Posted by : Shiny Reshiram 22 de nov. de 2023



Parte 2

O crepitar da lenha na fogueira entregava o clima perfeito a todas as batidas que o Rillaboom realizava em seu tambor. O som monótono saia a cada palavra que finalizava as histórias contadas pelos presentes.


Era uma tradição familiar da guilda em cada noite, no final do jantar, juntarem-se ao redor da grande fogueira e cada um dos integrantes porem-se a contar ou a ouvir histórias.


Umas eram inventadas, outras sobre suas vivências naquele dia, algumas tão antigas que todos já estavam fartos e cheios de as ouvirem sempre, como era o caso das histórias do tio de Santiago.


Santiago era sempre o único que não dizia nada, e, por isso, sentava-se afastado, olhando para as chamas dançado à distância, com as costas apoiadas no velho Wyrdeer.


E ainda cuidando e supervisionando as crianças, é claro.


Aquele bando irrequieto estava deitado ao seu redor, alguns com as cabeças deitadas em seu colo, outros mordendo-se ou brigando e outros puxando pelas cobertas que usavam de aconchego.


Santiago tentava os silenciar para não incomodarem mais, mas era tarefa difícil.


– Santi! Vai falar sobre a Raika! – pediu uma das meninas.


– Raika? Raika o tanas! Raika está fora de moda. Vai contar sobre os Tesouros da Ruína!


– Nada disso, ele vai falar sobre as suas aventuras com Raika, a Pirata!


– NÃO! Quero os Tesouros! – resmungou mais outro.


Santiago entregou-lhes um sorriso com covinhas, um tanto triste.


Por muito que as crianças que o rodeassem insistissem e o puxassem pelo braço, ele não iria para a frente do circulo fazer tal coisa.


Por um lado, dava agradecimento a todo santo corpo de Arceus por não o fazer, sua vida não era nada de interessante e ele tinha certeza que contar histórias era algo ao qual não saberia fazer nunca em nenhum momento da sua vida.


Ansioso, esperou alguém mencionar a caravana dos livros, mas, tirando outra discussão entre seu tio e seu pai, que repetiam sempre os mesmos argumentos num círculo quase infindável, ninguém mencionara uma palavra sequer sobre estes.


O Blaziken do seu pai estava no topo da lona de uma das carruagens mais próximas, e deu uma cantada. Poucos sabiam, porque pensavam que era ridículo ou inútil, mas, se bem treinados, os Blaziken contavam com essa habilidade de cantar nas horas certas durante qualquer altura do dia.


E aquele toque era o sinal para todos se irem deitar em suas camas.


Amanhã seria mais um dia típico para a Guilda Ginkgo.



Não conseguia dormir. Simplesmente não conseguia.


Sua mente era inundada por sombras. Sombras que saiam das paredes ao seu redor e inundavam seus sonhos. Sombras mais negras que a noite, quase como seres humanos no papel de assassinos aterradores.


Acordou, e lá fora o dia ainda era caracterizado por um intenso breu. Sentiu uma gota escorrer-lhe da testa, então notou que suava, um suor frio, sem motivo aparente além de seus pesadelos.


Uma coisa que então ele se podia gabar era que não tinha medo de estar sozinho no escuro. Muitas crianças pareciam ter um pavor colossal, acreditando em histórias tolas como as de Mr. Mimes ou Hypnos assustadores que habitavam debaixo das camas.


Santiago olhou para Piri-Piri, se existia alguém assustador que podia ir para debaixo da cama era ele.


Sua crista emanava um brilho que servia como uma espécie de luz de presença a todos. O bicho dormia de barriga para cima, mais inchado que um Drifloon. Apesar dele ter uma caminha de farrapos ao lado da mesinha cabeceira, o crocodilo idiota dormia no meio do chão frio e duro, com parte da cauda debaixo da cama.


Quanto a todos os seus pequenos irmãos e primos em seus sacos cama, eles eram uns anjinhos a dormir, diferente da realidade que demonstravam quando acordados.


Santiago ergueu o corpo, passando por todos a passos leves.


Tanto as crianças como o crocodilo mal deram pela saída do humano – se bem que, se dessem, não davam a mínima na mesma, até era melhor para eles. Ficariam com a carroça toda para si.


Santiago deixou o ar da madrugada embater-lhe na face de tal maneira que o frio penetrou-lhe nos ossos. Todos dormiam, não avistou ninguém no campo do acampamento além dos Pokémon adormecidos e de brasas fumegantes mal apagadas da grande fogueira central.


