- Back to Home »
- Capítulos Adicionais , Vozes Em Branco »
- Vozes em Branco - PARTE 2 - Capítulos Adicionais
O crepitar da
lenha na fogueira entregava o clima perfeito a todas as batidas que o Rillaboom
realizava em seu tambor. O som monótono saia a cada palavra que finalizava as
histórias contadas pelos presentes.
Era uma
tradição familiar da guilda em cada noite, no final do jantar, juntarem-se ao
redor da grande fogueira e cada um dos integrantes porem-se a contar ou a ouvir
histórias.
Umas eram
inventadas, outras sobre suas vivências naquele dia, algumas tão antigas que
todos já estavam fartos e cheios de as ouvirem sempre, como era o caso das
histórias do tio de Santiago.
Santiago era
sempre o único que não dizia nada, e, por isso, sentava-se afastado, olhando
para as chamas dançado à distância, com as costas apoiadas no velho Wyrdeer.
E ainda cuidando
e supervisionando as crianças, é claro.
Aquele bando
irrequieto estava deitado ao seu redor, alguns com as cabeças deitadas em seu
colo, outros mordendo-se ou brigando e outros puxando pelas cobertas que usavam
de aconchego.
Santiago
tentava os silenciar para não incomodarem mais, mas era tarefa difícil.
– Santi! Vai
falar sobre a Raika! – pediu uma das meninas.
– Raika? Raika
o tanas! Raika está fora de moda. Vai contar sobre os Tesouros da Ruína!
– Nada disso,
ele vai falar sobre as suas aventuras com Raika, a Pirata!
– NÃO! Quero
os Tesouros! – resmungou mais outro.
Santiago
entregou-lhes um sorriso com covinhas, um tanto triste.
Por muito que
as crianças que o rodeassem insistissem e o puxassem pelo braço, ele não iria
para a frente do circulo fazer tal coisa.
Por um lado,
dava agradecimento a todo santo corpo de Arceus por não o fazer, sua vida não
era nada de interessante e ele tinha certeza que contar histórias era algo ao
qual não saberia fazer nunca em nenhum momento da sua vida.
Ansioso,
esperou alguém mencionar a caravana dos livros, mas, tirando outra discussão
entre seu tio e seu pai, que repetiam sempre os mesmos argumentos num círculo
quase infindável, ninguém mencionara uma palavra sequer sobre estes.
O Blaziken do
seu pai estava no topo da lona de uma das carruagens mais próximas, e deu uma
cantada. Poucos sabiam, porque pensavam que era ridículo ou inútil, mas, se bem
treinados, os Blaziken contavam com essa habilidade de cantar nas horas certas
durante qualquer altura do dia.
E aquele toque
era o sinal para todos se irem deitar em suas camas.
Amanhã seria
mais um dia típico para a Guilda Ginkgo.
Não conseguia
dormir. Simplesmente não conseguia.
Sua mente era
inundada por sombras. Sombras que saiam das paredes ao seu redor e inundavam
seus sonhos. Sombras mais negras que a noite, quase como seres humanos no papel
de assassinos aterradores.
Acordou, e lá
fora o dia ainda era caracterizado por um intenso breu. Sentiu uma gota escorrer-lhe
da testa, então notou que suava, um suor frio, sem motivo aparente além de seus
pesadelos.
Uma coisa que
então ele se podia gabar era que não tinha medo de estar sozinho no escuro.
Muitas crianças pareciam ter um pavor colossal, acreditando em histórias tolas
como as de Mr. Mimes ou Hypnos assustadores que habitavam debaixo das camas.
Santiago olhou
para Piri-Piri, se existia alguém assustador que podia ir para debaixo da cama
era ele.
Sua crista
emanava um brilho que servia como uma espécie de luz de presença a todos. O
bicho dormia de barriga para cima, mais inchado que um Drifloon. Apesar dele
ter uma caminha de farrapos ao lado da mesinha cabeceira, o crocodilo idiota
dormia no meio do chão frio e duro, com parte da cauda debaixo da cama.
Quanto a todos
os seus pequenos irmãos e primos em seus sacos cama, eles eram uns anjinhos a
dormir, diferente da realidade que demonstravam quando acordados.
Santiago ergueu
o corpo, passando por todos a passos leves.
Tanto as
crianças como o crocodilo mal deram pela saída do humano – se bem que, se dessem,
não davam a mínima na mesma, até era melhor para eles. Ficariam com a carroça
toda para si.
