Posted by : Shiny Reshiram 7 de nov. de 2023


– Manjar! Não! – vi meu precioso Dachsbun cair.


Lágrimas começavam a cair da minha face. Tinha duvidado daquela mulher e seu potencial, e agora sofria as consequências da pior forma possível.


Sempre imaginava aquele dia como um dos dias mais gloriosos e felizes da minha jornada, afinal, era o grande evento que marcaria o fim da mesma, pois a mesma se iniciara a pensar na chegada daquele mesmo dia.


Mas aquele fim estava a se tornar num pesadelo em campo.


Consegui derrubar o Copperajah, mas custou-me muitos sacrifícios. La Primera ainda tinha cinco Pokémon intactos, e, naquele momento, só me restava um único monstrinho capaz de combater.


Retomei o meu cachorrinho ferido para a sua Pokéball, e agradeci pelo esforço em vão. Comecei a ouvir a multidão à minha volta a me insultar, pois queriam ver um combate entusiasmante e demorado entre duas treinadoras de elite e só receberam uma triste débil qualquer que perdera quase toda a equipa nem fazia vinte minutos.


Sentia-me um saco de lixo, e veio outra náusea quando a imagem inundou-me o pensamento. Eu estava tão desestabilizada por causa da minha má disposição, que não conseguia conectar-me com meus Pokémon e lutar com todo o meu potencial.


O observar de Geeta cruzou-se com o meu, antes deu soltar o último companheiro que me restava. Ajoelhei-me. Sentia-me um fardo tão grande que mal consegui-a olhar-lhe nos olhos, por ela ser tão superior e distante de mim.


Estava quase a dizer que queria desistir…


Mas, ao mesmo tempo, não sei como consegui uma última golfada de esperança para manter-me em campo. Afinal, se eu estava ali, não podia simplesmente naufragar longe da costa e morrer afogada.


Eu ainda era demasiado orgulhosa para chegar a esse ponto.


– Vai Popó! Usa Spin Out! – comentai, atirando a minha ultima esfera ao ar.


Body Press – Geeta ordenou ao seu Pokémon, instantes depois.


Popó, o meu Revavroom, disparou pelo campo a toda a velocidade, deixando atrás de si uma enormíssima nuvem de toxinas provenientes da energia que ele produzia em seu cilindro de motor. O Avalugg de Geeta também começou a caminhar, em passos tão pesados que originavam mini tremores de terra.


Os corpos de ambos os Pokémon chocaram entre si, fazendo a estrutura do estádio estremecer por inteiro devido a tamanha força. O Avalugg já tinha sofrido muitos danos dos meus Pokémon antes, e o Reravroom era o único que não tinha lutado.


As enormes patas do Pokémon de gelo fraquejaram.


O tremor do chão e o aroma característico do meu Pokémon contribuíram muito para o retorno do meu estado de mal estar. Eu devia estar mais branca que papel. Maurício e Bombur estavam preocupados comigo, um sentimento que se traduziu nas suas expressões quando os fitei e distinguir entre a multidão, bem antes de ouvir o arbitro da batalha anunciar que o Avalugg de Geeta não aguentara o golpe do Revavroom e ficara fora do combate.


La Primera respirou fundo antes de soltar o seu próximo companheiro. Ela também via a minha cara doentia.


– Se não te sentes em condições, a batalha pode dar-se por terminada aqui.


Eu não queria aquilo.


Não queria que ela sentisse pena de mim.


Não queria que ninguém já desse tudo por terminado, apesar deu só ter apenas um único Pokémon.


Pisei o chão, frustrada.


A batalha podia manter-se o tempo que fosse necessário para eu ganhar. Meu Revavroom fez um barulho rouco, quando comecei a ouvir uma agitação entre os espectadores.


Ao início pareciam gritos, depois frases desconexas, que, aos poucos, foram ficando fortificadas, até se transformarem em uma única palavra.


Um sussurro. Um pedido.


Glimmora, Glimmora, Glimmora… – diziam, quase numa súplica.


A Campeã sorriu com o que seus fãs solicitavam, depois virou outra vez a sua atenção até a minha presença insignificante.


Estranhei muito o momento que se seguiu.


– Se fosses tu, o que fazias no meu lugar? Ignoravas, ou seguias a nova corrente? Entregavas aos teus seguidores o que eles queriam ver?


Eu sabia que a Glimmora era o Pokémon mais poderoso de La Primera. Era sempre a última opção que a mulher soltava, bem no final do confronto, quando ela não tinha outras opções.


E, naquele instante, ela não queria saber se eu dava fanservice ou não às pessoas que me rodeavam.


Ela queria dar-me era uma oportunidade.


Uma oportunidade de sonho, de lutar contra aquele tão precioso companheiro dela, pois em circunstâncias normais, estava mais que óbvio que, com apenas o Revavroom, eu não chegaria ao último turno da batalha, nem ficaria perto deste. E era sempre em último recurso que a Geeta o soltava.


Segurei minha respiração.


Apertei os punhos.


– Mostra-a. – pedi.


Não estava a conseguir encará-la, mas sabia que Geeta sorria com minha audácia.


A Pokéball que a mulher soltou era muito diferente das demais.


– Glimmora... Sê uma das luzes que nos guia a todos.


Uma energia começou a se acumular, vinda de todos os lados. As pessoas começaram a gritar, eufóricas por finalmente algo entusiasmante a acontecer, e seus gritos e chamados se intensificavam à medida que o cenário ficava escuro, apenas para uma enorme coroa a cintilar no meio do recinto, cheia de esplendor. Fragmentos de cristal e inúmeros pontinhos multicoloridos dançavam ao redor do ser, cobrindo sua pele como uma armadura multicolorida.