O silêncio já lhe era um amigo familiar, quando não fazia de babysitting, é claro.


Aproximou-se das brasas, ainda sentia o cheiro delicioso dos assados da avó. Os paus queimados ainda estavam quentes o bastante para cozinhar mais alguma refeição. Sentou-se no tronco que servia como banco, com o olho na direção da carroça dos livros.


As colunas da Cavidade Colunata estendiam suas sombras devido ao brilho das brasas, contribuindo para a energia sinistra no ambiente. O vento soprou, e com ele mais um estranho chamado em seus ouvidos.


Devia ir até lá.


Não importava se ainda era demasiado cedo, não importava se seria tarde demais. Sentia a necessidade tremenda de desvendar o mistério do livro e a sua ligação com a biblioteca da escola.


Depois de longos minutos a refletir no silêncio, elevou o corpo, cedendo ao chamado


Caminhou com cautela.


O Blaziken e o Rillaboom da família eram os maiores protetores do local, e podiam acordar a qualquer instante. Sua sorte, é que ele já conhecia todas as artimanhas do acampamento, e, caso fosse apanhado durante os passos, podia inventar a desculpa de que fora fazer suas necessidades à retrete, enganando-se na carroça devido ao sono que sentia.


A certa altura, reconheceu que o Blaziken tinha um olho aberto e o outro fechado, pois sua respiração flamejante pesou-lhe na nuca.


Uma das poucas coisas que aprendera com o professor Jacq, um dos professores da Academia Naranja e Uva, na breve aula de biologia que tivera com ele, era que os Pokémon eram mais sensíveis a energias de outro mundo do que os próprios humanos.


O Blaziken voltou a fechar os dois olhos, fingindo não o ver, o que era um alívio, pois era sinal que ele guardaria bem o seu segredo.


Aproximou-se então da carroça.


A carroça não era nada organizada por dentro, os livros estavam para lá espalhados como se fossem montes de lixo intocados pelo tempo. Os documentos empilhados que procuravam alguma organização eram sempre derrubados pelos solavancos que a carroça dava nas viagens, quando ultrapassava curvas fechadas ou estradas em péssimas condições.


Passou o olhar pelos mais diversos títulos, a maior parte era livros de fantasia clássicos e histórias para dormir – reconheceu até mesmo títulos que sua mãe lhe lia imenso na infância, tanto até enjoar.


Por instantes, recordou-se: Como reconhecer um livro velho qualquer, que nunca vira na vida antes, no meio daquilo tudo?


Santiago pestanejou, e voltou a penetrar a vista na escuridão, até notar um livro pesado com adornos dourados, de capa dura perto da entrada da carroça.


Piscou os olhos.


Estava limpo e em muito bom estado, com uma tira branca que ia da capa até a lombada contendo um código daqueles utilizados para documentação em arquivos de bibliotecas normais.


Sua capa não continha palavras claras além das palavras desconexas do código que o classificava, entregando-lhe mais um ar de misticismo.


Só podia ser este.


E o mais estranho era que aquele exemplar era igualzinho ao que a professora tinha em mãos na biblioteca.


Tudo aquilo fora uma ocorrência muito estranha, e nada o podia negar.


Agarrou-o, como quem pegasse emprestado um livro infantil, e correu para a sua carroça antes que mais alguém desse por conta dele ali.


O ar frio que sentia na noite parecia abrir-se, num género de celebração pelo roubo simples que estava a cometer.


Um gesto que, quer quisesse ou não, não conseguia controlar, era inevitável.


E no interior da sua confortável carroça, abriu-o, usando somente a luz da crista de Piri-Piri deitado a seu lado no chão, para se guiar no escuro.


Surpreendeu-se por notar que, diferente da hora em que o lera na escola…


Agora todas as páginas encontravam-se em branco.



Não pregara olho depois do ocorrido o restante da noite. Mas escondeu o livro na sua mochila escolar e fingira que nada ocorrera.


A manhã no acampamento corria com naturalidade, e ninguém dera por falta do novo livro. Ainda cogitou deixar o livro no seu quarto, mas deixa-lho ali sem vigilância era arriscado e podia ser descoberto, por isso, escondeu-o na mochila, deixando a mochila bem longe das crianças, e pensaria numa solução melhor durante o caminho para a escola.