Santiago
deixou o ar da madrugada embater-lhe na face de tal maneira que o frio
penetrou-lhe nos ossos. Todos dormiam, não avistou ninguém no campo do
acampamento além dos Pokémon adormecidos e de brasas fumegantes mal apagadas da
grande fogueira central.
O silêncio já
lhe era um amigo familiar, quando não fazia de babysitting, é claro.
Aproximou-se
das brasas, ainda sentia o cheiro delicioso dos assados da avó. Os paus
queimados ainda estavam quentes o bastante para cozinhar mais alguma refeição. Sentou-se
no tronco que servia como banco, com o olho na direção da carroça dos livros.
As colunas da
Cavidade Colunata estendiam suas sombras devido ao brilho das brasas,
contribuindo para a energia sinistra no ambiente. O vento soprou, e com ele mais
um estranho chamado em seus ouvidos.
Devia ir até
lá.
Não importava
se ainda era demasiado cedo, não importava se seria tarde demais. Sentia a
necessidade tremenda de desvendar o mistério do livro e a sua ligação com a
biblioteca da escola.
Depois de
longos minutos a refletir no silêncio, elevou o corpo, cedendo ao chamado
Caminhou com
cautela.
O Blaziken e o
Rillaboom da família eram os maiores protetores do local, e podiam acordar a
qualquer instante. Sua sorte, é que ele já conhecia todas as artimanhas do
acampamento, e, caso fosse apanhado durante os passos, podia inventar a desculpa
de que fora fazer suas necessidades à retrete, enganando-se na carroça devido
ao sono que sentia.
A certa
altura, reconheceu que o Blaziken tinha um olho aberto e o outro fechado, pois
sua respiração flamejante pesou-lhe na nuca.
Uma das poucas
coisas que aprendera com o professor Jacq, um dos professores da Academia Naranja
e Uva, na breve aula de biologia que tivera com ele, era que os Pokémon eram
mais sensíveis a energias de outro mundo do que os próprios humanos.
O Blaziken
voltou a fechar os dois olhos, fingindo não o ver, o que era um alívio, pois
era sinal que ele guardaria bem o seu segredo.
Aproximou-se
então da carroça.
A carroça não
era nada organizada por dentro, os livros estavam para lá espalhados como se
fossem montes de lixo intocados pelo tempo. Os documentos empilhados que
procuravam alguma organização eram sempre derrubados pelos solavancos que a carroça
dava nas viagens, quando ultrapassava curvas fechadas ou estradas em péssimas
condições.
Passou o olhar
pelos mais diversos títulos, a maior parte era livros de fantasia clássicos e
histórias para dormir – reconheceu até mesmo títulos que sua mãe lhe lia imenso
na infância, tanto até enjoar.
Por instantes,
recordou-se: Como reconhecer um livro velho qualquer, que nunca vira na vida
antes, no meio daquilo tudo?
Santiago
pestanejou, e voltou a penetrar a vista na escuridão, até notar um livro pesado
com adornos dourados, de capa dura perto da entrada da carroça.
Piscou os
olhos.
Estava limpo e
em muito bom estado, com uma tira branca que ia da capa até a lombada contendo
um código daqueles utilizados para documentação em arquivos de bibliotecas
normais.
Sua capa não
continha palavras claras além das palavras desconexas do código que o
classificava, entregando-lhe mais um ar de misticismo.
Só podia ser
este.
E o mais
estranho era que aquele exemplar era igualzinho ao que a professora tinha em
mãos na biblioteca.
Tudo aquilo
fora uma ocorrência muito estranha, e nada o podia negar.
Agarrou-o,
como quem pegasse emprestado um livro infantil, e correu para a sua carroça
antes que mais alguém desse por conta dele ali.
O ar frio que
sentia na noite parecia abrir-se, num género de celebração pelo roubo simples que
estava a cometer.
Um gesto que,
quer quisesse ou não, não conseguia controlar, era inevitável.
E no interior
da sua confortável carroça, abriu-o, usando somente a luz da crista de
Piri-Piri deitado a seu lado no chão, para se guiar no escuro.
Surpreendeu-se
por notar que, diferente da hora em que o lera na escola…
Agora todas as páginas encontravam-se em branco.
Não pregara
olho depois do ocorrido o restante da noite. Mas escondeu o livro na sua
mochila escolar e fingira que nada ocorrera.
A manhã no acampamento corria com naturalidade, e ninguém dera por falta do novo livro. Ainda cogitou deixar o livro no seu quarto, mas deixa-lho ali sem vigilância era arriscado e podia ser descoberto, por isso, escondeu-o na mochila, deixando a mochila bem longe das crianças, e pensaria numa solução melhor durante o caminho para a escola.