A luz era tão intensa que eu mal a consegui fitar. Meus olhos precisaram ainda de uns longos minutos para se habituarem à enorme estrela que existia ali em frente, que cintilava como se fosse a única a existir no universo.


– O que achas dela? – ouvi Geeta questionar-me, com um tom carinhoso. Apesar de, bem no fundo, ser desafiador.


– É… Linda… Ainda mais, aqui. Tão alta, entre as nuvens. – tive de o admitir.


A luz da Glimmora sempre me abismara. Aquela criatura e suas pétalas pareciam saídas diretamente de um sonho graças ao efeito que os cristais entregavam. O Fenómeno Terastral surgira em Paldea há poucos anos graças às pesquisas de uma tal Professora Sada, e não era de admirar o mesmo ter-se tornado num sucesso estrondoso devido à beleza e poder que entregava.


Geeta prendeu a respiração, e olhou para cima.


– Navegação Astronómica é fascinante. As embarcações antigamente só tinham como referência o céu noturno. Sabias que os primeiros exploradores da Grande Cratera de Paldea usavam as Glimmoras e seus padrões comportamentais para se guiarem no subsolo?


Se fosse hoje em dia, eu iria penetrar mais naquela matéria por a considerar tão curiosa, mas, na época, eu não era tão interessada assim em história.


– Bússolas. Compassos. Astrolábios. Mapas. Barcos. Céu. Estrelas. Mar. Explorações. Descobrimentos... – cuspi as palavras, pisando os azulejos do chão que formavam a rosa dos ventos do campo. – Não quero saber. Sinceramente, estou a ficar um pouco cansada destas metáforas idiotas.


– Não ignores elementos da nossa história, Haruka. Podemos aprender com os avanços e recuos dos passos dos nossos antepassados. – e realizou aquele maldito gesto outra vez, dando lugar à sua ultima ordem. – Mortal Spin.


A multidão fez um alvoroço.


A Pokémon flor de lótus abriu suas pétalas, antes sequer de eu conseguir reagir. A Glimmora girou tão poderosa como uma broca, a alta velocidade em todo o campo, deixando atrás de si um raio de luz faiscante devido ao seu corpo brilhante numa questão de segundos.


Uma explosão de cor e fragmentos de cristal inundara todo o recinto por completo. Ouvi o grito de desespero do meu Pokémon, sendo consumido pelo impacto. Um Pokémon cheio de vitalidade, levando tantos danos de um movimento que, nos meus fracassados pensamentos, nem devia ter causado metade dos danos que realmente provocou.


Aquele poder ia contra todos os precedentes.


Era o verdadeiro fim.


– Revavroom está fora de combate! – ouvi o árbitro anunciar. – A vencedora do combate é a atual Campeã, Geeta!


La Primera! La Primera! La Primera! – as pessoas começaram, a lhe glorificar.


Deslizei meu corpo até o chão, deixando-me cair ao lado das lágrimas que derramavam em minha face como um rio constante. Eu ainda tinha esperança no meu último Pokémon… Ainda tinha… Ainda podia ter ganho, ainda podia ter recebido dinheiro e o troféu, ainda podia ter reconstruído a minha casa de sonhos em Cabo Poco… Mas estava tudo acabado. Quando iria pôr isso na cabeça?


Retornei Revavroom para sua cápsula, ao mesmo tempo que Geeta retornou seu Pokémon para o interior da Pokéball dela. O cenário voltou ao normal, agora que a grande estrela desaparecera, e os muros de nuvens da cratera e o céu estrelado com sua lua radiante voltaram a tomar a paisagem.


Mas nem tudo acabava por ali. Ela manteve-se em pé, à minha frente.


Não sei bem como, mas, em contrapartida, uma chuva de papéis e lixo começou a atingir-me, e aquilo não estava nos planos de ninguém. As nuvens que derramavam aqueles insultos eram as próprias pessoas que assistiram o espectáculo, maldosas, insatisfeitas com meu fiasco.


Estava a ser o pior dia da minha vida.


Senti que nada podia melhorar naquele momento.


Ajoelhada, a chorar, sem conseguir aguentar o fracasso, mal dei conta do momento que a chuva de humilhação se dispersou, quando os seguranças tiveram que interferir nas arquibancadas.


Em poucos minutos a população agitada desaparecera como ordem, e, quando dei por mim, só estava eu ali, a chorar rios de água em frente à minha adversária. Era algo um tanto vergonhoso, lamentar tanto aos pés de alguém imponente.


Geeta olhava-me, como quem encarava alguém afogar-se no seu próprio desespero.


E foi quando as lágrimas começaram a secar, depois de tanto chorar até não conseguir mais, que ela aproximou-se mais de mim e mostrou que não estava a gozar com minha figura.


– Agora que estás mais calma. Quero que penses um pouco… Porque perdeste?


Outra questão inoportuna.


Continuei de gatas, fixando o chão. Mal conseguia abrir os olhos afogada nos soluços.


Perdi porque não pratiquei, fiquei a tocar piano e a me divertir com meu companheiro em vez de treinar. Perdi porque acreditei demasiado nos comentários dos outros. Perdi porque não acreditei no potencial dela. Perdi porque estava mal disposta, e essa indisposição atordoou-me os pensamentos. Perdi porque abusei da minha sorte… – eram várias as coisas que vinham à minha cabeça.


