz mesmo
nada? – questionou, curioso.
– Deve ser
muda. Parece que é moda agora gente com algum nível de deficiência aparecer em
público.
Outro
comentário maldoso que fez o companheiro dar-lhe mais uma vez uma cotovelada.
– És mesmo um
otário!
– Por Arceus…
Esses idiotas não se vão embora… O que eles querem de mim? – Juliana murmurou,
já perto de entrar em pânico, mas logo conteve-se para não falar mais.
O mais velho
do grupinho olhou para ela. Juliana encolheu-se mais.
– Acho que ela
disse alguma coisa.
– Só podes
estar louco. Eu não a ouvi dizer nada, mano.
– Eu tenho
certeza que ela disse algo! Eu não estou maluco! Tu é que és surdo como uma
porta!
– Já agora vou
dizer que jurei que o meu vizinho cego me viu esta manhã quando sai de casa. –
riu um outro.
A jovem
engoliu a seco e olhou para todos os lados possíveis, já começando a adotar uma
pose ainda mais hostil. Depois algo veio à sua mente e ela tirou uma das
Pokéballs do seu bolso. Uma pequena crocodilo materializou-se em frente dela, e
começou a rosnar como um cão raivoso.
O grupo permaneceu
estático, encarando a crocodilo.
– Olhem! Ela
soltou o seu bichinho fofinho de estimação! – exclamou uma das meninas do
grupo, animada com a presença do Pokémon cor de areia. – Vem cá amiguinho! Bchee bcheee bchee bchee…
– Bchee, bchee, bchee?? Estás chamando por
um gato ou por um jacaré por acaso? – um dos adolescentes olhou para ela.
– Sandiles não
são jacarés, são crocodilos. – comentou outro, indignado.
– Jacarés…
Crocodilos. É a mesma coisa!
– Não são não,
maninha!
– Esperem… Sandiles não são alligators? – Interrogou um outro, com
ar perdido.
Estes virgens desesperados estão a me tratar
como uma aberração de circo! – a pequena Sandile assoprou, ainda a assimilar
o que estava ocorrendo à sua volta.
– Tolya, usa Scary Face! – Juliana ordenou, interrompendo
o diálogo dos adolescentes.
A jovem
esperava que o golpe da sua Sandile surtisse algum efeito naquele grupo para os
mesmos se irem embora o mais depressa possível. Tolya podia ser bem intensa
quando provocada, e o seu olhar assustador e dentes afiados fez a maioria do
grupo começar a dar meia volta e correr aos tropeções, quando notaram que a
mesma não era tão fofinha assim como achavam.
Apenas dois
dos membros ficaram, e apesar do medo que tiveram da Sandile, a olharam nos
olhos.
– Calma, amiga.
– um deles botou as mãos ao ar, tremendo. – Não era preciso reagires dessa
maneira… Puxa… Só queríamos saber se querias ser nossa amiga…
Tolya, ainda a
se sentir provocada, deu um pulo, e desferiu um Bite rápido na perna do rapaz que acabara de falar. Ele soltou um
grito cheio de adrenalina, e voltou correndo para a sua companhia que já iam de
volta na direção do lago. Depois, a Sandile reposicionou-se em frente à
treinadora, fitando o adolescente que restara nos olhos.
– N… Nós te
vimos em… em… em cima daquele Revavroom e… e pensámos que talvez gostasses de…
de Revavrooms… – ele encolheu os ombros tentando explicar, e depois virou as
costas, cheio de medo da vez da Sandile saltar contra ele. – Vamos organizar
uma corrida de Revavrooms aqui em Los Platos próximo fim-de-semana... Somos a Team Star e nosso convite está aberto… Hasta la Vistar, amiga…
Corrida de Revavrooms? Team Star?...
Aquele diálogo não era, definitivamente, uma forma agradável de convidar alguém para entrar em alguma facção ou assistir um evento do género. Juliana soltou um suspiro, aliviada em voltar a ficar sozinha, e acariciou sua Sandile antes de retornar a mesma para sua Pokéball, antes que ela começa-se a usar mais Bites sem sua ordem a todos os presentes.