Todos se
dividiram e preparavam suas mercadorias para partirem até a vila e vender lá as
traquitanas que costumavam vender a preços baixos, enquanto Santiago despediu-se
de seus primos e irmãos pequenos e começava sua caminhada matutina comendo pão
com manteiga em direção à boca de Giratina… quer dizer… Em direção à escola.
Longe do
acampamento, a metade do caminho, seguido por Piri-Piri, Santiago pousou a
mochila no cimo de uma rocha.
Removeu o
livro.
Questionou-se
dos motivos da família ter visto neste algum valor. Analisou a textura branca
das páginas, o pelo da capa dura, procurou inutilmente qualquer marca que
pudesse ser alguma palavra, alguma revelação.
Mas não
encontrou nada.
De qualquer
das maneiras, sentia que devia continuar a procurar.
Em certa
altura, o Fuecoco passara por ele todo feliz com uma berry na boca, no preciso
momento que estava a virar uma das páginas. O brilho flamejante da sua crista
fez um reflexo bizarro na página.
Bingo.
Era como se as
palavras fossem escritas por tinta invisível, que tornavam-se visíveis em
contacto direto com luz. Só deslumbrara um pouco do efeito, milésimos segundos,
mas tinha a certeza que era assim que a coisa funcionava, que nem muitos filmes
e histórias que ouvira vindos da família sobre livros e documentos mágicos.
Era uma
hipótese, apesar de na noite anterior não ter notado o efeito. Mas devia
testar.
Só tinha um
pequeno problema agora.
Apanhar
Piri-Piri e o convencer a usar seu fogo para iluminar as páginas.
E isso podia
ser um espectáculo digno de se tornar um episódio de mais outro filme de Unova,
ou algum desenho animado que ele adorava assistir nos intervalos na televisão
da escola: Bip Bip Cramorant e o Thievul. Lembrava-se perfeitamente como o Cramorant
desenhava portas mágicas em rochas por onde entrava rapidamente depois, e o
Thievul partia sempre o focinho ao tentar penetrar na rocha impenetrável pois
não era detentor do mesmo tipo de magia.
E de alguma
maneira, Piri-Piri tinha a mesma capacidade que o Cramorant, fugindo-lhe sempre
por entre as pernas.
Só faltava um
encontro com a feroz Raika, a Pirata, para aquela situação ficar ainda melhor…
E não é que enquanto perseguia o crocodilo, lá estava o maldito Tauros negro bufando de ódio atrás de si?
Conseguiu
fugir da Gimmighoul, do Tauros de fogo e dos dois Sableyes lacaios da formiga
cinzenta, mas em contrapartida, Santiago chegara à escola de um jeito
lastimável.
Ele só não
sabia o que era pior, a professora mais zangada do que as discussões do seu pai
ou tio, ou o facto do Fuecoco não se ter aproximado e, pela primeira vez na
vida, não o ter seguido até a escola, de tão sentido que pareceu ficar desta
vez.
Preocupava-se
com seu primeiro Pokémon, apesar de todos os defeitos, era sua responsabilidade,
algo que assumia. O crocodilo fazia birra quando Santiago o procurava apanhar e
esconder do restante mundo, mas sempre voltava para ele no final.
Mas neste caso,
não voltou.
Talvez,
Santiago não o devia ter atraído com uma pedra de formato peculiar que achara
no meio do caminho, fingindo ser alguma berry suculenta. Santiago sempre o
atraia com comida a sério, mas neste caso, Piri-piri lascara um dente quando
tentara consumir a berry falsa. Não estava para dar, mas no meio daquela situação
apressada de vida ou morte, não tinha muitas mais opções senão enganá-lo.
Aquele simples
deslize do treinador foi o suficiente para ofender o seu Pokémon guloso.
Sentou-se na
sua mesa, espreitando constantemente a rua, procurando o crocodilo maldito,
despindo as calças para quebrar o tédio dos outros alunos, mas não deixara de
notar um olhar diferente na mulher lá na frente da sala, escrevendo no quadro
de ardósia com um semblante mais preocupado e quase não o repreendendo por
ficar de roupa interior.
Quando as
primeiras aulas do dia terminaram, Santiago deixou-se ficar, até ser o último
que permanecera na sala.
Não existia
mal nenhum em perguntar, ou em a abordar.
Podia ser que
soubesse alguma coisa. Devolver algo, algum objecto perdido, era um gesto muito
bonito de se fazer a alguém.
Ou então,
estaria prestes a cometer um crime horrível, mais horrível que levar brinquedos
para a escola ou desenhar dentro das aulas enquanto a professora estivesse a
olhar.