Vários factores que eu culpava e que sim, contribuíram de alguma forma na minha perda. Mas nada daquilo saiu da minha boca para justificar, além do silêncio das minhas palavras.


La Primera abaixou-se, e tocou-me no ombro, com aquela luva quente que cobria os seus delgados dedos.


O súbito contacto físico fez-me encará-la por momentos.


Consegui voltar a lhe fixar os olhos. O observar de Geeta cintilava como um par de brilhantes estrelas, e, finalmente, consegui enxergar nela um restício de humanidade. Algo que, de certo modo, me acalmou, apesar de manter minha tristeza.


– Lembras-te de eu te dizer, que quando eu cheguei a esta região, eu não sabia como navegar nos caminhos de Paldea? – questionou-me.


– Sim, disseste qualquer coisa sobre tomar qualquer trajetória… – murmurei. Por ter sido das poucas coisas que ela dissera no início da batalha, ficaram marcadas na época.


– Durante um tempo, eu quis auxiliar todos nos seus caminhos, pois ninguém auxiliou o meu, além da minha estrela. – ela forçou um sorriso misterioso, que pareceu triste. – Mas depois me apercebi que… O céu tem milhares de corpos celestes, e se todos somos diferentes, porque todos deviam se guiar apenas pelo brilho de um só deles?


Encolhi os ombros.


– Não é a Estrela Polar a melhor referência para o norte?


Ela soltou uma pequena gargalhada com a minha pergunta, por eu estar a levar tudo para o sentido literal das coisas, pois ela estava outra vez a brincar com o lado figurado de tudo aquilo.


– Perdeste porque o brilho da minha Glimmora pode cegar muitos treinadores que chegam demasiado perto dela. – ouvi ela explicar, atenciosamente. – Não foi nada mais que uma situação onde a vida nem sempre corre como planeamos. Os ventos que por ela correm podem nos obrigar a seguir um rumo diferente, um rumo que nos leve até outro lugar e nos force a procurar uma nova estrela capaz de abrir a escuridão que se segue. Mas não julgues o novo destino só porque não era aquele que realmente querias alcançar. O que é novo consegue ser assustador, mas também bonito de se ver, e pode surpreender.


O que é que mais importava nesta altura além do meu título? Toda uma jornada e todas as batalhas foram para nada? O que iria acontecer agora comigo, que fosse mudar, tudo da maneira que eu visualizava? Que destino era esse que estava para chegar?


Na altura assimilei aquelas palavras com imensa dificuldade.


Tanto que já as tinha esquecido.


Até relembrá-las hoje…


Depois vi Geeta virar as costas, começando a se distanciar devagar para ir embora, e realizando o tal gesto sinistro, para se despedir.


– Espero que consigas navegar nas novas águas que estás para descobrir. Aproveita as melhores ondas. Mantém a esperança nas tempestades. E que sejas feliz não só na viagem, mas também quando chegares ao final dela.



Os dois ratinhos brancos estavam a discutir. E juntou-se mais dois ratinhos brancos para a festa. Estava na rua, fora do grande edifício da Liga Pokémon, sentada num banco, à espera que os meus Pokémon recuperassem na enfermaria. Ainda estava maldisposta mas o ar dali de cima, vindo da cratera, me refrescava.


Ao meu lado, no chão, grupinhos de Tandemaus se reuniam, brigando por algumas berries. Já, no outro lado do banco, o meu amigo Bombur comia o pouco que restava das pastelarias.


Arranquei a caixa das mãos dele, e dei aos ratos.


– Hey! Eu ainda não tinha acabado! – ele reclamou, mas ignorei.


Não era permitido alimentar os Tandemaus famintos que habitavam a estrada que subia de Mesagoza até a Liga Pokémon entre as montanhas da cratera, devido aos problemas de população que a espécie podia dar. Mas, já que eu perdi a Grande Final, fui humilhada em público e estava a ser um dia horrível, decidi alimentar os bem ditos ratos na mesma.


Pelo menos estava a fazer diferença na vida de alguém. Mesmo que essa ideia não me fizesse sentir muito melhor.


Maurício voltou alguns minutos mais tarde, enquanto eu sentia outro enjoo e via Bombur, ao meu lado, a lamentar as migalhas de bolo de laranja espalhadas no chão. O meu amigo olhou-me de cima a baixo, e eu notei que ele trazia um pequeno saco castanho, daqueles das farmácias.


– Os meus Pokémon estão assim tão mal que vão precisar de ser medicados em casa? – questionei, preocupada. Foi a única coisa que consegui lembrar-me ao ver o embrulho.


Maurício disse não com a cabeça.


– Não é para eles… – murmurou. – A enfermeira disse que eles vão ficar bem. Daqui a trinta minutos recebem alta, e podemos finalmente voltar a casa.


Eu olhei, desconfiada para o saco, e senti que aquilo também não era para ele próprio. Devia ser para mim. E as desconfianças se confirmaram logo depois, pois, sem mais demoras, Maurício e Bombur trocaram olhares.


– Haru… Podemos conversar sobre uma coisa?


– Outra pergunta? Vocês estão a parecer a Geeta agora. Ela que gosta de perguntas. – disparatei, ainda de mau humor e traumatizada pela minha derrota.


Bombur pigarreou, dando uma cotovelada no mais velho, para este falar logo o que tinha a dizer e me perguntar a dúvida que ele tinha já bem antes do combate.


– Amiga... Quando foi a ultima vez que as tuas cabeças de Scovillain cuspiram fogo? – ele questionou, ficando muito vermelho de timidez a seguir. Uma timidez que também se traduzia em preocupação.