As pessoas
sentadas na esplanada trocaram olhares de reprovação, mas logo esqueceram o
ocorrido. Juliana continuou a fitar a direção do lago, com as costas encostadas
ao pilar, receando o regresso do grupo. Já não via o grupo com suas roupas
exóticas, capacetes cintilantes, tatuagens e óculos em formato de estrela.
Mas, dentro de
si, tinha a certeza que este seria o primeiro, entre muitos, dos encontros
futuros que teria com os membros arruaceiros dessa tal Team Star.
Haruka
retornou cerca de vinte minutos depois do encontro de Juliana com aquele gangue.
O Revavroom estava ao seu lado, totalmente recuperado, e dava umas voltas de
alegria em torno das humanas, pronto para voltar a tomar a estrada a alta velocidade.
– Desculpa a
demora… Querida. A enfermeira depois de extrair uma pedra que entrou dentro do
tubo de escape dele disse que o Pópó precisa de fazer bastante exercício para
que o seu sistema respiratório volte à normalidade. É interessante pensar como
cada Pokémon tem uma anatomia única.
Olhou para a
filha silenciosa, que fitava tensa a mata na direção do farol.
– Aconteceu
algo? – questionou-a, sabendo que a mesma estava preocupada.
Ela encolheu
os ombros, não querendo revelar muita coisa sobre o encontro com aqueles
adolescentes.
– Nada demais.
Estou nervosa, e vou chegar atrasada! Já bastou ter faltado ontem e antes de
ontem…
– Eu admito
que também foi culpa minha. Eu fiquei calada para ver se te lembravas dessa
responsabilidade, mas não te lembraste. De qualquer forma, o que te salvou foi
como a matrícula atrasou. Enfim. Vamos seguir viagem?
E subiu para o
lombo do seu Pokémon, ajudando a filha a subir também.
– Vamos Pópó!
Para Mesagoza! Para a Academia! – Haruka exclamou para ele.
Assim, seguiram
a colina a norte de Los Platos, até os portões da zona sul da grande cidade.
– Não estás a
te esquecer de nada?... – Haruka questionou, sorridente, para a sua filha, com
ar misterioso.
A jovem pisou
a calçada lisa do chão e piscou os olhos.
Olhou para as
costas vazias do Revavroom que a mãe conduzia, e que lhe tinha trazido até
aquela rua movimentada. Estava com a sua guitarra, com a lancheira e com a
mochila às costas, com o Rotom Phone, também já tinha a chave do dormitório,
bem guardada, no seu porta-chaves. Suas Pokéballs terlintavam no bolso. Tinha
todos os seus documentos de identificação consigo.
Não lhe
faltava mais nada pois já carregava tudo às costas.
As duas,
afinal, chegaram mais cedo à cidade do que o previsto, e, apesar de já ter
estado em Mesagoza antes, Juliana estranhou pela primeira vez a falta do som e
aroma do mar, que estava tanto habituada a sentir na sua pacata casa.
Ao seu lado,
uma enorme escadaria estendia-se até um edifício antigo e de paredes esbeltas. A
Academia Naranja e Uva saudava a sua nova aluna com toda a sua superioridade.
Vários Pokémon voadores sobrevoavam as torres mais altas, pousando num pequeno
poleiro próprio para eles que existia na lateral, junto com uma árvore natural que
fora naquela torre plantada, e que dava uma gracinha estranha ao edifício.
A mulher
sorria, para tentar não se por a chorar naquela pequena despedida em público.
Evitava olhar a face da filha diretamente, tendo os olhos fixos no edifício,
mas a presença da Academia Naranja e Uva mesmo ali, como plano de fundo entre
as duas, não ajudava. Alunos subiam continuamente a enorme escadaria, e a visão
lhe entregava demasiadas recordações.
Juliana ai
notou o que a mãe não só queria… Mas como também precisava.
Aproximou-se, e
atirou-se a seus braços.