E porque não
um pouco de música?... A sorte da professora em não sofrer ali mesmo um belo
concerto foi que quando ele tentou ligar o rádio, apercebeu-se que estava sem
as pilhas. Talvez ficaram perdidas no chão da sua carroça quando as crianças
brincaram com o objeto na tarde passada.
De qualquer
das maneiras, não existia mal nenhum em tentar abordá-la.
Pegou num
papel, numa caneta, e começou a escrever um bilhetinho, que lhe mostrou depois,
ao se aproximar da porta da saída, quando ficaram os dois sozinhos, no final da
aula.
– Achas mesmo
que eu hoje andava estranha? – Dona Marta parecia surpresa com a preocupação
súbita do aluno, analisando as letras muito bem-feitas no papel.
Santiago
acenou com a cabeça, virou a folha, tirou outra, escrevendo novas palavras: Perdeu alguma coisa que guardasse aqui na
escola?
Ela encolheu
os ombros, com ar apanhado, ao ler as palavras.
– Fui roubada,
mas Ele vai ficar zangado se eu te contar
sem a permissão dele. Não posso conversar aqui – disse, num ar desconfiado.
Santiago não
soube bem o impulso que sentiu, mas removeu a mochila das costas. Abriu o fecho
e mostrou parte da capa do livro.
Os olhos da
mulher se expandiram, expandiram tanto de encanto que era impossível explicar
por palavras.
Ansiava
tocar-lhe, agarrar no livro, abraçar aquele objecto pesado que pensou ter
perdido para sempre.
Mas conteve
suas palavras e vontades, e pousou a mão no fecho da mochila, fazendo-o voltar
a esconder o objecto.
– Vem comigo.
Certificaram-se
que não existia ninguém dentro da escola em nenhum lugar, ou seja, ficaram até
bem tarde, mas Santiago não se preocupou se chegaria tarde à casa ou não, pois
isso era seu costume. Piri-Piri sabia o caminho até as carroças sozinho, caso
não se perdera em alguma utopia alimentar.
Santiago passou pelo corredor, seguindo a professora, na direção do caminho que ia dar até a tal escadaria velha em fase de restauração.
Em certa
altura, numa curva, Marta sumira.
Sem deixar
rasto.
Santiago parou,
mal dera pelo sumiço, e piscou os olhos várias vezes, a procurando, até notar,
no topo dos escombros que era o arranjo da escadaria nova, uma massa negra
disforme.
Estava ali um
ser roxo, de grandes mãos, quase translúcido, parte da sua cabeça era espinhosa.
A claridade fraca do local deixava tudo mais frio. Santiago estremeceu, já vira
várias coisas nas viagens, mas nunca antes vira um fantasma. Um a sério.
E para piorar,
reconheceu o olhar dele semelhante ao olhar da sua professora, como se ambas
entidades fossem a mesma figura.
Santiago
sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. A primeira coisa que se lembrou
fazer foi pousar o seu livro no chão em frente ao fantasma e recuar bem
devagarinho.
O fantasma
flutuou por cima da zona das obras.
Era um Haunter, de ar depressivo e movimentos vagarosos, que avançou até o livro, acariciando a superfície de capa dura para confirmar se era mesmo o seu tesouro.
E era.
Ali estava o
seu bem mais estimado.
Ao abrir, o
toque do Haunter fez cada uma das letras, símbolos e frases invisíveis das
páginas saltarem e cintilarem que nem milhões de estrelas. Era um brilho que incomodou
o próprio Pokémon, que se sacrificava em o aguentar.
As folhas em
branco transformaram-se em vozes e palavras. Brilharam tanto que Santiago jurou
ver um filme confuso à sua frente.
Sombras ao seu
redor, em todas as paredes, tornaram-se objetos, depois figuras animalescas,
depois objetos outra vez, depois notou um grupo de humanos famintos, perseguindo
uma menina pequena que antes estava sozinha, sentada numas escadas, fora de uma
porta de uma biblioteca na qual parecia estar privada de entrar.
Escrevia seu diário
tranquilamente, depois surgiu alguém com uma faca, apunhalando-a por trás.
Um corpo
inerte caiu no chão.
Um Haunter
ascendendo sobre ele…
E depois, uma
escadaria, uma escola, crianças, um livro mágico, um rei perverso, bestas
destruindo o mundo, crianças tornando-se adultas e um Haunter outra vez
sozinho.
Não sabia
exactamente o que tudo aquilo representava, mas tinha a certeza: o Pokémon
contara sua história através daquele objeto mágico.