Que… Que pergunta era essa agora?… – lembro-me de pensar no momento, olhando para ambos, chocada.


Não…


Não podia ser…


Não podia ser o que eles estavam pensando…


– Eu sei lá… – respondi, pensativa e furiosa ao mesmo tempo. – Vocês sabem que eu nunca fui regulada. Está a ser o pior dia da minha vida e vocês aí com mierdas!


– Haru. Nós sabemos que tu e o português fazem muitas aventuras… picantes… – Bombur começou a sorrir, realçando a palavra picantes. Ele era menos desavergonhado que o mais velho.


Eu fiquei mais vermelha que piri-piri de Scovillain ao ouvir aquilo.


– Isso é… Isso é impossível! – comecei, atordoada. – Nós os dois já tentamos antes e nunca conseguimos… Algum de nós deve ter um problema…


– Nunca abuses da sorte, Haruka… – Maurício murmurou para mim.


Talvez se eu não tivesse abusado eu teria vencido a Geeta, mas em relação ao assunto que eles mencionavam… Continuei sem saber o que pensar.


– Se… Seria incrível se fosse verdade… Eu… Eu sempre quis isso… – gaguejei, olhando para a família de ratinhos que ainda se deliciava com os restos de bolo.


E então o vi esticar o saco na minha direção. Agarrei no embrulho e espreitei para o que tinha dentro.


Meu coração disparou.


– A Geeta está lá dentro e deu-me isso… Para te dar. Não sei como mas ela sabia que eu te conhecia e somos amigos de confiança. Ela pediu para ires fazer esse teste, imediatamente.


La Primeira? Deu-te o quê? – eu fiquei sem entender nada. – Ela por acaso fez algum trocadilho com barcos, rotas marítimas, estrelas, destino? ¿Una cosa así? – e perguntei, a primeira coisa que me veio à cabeça.


– Falou em tesouros encontrados em ilhas desertas onde podemos naufragar quando nos enganamos na rota…  – ele disse, movendo a cabeça num sim confuso. Ele próprio não entendia o trocadilho.


Partes do que ela me dissera em campo começaram a fazer sentido.


– Vá lá… – Maurício segurou no meu ombro, para me apoiar. – Vai lá dentro e vamos tirar as coisas a limpo.


De repente, só noto os meus dois melhores amigos rirem da minha figura confusa e desajeitada, quando corri na direção da casa de banho do edifício, aos trancos e barrancos, praticamente esbarrando na porta da frente.


Certifiquei-me que não tinha ninguém por perto, e tranquei a porta.


Li o manual e a embalagem apressadamente. Ainda andava demasiado triste para prestar atenção devida. Realizei o teste mas, no meu entender das coisas, dera negativo.


Sai logo a seguir, tentando disfarçar o desapontamento, como se nada tivesse ocorrido.


Maurício e Bombur me aguardavam perto da recepção. Fiquei surpreendida pela Geeta estar ao lado deles, mas via distanciar-se para longe mal eu cheguei, até o meio de uma legião de fãs perto da porta de saída que pediam autógrafos. Uma das coisas que eu mais estranhei foi ela estar acompanhada do seu Pokémon flor de lótus fora da Pokéball. Era claro que a Glimmora estava sem sua armadura e coroa de cristal, por ser demasiado perigoso fora do campo de batalha, e ela parecia bem mais pequena e frágil sem o efeito Tera lhe entregando a grandiosidade.


Tive a sensação que, apesar de entregar autógrafos e saudar as crianças entre aquele grupo de pessoas, Geeta não tirara os olhos de mim.


Virei-me para os meus amigos. Já estava triste, mas, por algum motivo, me encontrara ainda mais depois da realização do teste. Ouvi a Glimmora da Campeã fazer um barulhinho distante quando realizou uma pirueta no ar para impressionar os miúdos que se divertiam com os piões sinuosos que a flor realizava. Depois ouvi a voz de Maurício.


– Haru… Isso não foi… Demasiado rápido? – ele questionou-me, arqueando a sobrancelha, desconfiado. – Fizeste tudo certo? Por acaso?


– Acho que sim, mas de que serviu. Deu negativo. – encolhi os ombros, entristecida, transmitindo o resultado.


– Confirmas-te? Pode-mos ver?


Dei-lhe a caixa, e eles abriram-na dentro do saco, escondida de todos, para não dar muito nas vistas. As pessoas me olhavam de lado, com uma pressão de desprezo que eu ainda iria sofrer durantes uns anos, até todos se esquecerem. Maldita hora que autorizei o combate ser aberto ao público.


Os dois homens fixaram os resultados. Depois se entreolharam e me fitaram de cima a baixo.


– O que foi? Vão me julgar pelo meu fracasso também? – disse, incomodada com a chuva de olhares.


Eles puxaram-me um pouco mais para longe da multidão.


– Haruka. Precisas de óculos? Viste mal o teste! – Bombur questionou-me com seu humor particular.


– O teste está positivo! Estás grávida! Haru!… – Maurício deu a novidade, quase a pular de alegria, com um murmúrio carinhoso.


Pisquei os olhos.


Os dois me envolveram logo num abraço quente e demorado, enquanto novas lágrimas escorreram. Não de tristeza, mas felicidade, pois aquele que tinha sido o pior dia da minha vida também se tornara um dos melhores graças àquela noticia.


Eu mal podia acreditar.