Todos se dividiram e preparavam suas mercadorias para partirem até a vila e vender lá as traquitanas que costumavam vender a preços baixos, enquanto Santiago despediu-se de seus primos e irmãos pequenos e começava sua caminhada matutina comendo pão com manteiga em direção à boca de Giratina… quer dizer… Em direção à escola.


Longe do acampamento, a metade do caminho, seguido por Piri-Piri, Santiago pousou a mochila no cimo de uma rocha.


Removeu o livro.


Questionou-se dos motivos da família ter visto neste algum valor. Analisou a textura branca das páginas, o pelo da capa dura, procurou inutilmente qualquer marca que pudesse ser alguma palavra, alguma revelação.


Mas não encontrou nada.


De qualquer das maneiras, sentia que devia continuar a procurar.


Em certa altura, o Fuecoco passara por ele todo feliz com uma berry na boca, no preciso momento que estava a virar uma das páginas. O brilho flamejante da sua crista fez um reflexo bizarro na página.


Bingo.


Era como se as palavras fossem escritas por tinta invisível, que tornavam-se visíveis em contacto direto com luz. Só deslumbrara um pouco do efeito, milésimos segundos, mas tinha a certeza que era assim que a coisa funcionava, que nem muitos filmes e histórias que ouvira vindos da família sobre livros e documentos mágicos.


Era uma hipótese, apesar de na noite anterior não ter notado o efeito. Mas devia testar.


Só tinha um pequeno problema agora.


Apanhar Piri-Piri e o convencer a usar seu fogo para iluminar as páginas.


E isso podia ser um espectáculo digno de se tornar um episódio de mais outro filme de Unova, ou algum desenho animado que ele adorava assistir nos intervalos na televisão da escola: Bip Bip Cramorant e o Thievul. Lembrava-se perfeitamente como o Cramorant desenhava portas mágicas em rochas por onde entrava rapidamente depois, e o Thievul partia sempre o focinho ao tentar penetrar na rocha impenetrável pois não era detentor do mesmo tipo de magia.


E de alguma maneira, Piri-Piri tinha a mesma capacidade que o Cramorant, fugindo-lhe sempre por entre as pernas.


Só faltava um encontro com a feroz Raika, a Pirata, para aquela situação ficar ainda melhor…


E não é que enquanto perseguia o crocodilo, lá estava o maldito Tauros negro bufando de ódio atrás de si?



Conseguiu fugir da Gimmighoul, do Tauros de fogo e dos dois Sableyes lacaios da formiga cinzenta, mas em contrapartida, Santiago chegara à escola de um jeito lastimável.


Ele só não sabia o que era pior, a professora mais zangada do que as discussões do seu pai ou tio, ou o facto do Fuecoco não se ter aproximado e, pela primeira vez na vida, não o ter seguido até a escola, de tão sentido que pareceu ficar desta vez.


Preocupava-se com seu primeiro Pokémon, apesar de todos os defeitos, era sua responsabilidade, algo que assumia. O crocodilo fazia birra quando Santiago o procurava apanhar e esconder do restante mundo, mas sempre voltava para ele no final.


Mas neste caso, não voltou.


Talvez, Santiago não o devia ter atraído com uma pedra de formato peculiar que achara no meio do caminho, fingindo ser alguma berry suculenta. Santiago sempre o atraia com comida a sério, mas neste caso, Piri-piri lascara um dente quando tentara consumir a berry falsa. Não estava para dar, mas no meio daquela situação apressada de vida ou morte, não tinha muitas mais opções senão enganá-lo.


Aquele simples deslize do treinador foi o suficiente para ofender o seu Pokémon guloso.


Sentou-se na sua mesa, espreitando constantemente a rua, procurando o crocodilo maldito, despindo as calças para quebrar o tédio dos outros alunos, mas não deixara de notar um olhar diferente na mulher lá na frente da sala, escrevendo no quadro de ardósia com um semblante mais preocupado e quase não o repreendendo por ficar de roupa interior.


Quando as primeiras aulas do dia terminaram, Santiago deixou-se ficar, até ser o último que permanecera na sala.


Não existia mal nenhum em perguntar, ou em a abordar.


Podia ser que soubesse alguma coisa. Devolver algo, algum objecto perdido, era um gesto muito bonito de se fazer a alguém.


Ou então, estaria prestes a cometer um crime horrível, mais horrível que levar brinquedos para a escola ou desenhar dentro das aulas enquanto a professora estivesse a olhar.