Haunter fechou
o livro, aliviado pelo espectáculo de memórias, sombras, flashes e luzes
terminar.
Santiago sentiu
outra presença, olhou para trás, e viu sua professora ali, no fundo do
corredor.
– Obrigado por
o devolveres, é o nosso bem mais estimado. É tanto o meu Tesouro como é a minha Ruína.
Incrível, não achas?
Santiago
assentiu, ainda trémulo.
– Sei que
deves estar cheio de perguntas, mas uma das lições que te dou para toda a vida
é que nem sempre obtemos as respostas que queremos. Existe muita coisa no mundo
que não dá para explicar.
O Haunter
abriu a boca, num sorriso de agradecimento, enquanto abraçava mais o livro para
si. Santiago notara que aquele Haunter não tinha língua, um elemento icónico
daquela espécie de Pokémon, pelo pouco que sabia e ouvira falar dele.
– Às vezes deixo
ele possuir o meu corpo – a mulher sorriu, de forma sombria, de súbito. – Ele
vinga-se nas crianças, é por isso que, às vezes, eu pareço tão bruta e exigente
com coisinhas de nada.
Agora, naquele
tom, as coisas estavam a ficar estranhas.
Mesmo estranhas.
Santiago
recuou um passo.
Uma professora
que namorava com um fantasma e um Pokémon que se vingava em quem não tinha
culpa de nada por causa de uma aparente experiência ruim do seu passado.
Tudo fazia
sentido agora.
E nada fazia
sentido ao mesmo tempo.
– Queres
vingar-te de quem não te respeita também? De quem te julga? – Marta começou a
dizer – Daqueles que não acreditam em ti? Daqueles que pensam que és incapaz de
algo só por causa das tuas diferenças? Daqueles que te chamam nomes maldosos
mesmo não sabendo quem realmente és?
O Haunter
aproximou-se devagar acompanhado pela mulher.
Santiago
estremeceu, não devia ter entregado livro nenhum, estava prestes a ser possuído
também.
Mil e um
pensamentos lhe vieram à mente.
– Alguma vez
quiseste provar algo que se julga impossível? – Marta continuou.
Não podia
gritar. Não podia chamar ajuda, e mesmo se obtivesse a companhia de algum
Pokémon, não lhe conseguia dar ordens de combate e muito menos o chamar.
O fantasma
faminto dava voltas ao redor dele e da professora, numa fúria incontrolável.
Marta agarrou no rapaz, e apertou-lhe as bochechas, fazendo este abrir a boca
de dor.
Ele não
conseguia fugir, não podia fugir, estava encurralado.
– Nunca antes
vi alguém assim por aqui. E que tal dares aqui a tua amiga Haunter outra
oferenda, algo de que ele tenha mais em falta?
Com uma mão,
apertou tanto a boca do rapaz que suas unhas penetraram a pele da bochecha. Com
a outra, preparava um canivete que sacou sabe-se lá de onde.
Uma língua nova
não recuperava aos humanos a capacidade de comunicação se esse problema fosse
das cordas vocais, mas vai-se lá entender um Pokémon daquele calibre e uma
professora maluca.
De repente,
Santiago nota mais uma explosão de luz.
Fogo.
Chamas ao seu
redor consumindo as paredes. Muito brilho. E um Fuecoco gordo ao lado de um
enorme Tauros de fogo explodindo a parede e resgatá-lo a tempo e horas.
Toda a
sequência de acontecimentos tornou-se muito rápida depois da chegada do
crocodilo encarnado e da pirata maldita que veio em busca de seu saque.
Uma sequência
difícil até de acompanhar.
Como era comum
de muitos Pokémon fantasma, Haunters tinham medo de luz, por isso, este
exemplar não ousou aproximar-se enquanto desconhecia a fonte de tamanha
luminosidade – algo que o deixara mais enfurecido.
A crista néon
de Piri-Piri estava mais intensa que nunca, cintilando como um pequeno sol. Os
chifres enormes do Tauros eram domados por chamas escaldantes, e seus olhos
vermelhos também irradiavam calor.
A mulher ainda
era um problema, que rosnou em fúria.
Santiago
apontou o dedo, sabia que o livro era a solução para se soltar das mãos dela, e
o Fuecoco seguiu todas as ordens, como se lesse a mente do seu treinador.
Estou a ser um treinador Pokémon – pensou
Santiago, em milésimos segundos. – Que
emoção.
O Fuecoco soltou
uma golfada de chamas na direção do livro que existia entre eles, e isso fez a
mulher soltar um grito.