A mãe não a
deixou afastar-se assim tão cedo e encheu-a de beijos na testa, enquanto a
apertava com força.
– Quero que
tires boas notas, okay? Sê a melhor aluna desta espelunca. – a mãe começou a
sussurrar-lhe no ouvido, ainda apegada a ela.
– Sim mãe… Mas
acho que vai ser meio impossível ser boa aluna. – a jovem começou a rir,
enterrando-se mais em seus braços, procurando sentir tão familiar e protetor
calor, sem saber ao certo o que responder a cada pedido dela.
– Porta-te bem,
sê responsável, e não te envolvas em coisas que não devias. Nem penses em beber
álcool. Não negues que eu sei que bebes!
– Está bem,
mãe… – e voltou a rir, nervosa.
– Tenta ser
agradável e fazer amizades…
– Isso… Vai
ser complicado…
– Deita-te
cedo e estuda bastante.
– Isso… Vai ser… Complicado também. Mãe.
– Vê se a
Tolya e o Tamar não roubam nada. Teus Pokémon vão ser a tua melhor companhia a
partir de agora. Cuida deles.
– Vou cuidar
muito bem deles sim, da mesma maneira que eles cuidam sempre bem de mim!
– Não deixes que
ninguém te desrespeite e te bote o dedo em cima com falsas intenções, muito
menos se te obrigarem a fazer algo contra a tua vontade. Não dá para agradar
todas as pessoas. Apenas sê tu própria e mostra o melhor de ti. Se alguma piranha
te provocar, dá-lhe um soco.
– Claro… –
Juliana murmurou, assustada com o súbito incentivo à violência.
– Não te
esqueças de me telefonar, principalmente se precisares de auxílio em alguma
coisa e tiveres dúvidas em algo! Estou sempre com meu Rotom Phone por perto.
Posso atender a qualquer hora.
– Mãe, achas
mesmo que eu não te iria telefonar? Vou-te telefonar umas cinquenta vezes por
dia! Agora podes parar de me apertar… Estás a sufocar-me!
– Se
arranjares namorado ou namorada, sexo só depois do casamento, com meu conhecimento
prévio e autorização por escrito.
– MÃEEE?!
Naquele
momento súbito, largou a mulher, completamente vermelha. Haruka soltou uma
gargalhada animada. Gargalhada esta também acompanhada de gargalhadas vindas de
um outro grupo de jovens que passavam ali perto.
Talvez a
mulher dissera aquilo demasiado alto. Juliana encolheu os ombros, constrangida.
Aprendera da
pior maneira uma das regras mais importantes que os adolescentes tinham na
escola: Nunca dar aos pais ou mentores um abraço ou um beijo de despedida
quando chegassem à escola. Pior ainda se a mesma caricia viesse acompanhada de
uma lista quase infinita de conselhos e ordens tensas.
– Agora, meu doce
passarinho… Está na altura de eu libertar as tuas asas e deixar-te voar… –
Haruka disse-lhe, dando-lhe um beijo final na testa.
A jovem, tensa,
tentou ignorar os sininhos que ainda dominavam os ares, e encarou as enormes
escadas, assustando-se com a altura que a enorme escadaria tinha em cada um dos
seus degraus de pedra polida.
– Mãe! Tens a
certeza que não me podes levar até lá acima com o teu Revavroom? Isto é muito
degrau para subir!
Haruka já se
movimentava para longe montada no seu Pokémon carro, com lágrimas nos olhos,
prestes a desabar. O Revavroom também tinha um ar muito infeliz.
– Bem-Vinda a
Mesagoza, filha! Esse é o teu primeiro rito de passagem! Eu… Eu espero que
sobrevivas!
– O QUÊ? Como
assim??
A jovem
procurou-a com o olhar, mas Haruka e seu Revavroom já haviam desaparecido entre
a multidão das ruas. Juliana voltou a observar o edifício enorme e a sua longa e
alta escadaria, super assustada.
E ali, muito tempo ficou imóvel, no mesmo local onde a mãe a deixou, ainda a assimilar o desafio que tinha em frente e a nova virada da sua rotina.