E porque não um pouco de música?... A sorte da professora em não sofrer ali mesmo um belo concerto foi que quando ele tentou ligar o rádio, apercebeu-se que estava sem as pilhas. Talvez ficaram perdidas no chão da sua carroça quando as crianças brincaram com o objeto na tarde passada.


De qualquer das maneiras, não existia mal nenhum em tentar abordá-la.


Pegou num papel, numa caneta, e começou a escrever um bilhetinho, que lhe mostrou depois, ao se aproximar da porta da saída, quando ficaram os dois sozinhos, no final da aula.


– Achas mesmo que eu hoje andava estranha? – Dona Marta parecia surpresa com a preocupação súbita do aluno, analisando as letras muito bem-feitas no papel.


Santiago acenou com a cabeça, virou a folha, tirou outra, escrevendo novas palavras: Perdeu alguma coisa que guardasse aqui na escola?


Ela encolheu os ombros, com ar apanhado, ao ler as palavras.


– Fui roubada, mas Ele vai ficar zangado se eu te contar sem a permissão dele. Não posso conversar aqui – disse, num ar desconfiado.


Santiago não soube bem o impulso que sentiu, mas removeu a mochila das costas. Abriu o fecho e mostrou parte da capa do livro.


Os olhos da mulher se expandiram, expandiram tanto de encanto que era impossível explicar por palavras.


Ansiava tocar-lhe, agarrar no livro, abraçar aquele objecto pesado que pensou ter perdido para sempre.


Mas conteve suas palavras e vontades, e pousou a mão no fecho da mochila, fazendo-o voltar a esconder o objecto.


– Vem comigo.


Certificaram-se que não existia ninguém dentro da escola em nenhum lugar, ou seja, ficaram até bem tarde, mas Santiago não se preocupou se chegaria tarde à casa ou não, pois isso era seu costume. Piri-Piri sabia o caminho até as carroças sozinho, caso não se perdera em alguma utopia alimentar.


Santiago passou pelo corredor, seguindo a professora, na direção do caminho que ia dar até a tal escadaria velha em fase de restauração.


Em certa altura, numa curva, Marta sumira.


Sem deixar rasto.


Santiago parou, mal dera pelo sumiço, e piscou os olhos várias vezes, a procurando, até notar, no topo dos escombros que era o arranjo da escadaria nova, uma massa negra disforme.


Estava ali um ser roxo, de grandes mãos, quase translúcido, parte da sua cabeça era espinhosa. A claridade fraca do local deixava tudo mais frio. Santiago estremeceu, já vira várias coisas nas viagens, mas nunca antes vira um fantasma. Um a sério.


E para piorar, reconheceu o olhar dele semelhante ao olhar da sua professora, como se ambas entidades fossem a mesma figura.


Santiago sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. A primeira coisa que se lembrou fazer foi pousar o seu livro no chão em frente ao fantasma e recuar bem devagarinho.


O fantasma flutuou por cima da zona das obras.


Era um Haunter, de ar depressivo e movimentos vagarosos, que avançou até o livro, acariciando a superfície de capa dura para confirmar se era mesmo o seu tesouro.



E era.


Ali estava o seu bem mais estimado.


Ao abrir, o toque do Haunter fez cada uma das letras, símbolos e frases invisíveis das páginas saltarem e cintilarem que nem milhões de estrelas. Era um brilho que incomodou o próprio Pokémon, que se sacrificava em o aguentar.


As folhas em branco transformaram-se em vozes e palavras. Brilharam tanto que Santiago jurou ver um filme confuso à sua frente.


Sombras ao seu redor, em todas as paredes, tornaram-se objetos, depois figuras animalescas, depois objetos outra vez, depois notou um grupo de humanos famintos, perseguindo uma menina pequena que antes estava sozinha, sentada numas escadas, fora de uma porta de uma biblioteca na qual parecia estar privada de entrar.


Escrevia seu diário tranquilamente, depois surgiu alguém com uma faca, apunhalando-a por trás.


Um corpo inerte caiu no chão.


Um Haunter ascendendo sobre ele…


E depois, uma escadaria, uma escola, crianças, um livro mágico, um rei perverso, bestas destruindo o mundo, crianças tornando-se adultas e um Haunter outra vez sozinho.


Não sabia exactamente o que tudo aquilo representava, mas tinha a certeza: o Pokémon contara sua história através daquele objeto mágico.


Haunter fechou o livro, aliviado pelo espectáculo de memórias, sombras, flashes e luzes terminar.