Santiago
aproveitou a distração e deu-lhe um soco na cara, libertando-se do seu abraço –
como sempre quis fazer algo assim a uma professora até em situações normais,
sentiu um prazer bizarro no calor do momento.
No meio da
confusão repentina, só se lembra da professora começar novamente aos gritos e
atirar-se para o meio das labaredas, quando vê o livro a ser reduzido a cinzas,
e pouco mais.
Também nota o vulto
de dois Sableyes lhe roubando a carteira e uma formiga na cabeça de um Tauros
enorme e muito furioso cavalgando ao seu lado.
Correu junto de Piri-Piri para longe, muito longe dali, fugindo o mais depressa possível das chamas a subir pelas paredes.
Caiu exausto
no chão, a bons metros longe da escola caída aos pedaços, no mesmo caminho que
percorria todos os dias até casa.
A terra dura,
as plantas rasteiras, o cheiro a fumo nas roupas… E a aragem do vento lhes
davam um alivio tranquilizador.
O Fuecoco
também soltava golfadas de ar, pobre crocodilo, gastara toda a energia
armazenada que tinha num instante. Já quanto a Raika, não existia quaisquer
sinais dela nem de seu grupo, mas o jovem sentiu-se grato por a ladra, mal por
mal, o ter ajudado… Ou seria mais um assalto dela à professora?
Santiago olhou
o seu crocodilo com um sorriso de agradecimento, e Piri-Piri soltou um
barulhinho doce. Aquele não era um Pokémon preguiçoso qualquer.
Era o seu. E
da mesma maneira que ele o ajudara, devia fazer algo por ele.
Ficaram os
dois de barriga para cima, observando o céu e o movimento das nuvens a passar, recuperando
o fôlego.
Mas a pausa
não podia ser longa.
Tinham que
continuar a fuga, antes que o fantasminha brincalhão e a professora os
alcançassem.
O jovem se
elevou, apesar de ainda sentir que podia ter continuado ali mais uns minutos,
era melhor continuarem a seguir rumo até casa.
O Fuecoco estava com dificuldades em se botar em pé devido ao seu peso, portanto, Santiago ajudou-o, lhe dando uma mãozinha.
Nesse momento o
humano apercebeu-se que Piri-Piri lhe tocara, sem morder ou queimar, pela
primeira vez na vida.
Só esperava
que isso não fosse temporário e sim uma amizade permanente.
De repente, os
dois sentem o som de cascos batendo na terra firme, e a poucos metros, avistam
uma fileira de carroças e Pokémon em movimento. Santiago e Piri-Piri se
entreolharam. Seu pai vinha na frente, guiando o velho Wyrdeer e conduzindo
toda a guilda em suas carroças elegantes.
Quando ficaram
lado a lado, Elliot lambeu a cara ensanguentada de Santiago, cheio de
preocupação, e o humano agarrou no seu focinho, o acariciando. Todas as
crianças que faziam parto dos seus deveres de babysitting também o circundaram.
– Tudo bem, filho?
Estás com péssimo ar – Questionou o seu pai, segurando na rédea do Wyrdeer –
Não vais ter mais aulas hoje?
O rapaz olhou
para cima, acenando-lhe afirmativamente.
Era certeza
que não iria voltar, nem queria, para aquele maldito lugar assim tão cedo, que
já devia estar a ser reduzido a pó por causa do incêndio que Piri-Piri causara
com o auxílio do Tauros raivoso que sempre o perseguia.
Só não sabia
bem como explicar aos pais o que tinha acontecido, nem como tratar das
consequências disso depois. Iria precisar de muito lápis, papel e caneta para
desenhar as explicações até o mínimo dos detalhes, e imenso tempo para pensar,
se desculpar, e pagar por todos os fardos.
– Que sorte,
iriamos precisamente à escola fazer uma surpresa te buscar! – comentou o pai,
acompanhado das gargalhadas das crianças. – É que ocorreu um imprevisto, e o
teu tio fez merda na vila quando discutiu com um jovem sobre o Haxorus dele se
tem Tera Type Steel ou não… Uma história engraçada… Fomos expulsos de Porto
Marinada.
Santiago
respirou fundo, e sorriu, seu típico sorriso com covinhas, ao ouvir que seus
familiares tinham mais uma historinha chata para contar na beira da fogueira na
próxima paragem.
Ambos,
Santiago e Piri-Piri, subiram a carruagem puxada por Elliot, e sentaram-se na
frente, junto do pai, no centro dos miúdos.
Uma berry azulada
foi entregue tanto a Santiago como ao Fuecoco, para se deliciarem, mas Santiago
deu metade da sua a Piri-Piri.