Este tempo todo eu não tinha pensado na possibilidade, nem duvidado de nada das mal disposições que me dominaram. A Campeão sorriu na minha direção, e desapareceu de vista com a sua Glimmora seguindo-a ao movimento ondulante dos seus cabelos negros.


Eu não precisava mais do brilho daquele Pokémon para alumiar o meu caminho.


Pois a jornada até ele já entregara tudo o que tinha para entregar, e agora, mudara de rumo, e me abençoara.


Me abençoara com uma nova estrela para seguir.


Nova estrela esta que estava para nascer.



Tal como Geeta lhe dissera tantos anos atrás, seria aquele um final da viagem?


E o que seria de um final, sem uma estrela para a guiar na estrada?


Haruka observava o céu e o mar noturno pela enorme janela do quarto, enquanto apreciava um chocolate quente, com um ar perdido. Apertou a chávena morna, contendo a ansiedade. Respirou fundo, e acariciou o seu Pokémon esquilo que lhe dava apoio.



Chegara a hora.


Saiu do quarto e dirigiu-se ao quarto de Juliana.


Em vez de entrar pela porta sem pedir autorização, Haruka decidiu bater desta vez no quarto da filha. O som das pancadinhas na madeira ecoara em toda a divisão. Juliana ao início estranhou o gesto, mandando-a entrar – sua mãe nunca pedia, em circunstância alguma, para entrar dentro do seu quarto, e sempre o fazia de repente, sem lhe pedir.


A mulher conteve a repulsa que sentiu ao, mal abrir a porta, notar um Cyclizar enorme deitado em cima dos cobertores limpos, como um gigantesco urso de peluche em cima de uma cama. Aquele Pokémon mal cabia em cima da cama, e era difícil não imaginar a possibilidade de Juliana em dormir no chão só para dar ao seu Pokémon o maior dos confortos possíveis, pois a jovem era bem capaz disso.


O Pokémon estava com uma pata em cima de uma sanduiche, e no outro lado, mordiscava uma laranja como uma bola de brincar.


Mal botou os olhos em cima da mulher recém chegada, largou tudo o que estava fazendo, antes sequer da mulher e sua treinadora terem tempo de reação.


– MOTO! NÃO! – Juliana gritou, mas foi tarde demais.


O enorme dragão foi contra Haruka, a derrubando no chão e lambendo-a por inteiro.


A mulher tentou puxar o Pokémon para o lado, tirando aquele peso todo de cima de si, insatisfeita, mas os mimos só pararam quando Juliana achou que o melhor a fazer, pelo menos em frente à mãe, era retorná-lo para o interior da Pokéball.


– Mãe… Desculpa, eu ainda tenho muito para o ensinar… – Juliana disse, ao tentar ajudar a mulher se erguer, agora que o dragão fora contido.


Bem que esticou a mão, mas a mulher não a agarrou, levantando-se por conta própria.


Haruka, com ar enojado, ajeitou as roupas e sacudiu algumas marcas de sujidade nelas marcadas, ainda a respirar fundo para não dar um sermão. Enquanto isso, Juliana endireitou as cobertas da cama.


– Ainda acordada? Já devias estar a dormir. – Haruka observou. – Tens que acordar cedo.


A rapariga de pijamas atirou todo o seu corpo para trás, olhando para o teto de barriga para cima, com os braços esticados.


– Não consigo…


– Estás assim tão ansiosa? Posso te preparar qualquer coisa para beber e relaxares… Queres um chocolate quente? Um chá?


– Não, obrigada. Não preciso disso, mãe. Eu estou a pensar em como aquela batalha foi demais!


Haruka sentou-se entre as cobertas, ao pé dela, e deu um sorriso simples.


– Fico contente por teres ganho a uma treinadora tão experiente… Com o título de Campeã… – murmurou.


Juliana mostrou várias mensagens no seu Rotom Phone, o objeto moderno conseguia se esticar, transformando-se num tablet. Nemona não tinha perdido tempo e já confirmara algumas datas e encontros em Mesagoza com a amiga através do objeto. Haruka sentiu-se feliz por ela ao ver as mensagens, pois Juliana há muito tempo que não conversava com ninguém em seu telemóvel.


– Estás vendo o que ela diz aqui? Nemona falou que eu tenho uma vocação qualquer, que devia ir enfrentar os Líderes de Ginásio de Paldea, tentar ir na Liga. Que eu podia fazer isso num projeto chamado Caça ao Tesouro ou sei lá o quê da escola… Eu amei lutar mas… Mas eu não sei ainda se… Eu só ganhei porque segui o que tu me disseste aquelas horinhas antes! E a empregada da mansão disse aquilo e eu brinquei sujo!


– Eu também já brinquei sujo para conseguir algumas coisas que eu sempre quis… Estavas desesperada por ganhar. É normal. Não te devias consumir tanto por isso.


Juliana estranhou tanta compreensão, pois achava que ofender os sentimentos de alguém não era uma coisa boa a se fazer, apesar de Nemona já a ter perdoado através das mensagens do Rotom Phone.


– Mãe! Tu sabes tantas coisas sobre batalhas e Pokémon! Porque nunca me contaste antes que também foste uma treinadora e já tiveste o título de Campeã!?


– Título de Campeã? Onde foste buscar isso? – Haruka mostrou-se surpresa.


Por coincidência, o tema que ela matutou foi o que Juliana também pensava.


– Não foi o que disseste? Antes de entrarmos pelo portão?


– Bem… Não foi bem isso que eu disse… Eu apenas te tinha dito que participei na Liga.


– Oh… pois foi, depois a empregada apareceu e não acabaste de contar! E então? Ganhaste?