Santiago sentiu outra presença, olhou para trás, e viu sua professora ali, no fundo do corredor.


– Obrigado por o devolveres, é o nosso bem mais estimado. É tanto o meu Tesouro como é a minha Ruína. Incrível, não achas?


Santiago assentiu, ainda trémulo.


– Sei que deves estar cheio de perguntas, mas uma das lições que te dou para toda a vida é que nem sempre obtemos as respostas que queremos. Existe muita coisa no mundo que não dá para explicar.


O Haunter abriu a boca, num sorriso de agradecimento, enquanto abraçava mais o livro para si. Santiago notara que aquele Haunter não tinha língua, um elemento icónico daquela espécie de Pokémon, pelo pouco que sabia e ouvira falar dele.


– Às vezes deixo ele possuir o meu corpo – a mulher sorriu, de forma sombria, de súbito. – Ele vinga-se nas crianças, é por isso que, às vezes, eu pareço tão bruta e exigente com coisinhas de nada.


Agora, naquele tom, as coisas estavam a ficar estranhas.


Mesmo estranhas.


Santiago recuou um passo.


Uma professora que namorava com um fantasma e um Pokémon que se vingava em quem não tinha culpa de nada por causa de uma aparente experiência ruim do seu passado.


Tudo fazia sentido agora.


E nada fazia sentido ao mesmo tempo.


– Queres vingar-te de quem não te respeita também? De quem te julga? – Marta começou a dizer – Daqueles que não acreditam em ti? Daqueles que pensam que és incapaz de algo só por causa das tuas diferenças? Daqueles que te chamam nomes maldosos mesmo não sabendo quem realmente és?


O Haunter aproximou-se devagar acompanhado pela mulher.


Santiago estremeceu, não devia ter entregado livro nenhum, estava prestes a ser possuído também.


Mil e um pensamentos lhe vieram à mente.


– Alguma vez quiseste provar algo que se julga impossível? – Marta continuou.


Não podia gritar. Não podia chamar ajuda, e mesmo se obtivesse a companhia de algum Pokémon, não lhe conseguia dar ordens de combate e muito menos o chamar.


O fantasma faminto dava voltas ao redor dele e da professora, numa fúria incontrolável. Marta agarrou no rapaz, e apertou-lhe as bochechas, fazendo este abrir a boca de dor.


Ele não conseguia fugir, não podia fugir, estava encurralado.


– Nunca antes vi alguém assim por aqui. E que tal dares aqui a tua amiga Haunter outra oferenda, algo de que ele tenha mais em falta?


Com uma mão, apertou tanto a boca do rapaz que suas unhas penetraram a pele da bochecha. Com a outra, preparava um canivete que sacou sabe-se lá de onde.


Uma língua nova não recuperava aos humanos a capacidade de comunicação se esse problema fosse das cordas vocais, mas vai-se lá entender um Pokémon daquele calibre e uma professora maluca.


De repente, Santiago nota mais uma explosão de luz.


Fogo.


Chamas ao seu redor consumindo as paredes. Muito brilho. E um Fuecoco gordo ao lado de um enorme Tauros de fogo explodindo a parede e resgatá-lo a tempo e horas.


Toda a sequência de acontecimentos tornou-se muito rápida depois da chegada do crocodilo encarnado e da pirata maldita que veio em busca de seu saque.


Uma sequência difícil até de acompanhar.


Como era comum de muitos Pokémon fantasma, Haunters tinham medo de luz, por isso, este exemplar não ousou aproximar-se enquanto desconhecia a fonte de tamanha luminosidade – algo que o deixara mais enfurecido.


A crista néon de Piri-Piri estava mais intensa que nunca, cintilando como um pequeno sol. Os chifres enormes do Tauros eram domados por chamas escaldantes, e seus olhos vermelhos também irradiavam calor.


A mulher ainda era um problema, que rosnou em fúria.


Santiago apontou o dedo, sabia que o livro era a solução para se soltar das mãos dela, e o Fuecoco seguiu todas as ordens, como se lesse a mente do seu treinador.


Estou a ser um treinador Pokémon – pensou Santiago, em milésimos segundos. – Que emoção.


O Fuecoco soltou uma golfada de chamas na direção do livro que existia entre eles, e isso fez a mulher soltar um grito.


Santiago aproveitou a distração e deu-lhe um soco na cara, libertando-se do seu abraço – como sempre quis fazer algo assim a uma professora até em situações normais, sentiu um prazer bizarro no calor do momento.