Ele merecia
mais do que ele no momento, pelo ato salvador.
– Parece que
vocês dois estão a se dar bem – comentou o pai, com alegria.
Passaram pela
zona da escola.
O rapaz
cuspiu-se todo quando notou que o edifício tinha desaparecido completamente.
Nem uma cinza
sequer no chão coberto de ervas daninhas. Estava tudo limpo e verdejante, como
se Giratina tivesse lambido diretamente no prato depois da refeição adorada.
Chamou a
atenção do pai, e apontou naquela direção.
Para onde ele
ia então todos os últimos dias, e permanecia de manhã até a noite, se era tudo
um sonho?
Sabia que
Pokémon fantasmas tinham capacidade de criar ilusões. Será que sofrera algum
coma esquisito sem se aperceber?
– Aquilo ali sempre
foi assim, filho. Não á nada aqui – respondeu, sem perceber bem o que o filho
queria dizer.
Santiago olhou
para Piri-Piri. Que agora dormia tranquilamente, completamente alheio ao sumiço
total do edifício pelo qual incendiaram e se puseram em fuga. O homem olhou
para o céu, lembrando-se de algo.
Hã, histórias,
como ele adorava contá-las.
– Os locais dizem
que ali, em tempos, existiu uma escola assombrada pela alma de uma professora
que não conseguia ler nem escrever, e que lhe cortaram a língua quando ela era
criança, porque ela acreditava na existência dos Tesouros da Ruína e defendia o
regresso deles ao mundo… Mas o edifício já não existe mais há anos e deve ser
mentira, impossível uma mulher assim ser professora, que tolice, mais tolice
que um Hitmonlee sem uma perna, sem falar que ela sofreu por causa da
veracidade de algum conto infantil idiota – comentou o pai.
Aquelas
palavras fizeram o rapaz sentir um calafrio, uma breve sensação de
indisposição, como se o seu pai estivesse errado no que dizia.
Porque ninguém
acreditaria em algo que ele teve a certeza que viu e viveu.
Lembrou-se das
imagens que dançaram nas paredes do corredor da escadaria.
Então era
aquilo que cada uma delas significava.
E a mulher
cumprira o papel de professora exigente até no pós-vida.
– Ouve filho,
estive a pensar, será que não gostarias de voltar para a Academia Naranja e Uva?
Academia Naranja e Uva?...
Era uma das
poucas experiências que ele não se importaria em dar uma segunda oportunidade,
talvez por não ter usufruído do sítio na sua totalidade quando estivera lá pela
primeira vez, pois não conhecera absolutamente nada no pouquíssimo tempo que teve
por lá. Um dia e metade de outro, nem sequer conheceu a maioria dos professores
e muito menos todo o recinto.
– Acho que
esta vida de ida e volta não está a ser boa para ti, querido, e não existe
melhor escola nesta região – comentou a mãe, uma voz feminina vinda do interior
da carroça. – Jovens da tua idade exploram o mundo, criam amigos, procuram seus
objectivos, e fazem imensas coisas loucas, namoram, etc. Já começam a perseguir
os seus sonhos. Aqui em Paldea existe tanta possibilidade, é um mundo tão livre
para explorar. Por isso, talvez está na altura de te desprenderes um pouco de
nós.
O grupo de
crianças entrou num alvoroço.
– E nós vamos
contigo, é claro! – exclamou uma delas.
– Não vão não.
– salientou o pai, com um tom de voz bem firme.
Santiago
respirou fundo, deixando seus cabelos serem movimentados pela brisa enquanto
pai e crianças discutiam entre si toda aquela vasta possibilidade.
Elliot manteve
o ritmo calmo, e a viagem lembrou em muito todas as idas e voltas pacíficas pelos
campos que vivenciara nas últimas semanas a pé até a escola aparentemente inexistente.
Pelo menos…
Antes de ser atacado por alguma Gimmighoul maluca ou pelo próprio Piri-Piri.
Lembrou-se do
seu desejo de como gostava de sentir aquele sentimento para sempre.
Mas aquele
vento tinha algo diferente.
Algo mais
especial.
A sensação de
mudança.
Não soube bem
o que o moveu a fazer isso, mas olhou para trás, instintivamente. E bem lá no
fundo, atrás do emaranhado de fileiras de carroças da guilda, estavam eles os
dois.
A professora e
o Haunter, posicionados, bem no centro do lugar da escola desaparecida, lhes
acenando com animação, até desaparecerem no horizonte.
Alguma vez quiseste provar algo que se julga
impossível? – Fora o que o vento sussurrou em seus ouvidos.