A mulher deu umas caricias no seu Skwovet ao ombro, o silêncio não combinou em nada com o entusiasmo da jovem, que mal podia esperar a resposta.


– Eu perdi na final.


– Oh... – Juliana ficou um pouco decepcionada. – Mas chegar na final já é impressionante!


– Eu fiquei arrasada por perder depois de chegar tão longe… A Geeta é incrível. A presença dela é algo fora do normal.


– Foi muito difícil? As pessoas dizem que ela é fácil… – Juliana questionou com curiosidade.


– Fácil? As pessoas não deviam pensar isso dela. Até hoje é complicado de lembrar, pois a batalha pareceu durar apenas uns segundos. Nunca é fácil olhar para uma pessoa como se ela fosse um espelho que arranca de nós os nossos maiores medos. E foi tudo por água abaixo devido a minha ignorância. Sem falar que eu fui humilhada pelo público.


A sua filha a fitava, em silêncio, esperando mais respostas.


– Humilhada?...


A mulher respirou fundo e fechou os olhos, ainda julgou ouvir os gritos da multidão ecoando em torno de todo o campo de batalha. As lágrimas, a chuva de papéis e ofensas… Aquilo era uma peça negra do seu passado que ela estava a compartilhar, mas ainda doía.


– O público esperava uma batalha longa e demorada, que valesse a pena ver. Os seguranças até tiveram que intervir nas bancadas para as acalmar no final. E ao passar nas ruas durante muito tempo todos me olhavam de forma estranha, pois eu não dei a todos o que eles queriam.


– Deve ter sido um dia horrível…


– Não foi um dia horrível… – e abriu os olhos de repente, olhando para ela, de tal maneira que Juliana, ao início, não entendera aquele observar tão carinhoso contra si. – Não o foi de todo.


– Mas… Se estás a dizer que foste humilhada…


– O mundo é um lugar que pode ser horrível, Julie… Mas também pode ser um lugar maravilhoso.


– O que aconteceu de tão bom? – a adolescente questionou, como uma criança curiosa, totalmente fissurada naquela história.


Haruka acariciou o seu Pokémon. Depois de um longo silêncio, voltou a conversar.


– Eu nunca te contei isto antes, mas… mas foi nessa mesma noite que eu descobri que estava grávida! – e começou a rir, nervosa. – Meses depois eu te tinha nos meus braços! Foi a melhor coisa que me aconteceu!


– O quê?... A sério?! – a jovem encolheu os ombros, tímida pela descoberta.


A mulher agarrou-lhe a mão. Juliana sentiu as mãos quentes da mãe a lhe acariciarem.


– Eu sei que eu não sou a melhor mãe do mundo. E eu ainda estou a aprender em como lidar contigo. Eu peço desculpa se não acreditei em ti ou se por vezes eu exagerei e fui demasiado protetora. Espero que me consigas perdoar.


– É claro que eu perdoo! Mãe! Tu és incrível! E te preocupas sempre comigo! O que fazes é pelo meu próprio bem! E eu sei que eu também não sou a pessoa mais responsável que existe…


 – É só que… – uma lágrima escorreu, vagarosa e cintilante, pela sua face. – A tua batalha contra a Nemona fez-me aperceber o quanto já cresceste, e o quanto consegues encontrar soluções que te podem levar à vitória quando a necessidade bate à porta. – a lágrima tornou-se num rio. – Eu tenho medo de perder a tua luz no horizonte… Mas… Está mais do que na altura de entregar-te o leme e deixar-te navegar.


Juliana encolheu os ombros, sem saber bem o que dizer, sem falar que não gostava nada de ver a mãe a chorar. Ela sabia que a sua mãe tinha fundado a padaria como maneira de ganhar uns trocos extra para ajudar na comida e alimentação necessária para seu crescimento, e que fizera muitos sacrifícios.


Quando deu por si, a mulher entregou-lhe uma chave para a mão.


– O que é isto?


– A chave do teu quarto.


Juliana olhou para a porta do quarto, ainda perdida.


A chave do seu quarto pendia na fechadura da porta como típico, reluzindo à luz fraca da mesa cabeceira. A frase da mulher pareceu até uma brincadeira assim fora do contexto.


– Mas ela está ali… Para que é que…


– Está tudo bem se não sabes se ser treinadora Pokémon é a tua vocação ou não. Não precisas de te apressar com um interesse que só descobriste poucas horas atrás. Respira fundo e aproveita o presente. Até mesmo depois de mais velhos, nem sabemos ao certo o que queremos alcançar… Apenas encontra a estrela que tenha a luz que melhor te guie pelas estradas.


Haruka estava perdida no choro ao dizer aquilo. Sempre tentava ser forte, mas os momentos de fraqueza a apanhavam desprevenida.


– Não estou a compreender. Mãe! Podes falar em Espanhol? Eu não estou a entender nada!... Hola?... Olá?... Mãe??... Porque choras tanto?


Juliana deu-lhe uns lenços de papel para ver se ela se assoava e se acalmava. A situação estava num estado tão critico que a jovem já começava a ficar preocupada com a crise que a mulher estava a ter. Até o Senhor Nozes decidiu interferir no diálogo das humanas, dando-lhe toques no braço com suas patinhas, para lhe chamar a atenção.


Ao fim de uns vinte minutos, ela, por fim, limpou as lágrimas, quando não podia chorar mais, e prosseguiu numa voz rouca, as explicações que a jovem precisava de ouvir.