No meio da confusão repentina, só se lembra da professora começar novamente aos gritos e atirar-se para o meio das labaredas, quando vê o livro a ser reduzido a cinzas, e pouco mais.


Também nota o vulto de dois Sableyes lhe roubando a carteira e uma formiga na cabeça de um Tauros enorme e muito furioso cavalgando ao seu lado.


Correu junto de Piri-Piri para longe, muito longe dali, fugindo o mais depressa possível das chamas a subir pelas paredes.



Caiu exausto no chão, a bons metros longe da escola caída aos pedaços, no mesmo caminho que percorria todos os dias até casa.


A terra dura, as plantas rasteiras, o cheiro a fumo nas roupas… E a aragem do vento lhes davam um alivio tranquilizador.


O Fuecoco também soltava golfadas de ar, pobre crocodilo, gastara toda a energia armazenada que tinha num instante. Já quanto a Raika, não existia quaisquer sinais dela nem de seu grupo, mas o jovem sentiu-se grato por a ladra, mal por mal, o ter ajudado… Ou seria mais um assalto dela à professora?


Santiago olhou o seu crocodilo com um sorriso de agradecimento, e Piri-Piri soltou um barulhinho doce. Aquele não era um Pokémon preguiçoso qualquer.


Era o seu. E da mesma maneira que ele o ajudara, devia fazer algo por ele.


Ficaram os dois de barriga para cima, observando o céu e o movimento das nuvens a passar, recuperando o fôlego.


Mas a pausa não podia ser longa.


Tinham que continuar a fuga, antes que o fantasminha brincalhão e a professora os alcançassem.


O jovem se elevou, apesar de ainda sentir que podia ter continuado ali mais uns minutos, era melhor continuarem a seguir rumo até casa.


O Fuecoco estava com dificuldades em se botar em pé devido ao seu peso, portanto, Santiago ajudou-o, lhe dando uma mãozinha.



Nesse momento o humano apercebeu-se que Piri-Piri lhe tocara, sem morder ou queimar, pela primeira vez na vida.


Só esperava que isso não fosse temporário e sim uma amizade permanente.


De repente, os dois sentem o som de cascos batendo na terra firme, e a poucos metros, avistam uma fileira de carroças e Pokémon em movimento. Santiago e Piri-Piri se entreolharam. Seu pai vinha na frente, guiando o velho Wyrdeer e conduzindo toda a guilda em suas carroças elegantes.


Quando ficaram lado a lado, Elliot lambeu a cara ensanguentada de Santiago, cheio de preocupação, e o humano agarrou no seu focinho, o acariciando. Todas as crianças que faziam parto dos seus deveres de babysitting também o circundaram.


– Tudo bem, filho? Estás com péssimo ar – Questionou o seu pai, segurando na rédea do Wyrdeer – Não vais ter mais aulas hoje?


O rapaz olhou para cima, acenando-lhe afirmativamente.


Era certeza que não iria voltar, nem queria, para aquele maldito lugar assim tão cedo, que já devia estar a ser reduzido a pó por causa do incêndio que Piri-Piri causara com o auxílio do Tauros raivoso que sempre o perseguia.


Só não sabia bem como explicar aos pais o que tinha acontecido, nem como tratar das consequências disso depois. Iria precisar de muito lápis, papel e caneta para desenhar as explicações até o mínimo dos detalhes, e imenso tempo para pensar, se desculpar, e pagar por todos os fardos.


– Que sorte, iriamos precisamente à escola fazer uma surpresa te buscar! – comentou o pai, acompanhado das gargalhadas das crianças. – É que ocorreu um imprevisto, e o teu tio fez merda na vila quando discutiu com um jovem sobre o Haxorus dele se tem Tera Type Steel ou não… Uma história engraçada… Fomos expulsos de Porto Marinada.


Santiago respirou fundo, e sorriu, seu típico sorriso com covinhas, ao ouvir que seus familiares tinham mais uma historinha chata para contar na beira da fogueira na próxima paragem.


Ambos, Santiago e Piri-Piri, subiram a carruagem puxada por Elliot, e sentaram-se na frente, junto do pai, no centro dos miúdos.


Uma berry azulada foi entregue tanto a Santiago como ao Fuecoco, para se deliciarem, mas Santiago deu metade da sua a Piri-Piri.


Ele merecia mais do que ele no momento, pelo ato salvador.