Santiago
sorriu, lembrando-se das palavras de Marta, e nunca se esqueceria também que
aquela professora doida quase arrancara sua língua fora para substituir a dela.
E colocou-se
em pé.
Despediu as
calças.
E esticou a
mão para cima, com o rádio no volume máximo, rádio este que, milagrosamente, já
tinha as pilhas e já funcionava correctamente.
Tinha que
aproveitar todo aquele momento e celebrar, ao sair da sua caixa.
(…)
EU GOSTO DE MAMAR NOS PEITOS DA GOGOAT.
(…)
O que é que procuras?
Qual é o tesouro que anseias descobrir?
Espreguiçou-se
na cadeira, bocejou.
Entre o
sussurrar da respiração atenciosa dos alunos e o maldito giz do professor de
cabelo emaranhado escrevendo palavras e mais palavras no velho quadro de
ardósia, só se interessava no tique-taque que o seu dedo fazia no tampo da
mesa, acompanhando o ritmo monótono do relógio da sala, ansioso por o que ai
vinha.
Qual é o teu objectivo?
Porque estás aqui hoje?
Aquele
professor da Academia analisava a fundo as apresentações de slides de cada um
dos alunos – um trabalho que lhes havia proposto horas antes. Entre tantas apresentações
com histórias inspiradoras de vida.
Santiago
esperava que a sua também fosse um sucesso.
O professor marcou
no quadro os valores, em frente do nome de cada um dos seus alunos, e Santiago
procurou tomar total atenção no seu, mesmo sabendo que nunca fora um dos
melhores contadores de histórias.
Santiago: 6/10
Nada mal!
Era um resultado
bem positivo, acima da média.
– Rica
criatividade – Comentou o professor, de maneira confiante, na direção de
Santiago – Não acredito que um episódio destes tenha despertado em ti o desejo
em seres um treinador Pokémon! Tens demasiadas pontas soltas no enredo, mas
aprecio mesmo o esforço, Santiago! Acho que devias escrever um livro de
fantasia! Tens pensamentos perfeitos! E escreves maravilhosamente.
Os alunos
todos soltaram uma gargalhada, não de gozo, mas cheia de boa disposição. Muitos
davam a impressão que não acreditaram na historinha, de maneira alguma, mas
Santiago, apesar do pensamento contraditório, sabia que isso não era verdade.
Se ele pelo
menos pudesse provar que a mulher-Haunter era real…
Tinha a
cicatriz na cara e tudo, mas nem isso era o suficiente… Seu pai dizia que era
uma marca de nascença.
Santiago
respirou fundo, e olhou para a janela. Mesagoza era uma cidade encantadora.
Um a um, um
grupo de crianças fantasiadas surgiu no pátio principal, atravessando-o numa
correria. Cada fatiota que este grupo portava era bem rica em imensos detalhes.
Uma delas parecia um peixe de fogo, seguido de um enorme veado com um vaso
enorme na cabeça, um caracol feito de tábuas de madeira e folhas caídas de
árvores e um grande tigre dentes de sabre branco, cujos dentes se caracterizavam
por serem um par de espadas negras e cortantes.
Pareciam
brincar por ali sem preocupações, fingindo ser Pokémon perigosos com suas
fatiotas, envoltos em sonhos e expectativas.
De súbito, um
pequeno ser encarnado e bípede moveu-se lá fora, saindo detrás de uma caixa do
correio no pátio principal. Era bem rechonchudo, sua face mais branca que o
restante do corpo encarnado, se assemelhando em muito a um crocodilo cuja
cabeça parecia uma maçã cortada pela metade.
O ser abriu
sua grande boca, despreocupado e sofrendo de uma enorme vaga de monotonia.
Deitou-se
mesmo ali, a cochilar.
Santiago
respirou fundo, olhou para seu braço esquerdo, cheio de marcas e cicatrizes de
queimaduras.
A única coisa
que contrariava tudo aquilo era Piri-Piri… O,
mesmo, pequeno, Giratina, de, sempre!
Pediu licença
educadamente ao professor para ir lá fora, explicando o ocorrido: tentar
colocar seu Pokémon rebelde dentro da Pokébola, obrigando-o a fazer algo que o
bicho odiava pelo próprio bem dele, além de ver se as crianças que ele
supervisionava precisassem de alguma coisa ou se estavam bem.
E um filme de
Unova. Lá foi ele vivenciar outra vez…
O professor
sorriu, vendo o seu aluno sair pela porta, enquanto escrevia no quadro as
ultimas letras de uma frase.
Uma das mais
famosas frases da academia.
E que a caça ao tesouro comece!