– Eu falei com o Diretor, vir para Cabo Poco todos os dias é uma viagem longa, e será muito cansativo para ti… Por isso, vais ficar num dos dormitórios da Academia. Era para ser uma surpresa. Mas achei que era melhor o dizer agora. Não precisas de te preocupar com nada além de levares a tua mochila e a tua guitarra, já está tudo pronto.


A informação caiu como um trovão.


– Dormir na escola?! Só podes estar brincando comigo! ESSE DRAMA TODO SÓ POR CAUSA DISSO?! – Juliana gritou contra ela, chocada. – Estavas aí a chorar como uma tola! Eu estava a ficar mesmo preocupada contigo! E afinal de contas, é só por causa DISSO?!


– Não estás zangada comigo? Eu… Eu… Eu pensava que ias odiar-me pela ideia! – comentou a mãe, surpresa, a gaguejar. – Que ias ter medo… Nunca ficaste assim tão longe de casa sozinha!


– Mãe! Claro que eu gosto de ficar em casa, e te ajudar na padaria, e brincar com os Pokémon. Mas não estou com medo! Sim! Mesagoza é a maior cidade da região Paldea, deve ter muita… Coisa assustadora lá, sim… – a jovem olhou para o chão, pensativa. – Mas eu já passo as noites sozinha nas praias de Cabo Poco. Claro que é perto de casa e eu posso voltar num instante, eu sei, mas… Deve ser quase a mesma coisa!


A rapariga então respirou fundo, e abraçou as próprias pernas, querendo acreditar nas próprias palavras que dizia. A verdade é que sim, bem no fundo, ela sentia uma pontada de ânsia com a ideia, pois viver sozinha não era algo que devia ser desvalorizado, e era uma mudança drástica de responsabilidades.


Mas não queria mostrar esse medo, pois a mãe parecia bem mais assustada que ela própria com o rumo que as coisas estavam a tomar.


Quando discutiu com a mãe mais cedo naquele dia estava inquieta para nunca mais a ver na sua frente. Agora a própria mãe dizia para ela viver fora de casa e ter seu próprio espaço longe dela, porque confiava nela e ela o melhor para ela.


Aquelas informações, bem lá no fundo, criavam um estranho mesclar de sensações. Mas Juliana decidiu ser forte.


– Se ele… Se alguém… Pode ser em qualquer lugar. Nunca estamos seguras em nenhum sítio. Mas isso é uma ideia que eu já me habituei. Não precisas de te preocupar... Eu vou ficar bem!


– Oh Julie… Desculpa se eu não consigo te proteger para sempre… – aquelas palavras tinham um peso incrível, dito por Haruka, que estava, outra vez, a descambar para o lado da tristeza. – Eu não posso mesmo continuar assim tão protetora. Vais cair e ter que te levantar muitas vezes sozinha, por muito que me custe ver-te magoada… Faz parte. Todos nós crescemos muito depois de receber as cicatrizes.


– Eu… Eu posso vir a casa todos os fins de semana! Ou algum dia, se sair das aulas mais cedo! E eu nunca vou largar o Rotom Phone por nada! Vou te telefonar todos os dias, todos os intervalos! – Juliana continuou a dizer, otimista, para a tentar alegrar, ou arrancar um sorriso da face dela, mas não estava resultando.


Apertou a chave na palma da sua mão, com mais força, depois atirou-se aos braços da mãe que tanto amava. Se as palavras não estavam a funcionar, pelo menos tentaria acalmar a sua progenitora com a força do toque. A mulher parecia uma pequena criança perdida que reencontrava um ente querido á muito tempo perdido.


E assim a jovem ficou muito tempo, sendo embalada pelo silêncio da noite e pelo amor e conforto de uma das pessoas que lhe eram mais preciosas no mundo inteiro. Juliana já estava a ficar cansada, que acabou por adormecer nos braços da mãe. Era o que dava ter ficado a noite toda atrás do maldito Cyclizar estranho nas praias.


Quando notou que a filha dormia a sono solto, Haruka deitou-a na sua cama com cuidado e aconchegou-a nos lençóis. Achou que o melhor era não a deixar ali sozinha, então soltou seus Pokémon para a aquecerem e fazerem companhia durante a noite, aproveitando para também lhes contar a pequena novidade e pedir-lhe para que a protegessem em Mesagoza.


Soltou todos, incluindo, o Cyclizar estranho, que cheirou o ar e ocupou a cama toda, sendo o maior e mais pesado cobertor de Juliana. O dragão apesar de ser o mais irrequieto do grupo, até que compreendera o que estava a ocorrer e não fez muito alarido.


Os Pokémon fizeram um silêncio mútuo, observando a mulher confusa a viajar pelo aposento, com dificuldades em se distanciar e ir embora devido ao vazio que sentia. Pois agora andava à deriva numa noite escura, e não sabia para onde se virar no meio da penumbra.


Aproximou-se da porta, passando pela secretária da filha.


A guitarra no expositor chamou sua atenção.


Passou os dedos nas cordas, sem as tocar, e depois, analisou a madeira da superfície do instrumento, que era cheia de arranhões. Uns mais recentes, realizados nas mãos de Julie.


Mas outros eram bem mais antigos, ainda do tempo do antigo proprietário do objeto.


Aí Haruka apercebeu-se que as nuvens se abriram e o céu voltou. A sua pequena estrela não se apagaria com a nova distância.


Ela ficaria mais forte que nunca.


E recordou-se de algo que dissera a alguém, num certo dia, há muito tempo, onde ouvira a letra completa daquela tal maldita música que tanto odiava no passado.