– Parece que vocês dois estão a se dar bem – comentou o pai, com alegria.


Passaram pela zona da escola.


O rapaz cuspiu-se todo quando notou que o edifício tinha desaparecido completamente.


Nem uma cinza sequer no chão coberto de ervas daninhas. Estava tudo limpo e verdejante, como se Giratina tivesse lambido diretamente no prato depois da refeição adorada.


Chamou a atenção do pai, e apontou naquela direção.


Para onde ele ia então todos os últimos dias, e permanecia de manhã até a noite, se era tudo um sonho?


Sabia que Pokémon fantasmas tinham capacidade de criar ilusões. Será que sofrera algum coma esquisito sem se aperceber?


– Aquilo ali sempre foi assim, filho. Não á nada aqui – respondeu, sem perceber bem o que o filho queria dizer.


Santiago olhou para Piri-Piri. Que agora dormia tranquilamente, completamente alheio ao sumiço total do edifício pelo qual incendiaram e se puseram em fuga. O homem olhou para o céu, lembrando-se de algo.


Hã, histórias, como ele adorava contá-las.


– Os locais dizem que ali, em tempos, existiu uma escola assombrada pela alma de uma professora que não conseguia ler nem escrever, e que lhe cortaram a língua quando ela era criança, porque ela acreditava na existência dos Tesouros da Ruína e defendia o regresso deles ao mundo… Mas o edifício já não existe mais há anos e deve ser mentira, impossível uma mulher assim ser professora, que tolice, mais tolice que um Hitmonlee sem uma perna, sem falar que ela sofreu por causa da veracidade de algum conto infantil idiota – comentou o pai.


Aquelas palavras fizeram o rapaz sentir um calafrio, uma breve sensação de indisposição, como se o seu pai estivesse errado no que dizia.


Porque ninguém acreditaria em algo que ele teve a certeza que viu e viveu.


Lembrou-se das imagens que dançaram nas paredes do corredor da escadaria.


Então era aquilo que cada uma delas significava.


E a mulher cumprira o papel de professora exigente até no pós-vida.


– Ouve filho, estive a pensar, será que não gostarias de voltar para a Academia Naranja e Uva?


Academia Naranja e Uva?...


Era uma das poucas experiências que ele não se importaria em dar uma segunda oportunidade, talvez por não ter usufruído do sítio na sua totalidade quando estivera lá pela primeira vez, pois não conhecera absolutamente nada no pouquíssimo tempo que teve por lá. Um dia e metade de outro, nem sequer conheceu a maioria dos professores e muito menos todo o recinto.


– Acho que esta vida de ida e volta não está a ser boa para ti, querido, e não existe melhor escola nesta região – comentou a mãe, uma voz feminina vinda do interior da carroça. – Jovens da tua idade exploram o mundo, criam amigos, procuram seus objectivos, e fazem imensas coisas loucas, namoram, etc. Já começam a perseguir os seus sonhos. Aqui em Paldea existe tanta possibilidade, é um mundo tão livre para explorar. Por isso, talvez está na altura de te desprenderes um pouco de nós.


O grupo de crianças entrou num alvoroço.


– E nós vamos contigo, é claro! – exclamou uma delas.


– Não vão não. – salientou o pai, com um tom de voz bem firme.


Santiago respirou fundo, deixando seus cabelos serem movimentados pela brisa enquanto pai e crianças discutiam entre si toda aquela vasta possibilidade.


Elliot manteve o ritmo calmo, e a viagem lembrou em muito todas as idas e voltas pacíficas pelos campos que vivenciara nas últimas semanas a pé até a escola aparentemente inexistente.


Pelo menos… Antes de ser atacado por alguma Gimmighoul maluca ou pelo próprio Piri-Piri.


Lembrou-se do seu desejo de como gostava de sentir aquele sentimento para sempre.


Mas aquele vento tinha algo diferente.


Algo mais especial.


A sensação de mudança.


Não soube bem o que o moveu a fazer isso, mas olhou para trás, instintivamente. E bem lá no fundo, atrás do emaranhado de fileiras de carroças da guilda, estavam eles os dois.


A professora e o Haunter, posicionados, bem no centro do lugar da escola desaparecida, lhes acenando com animação, até desaparecerem no horizonte.


Alguma vez quiseste provar algo que se julga impossível? – Fora o que o vento sussurrou em seus ouvidos.