No inicio é assustador, eu sei…


Mas vai deixar de o ser;


quando começares a ver;


as coisas num ângulo diferente.


Minha querida, podes crer…


[…]


E começou a sussurrar, como uma simples canção de embalar, à medida que a vibração das cordas também diminuíra. Até desaparecer e dar lugar ao silêncio total. Eu lembro-me que eu o observava, fora da porta da padaria.


A nossa criança em seu colo parecia minúscula em comparação com a guitarra que ele tocava, completamente alheia a todas as maldades do mundo.


[…]


…O tempo muda em qualquer lugar;


no brinquedo a cor vai desvanecer;


estrelas vão deixar de brilhar;


para novas aparecer;


e a ritmos diferentes;


árvores sempre vão crescer…

 

Quando parou de cantar, o homem olhou para mim, com um sorriso rasgado no rosto. Nossa filha já estava a dormir, tão pesada como uma pedra. Ele pousou a guitarra ao seu lado, aconchegando melhor a menina adormecida em seus braços.


– O que achas que ela vai ser quando crescer? – o homem questionou-me.


Olhei para a forma como ele a segurava, e não hesitei a brincar.


– Se a continuares a mimar dessa maneira, ela nunca vai conseguir ser mais autónoma. Nunca vai aprender a viver sozinha. Nunca vai aprender a estar por conta própria. Nunca vai conviver com pessoas e Pokémon diferentes. Nunca vai fazer amizades... – comecei a numerar, contando pelos dedos das minhas duas mãos. – e se isso não for bastante, posso continuar a fazer a contagem.


Olhei também para os meus pés, mexendo os dedos na sua direção, para o provocar, pois se fosse um motivo por cada um dos meus dedos, ainda tinha uns quantos, os suficientes para o acusar de uma quantidade assustadora de defeitos.


Ele começou a rir da minha figura, e passou os dedos na superfície do banco.


– Senta-te aqui ao meu lado. Desde o dia que ela nasceu que andas a trabalhar demais.


E assim o fiz, contra a minha vontade.


Tinha saído para o exterior ver se a roupa no estendal já estava seca para a dobrar. Tentei manter-me imóvel, mas não consegui ficar muito tempo quieta, eu precisava de continuar os meus serviços. Além da roupa, tinha que continuar na padaria, arrancar ervas daninhas do pátio, cuidar das plantas do quintal… E mais importante, tratar das encomendas para dar aos clientes na hora certa.


A lista só crescia, num ritmo assustador, e eu adicionava sempre mais e mais coisas à medida que me lembrava. Quando fui para me levantar, para ir na direção do estendal, ele conteve-me.


– Pelo rugido de Dialga, para quieta, mulher. Vamos só… Relaxar. – pediu, enquanto ajeitava as roupas da criança.


– Tu é que és demasiado folgado. – soltei, o mais realista possível. – Alguém tem que fazer as tarefas domésticas, pagar as contas e arranjos da casa. Não é apenas a vender lixo em Porto Marinada que se ganha a vida.


Ele soltou uma pequena gargalhada com a minha audácia.


– A inauguração da padaria foi um sucesso, e pelos vistos, será durante muitos mais anos! És excelente neste trabalho, Haruka. Finalmente a usar o talento culinário que tens para fazer qualquer coisa a teu favor. Sempre foste habilidosa com as mãos. Estou muito feliz por partilharmos isto juntos.


Eu queria dizer qualquer coisa para elogiar o tom responsável que ele tomava com sua frase. Mas não o fiz, pois podia engolir as palavras amargamente.


– É engraçado como mudar um pouco a rotina parece recomeçar tudo do zero.


– Ainda mais com uma criança… – acrescentou ele, enquanto penteou os cabelos da filha com seus dedos. – Ela aprende rápido. Acho que até já sabe tocar na guitarra melhor do que eu! – depois disse-me, a rir.


– Então espero que ela não desperdice o talento para a música da mesma maneira que nós dois desperdiçamos. – acrescentei.


Senti uma certa mágoa, e eu sabia que meu companheiro também a partilhava. Ele sabia tocar aquela guitarra como ninguém. E, quanto a mim e a meu piano… Ainda tocava, apesar de, mais tarde, o ter deixado de fazer por razões muito pessoais.


Ainda o tenho, no armazém da casa, coberto com uma lona.


E é onde ele se mantém guardado, até hoje.


A vida deu-nos outras prioridades. Não podíamos continuar a ser uma dupla musical para sempre.


Nos dias mais cinzentos e tempestuosos, ainda sinto vontade de tocar no piano e o ouvir ressoar, mas a vontade logo passa, quando ocupo o meu tempo a fazer qualquer outra coisa de mais útil e produtiva, principalmente se o for na cozinha da padaria.


Afinal, trabalhar na padaria também era como música para mim.


Ele fixou-me uns momentos.


– E se ela desperdiçar seu talento? E se a vida também não lhe der as melhores oportunidades? E se ela não fizer as melhores escolhas?


Tantas questões preocupadas sobre o futuro, por parte dele, naquela particular tarde, me recordaram das palavras de La Primera. E até era divertido criar metáforas, apesar de não ser o estilo de coisa que eu costumava fazer.


Assim acabei soltando uma delas, para lhe responder.


– Sendo sincera, eu não sei  bem… Eu só quero me certificar que ela terá tudo o que precisa, enquanto eu estiver presente. Só nos resta apoiar as suas escolhas e medir os astros com nosso melhor astrolábio, sempre que não existir nuvens no céu. E se algum dia o vento não soprar, remaremos contra a maré.




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