Santiago sorriu, lembrando-se das palavras de Marta, e nunca se esqueceria também que aquela professora doida quase arrancara sua língua fora para substituir a dela.


E colocou-se em pé.


Despediu as calças.


E esticou a mão para cima, com o rádio no volume máximo, rádio este que, milagrosamente, já tinha as pilhas e já funcionava correctamente.


Tinha que aproveitar todo aquele momento e celebrar, ao sair da sua caixa.

 

(…)


EU GOSTO DE MAMAR NOS PEITOS DA GOGOAT.


(…)



O que é que procuras?


Qual é o tesouro que anseias descobrir?


Espreguiçou-se na cadeira, bocejou.


Entre o sussurrar da respiração atenciosa dos alunos e o maldito giz do professor de cabelo emaranhado escrevendo palavras e mais palavras no velho quadro de ardósia, só se interessava no tique-taque que o seu dedo fazia no tampo da mesa, acompanhando o ritmo monótono do relógio da sala, ansioso por o que ai vinha.


Qual é o teu objectivo?


Porque estás aqui hoje?


Aquele professor da Academia analisava a fundo as apresentações de slides de cada um dos alunos – um trabalho que lhes havia proposto horas antes. Entre tantas apresentações com histórias inspiradoras de vida.


Santiago esperava que a sua também fosse um sucesso.


O professor marcou no quadro os valores, em frente do nome de cada um dos seus alunos, e Santiago procurou tomar total atenção no seu, mesmo sabendo que nunca fora um dos melhores contadores de histórias.


Santiago: 6/10


Nada mal!


Era um resultado bem positivo, acima da média.


– Rica criatividade – Comentou o professor, de maneira confiante, na direção de Santiago – Não acredito que um episódio destes tenha despertado em ti o desejo em seres um treinador Pokémon! Tens demasiadas pontas soltas no enredo, mas aprecio mesmo o esforço, Santiago! Acho que devias escrever um livro de fantasia! Tens pensamentos perfeitos! E escreves maravilhosamente.


Os alunos todos soltaram uma gargalhada, não de gozo, mas cheia de boa disposição. Muitos davam a impressão que não acreditaram na historinha, de maneira alguma, mas Santiago, apesar do pensamento contraditório, sabia que isso não era verdade.


Se ele pelo menos pudesse provar que a mulher-Haunter era real…


Tinha a cicatriz na cara e tudo, mas nem isso era o suficiente… Seu pai dizia que era uma marca de nascença.


Santiago respirou fundo, e olhou para a janela. Mesagoza era uma cidade encantadora.


Um a um, um grupo de crianças fantasiadas surgiu no pátio principal, atravessando-o numa correria. Cada fatiota que este grupo portava era bem rica em imensos detalhes. Uma delas parecia um peixe de fogo, seguido de um enorme veado com um vaso enorme na cabeça, um caracol feito de tábuas de madeira e folhas caídas de árvores e um grande tigre dentes de sabre branco, cujos dentes se caracterizavam por serem um par de espadas negras e cortantes.


Pareciam brincar por ali sem preocupações, fingindo ser Pokémon perigosos com suas fatiotas, envoltos em sonhos e expectativas.


De súbito, um pequeno ser encarnado e bípede moveu-se lá fora, saindo detrás de uma caixa do correio no pátio principal. Era bem rechonchudo, sua face mais branca que o restante do corpo encarnado, se assemelhando em muito a um crocodilo cuja cabeça parecia uma maçã cortada pela metade.


O ser abriu sua grande boca, despreocupado e sofrendo de uma enorme vaga de monotonia.


Deitou-se mesmo ali, a cochilar.


Santiago respirou fundo, olhou para seu braço esquerdo, cheio de marcas e cicatrizes de queimaduras.


A única coisa que contrariava tudo aquilo era Piri-Piri… O, mesmo, pequeno, Giratina, de, sempre!


Pediu licença educadamente ao professor para ir lá fora, explicando o ocorrido: tentar colocar seu Pokémon rebelde dentro da Pokébola, obrigando-o a fazer algo que o bicho odiava pelo próprio bem dele, além de ver se as crianças que ele supervisionava precisassem de alguma coisa ou se estavam bem.


E um filme de Unova. Lá foi ele vivenciar outra vez…


O professor sorriu, vendo o seu aluno sair pela porta, enquanto escrevia no quadro as ultimas letras de uma frase.


Uma das mais famosas frases da academia.


E que a caça ao tesouro comece!



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