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- Vozes em Branco - PARTE 1 - Capítulos Adicionais
Santiago Florêncio
Tavares da Silva Mendes Francisco Medeiros parecia ser apenas mais um dos
típicos nomes dados às crianças nascidas na área ocidental da região de Paldea,
e isso não estava totalmente errado, pois o individuo que portava esse nome
parecia ser como qualquer outro adolescente comum da área, cujas folgas iam
além das horas vagas.
Espreguiçou-se
na cadeira.
Bocejou.
Entre o sussurrar
dos alunos nas fofocas e o maldito giz da professora escrevendo palavras e mais
palavras no velho quadro de ardósia, só se interessava no tique-taque que o seu
dedo fazia no tampo da mesa, acompanhando o ritmo monótono do relógio da sala.
O que é que procuras?
Qual é o tesouro que anseias descobrir?
Eram algumas
das frases expostas no quadro, com cada letra bem carregada no giz branco.
Santiago respirou fundo, e tentou pensar numa resposta adequada para tais
questões, muito a contragosto seu.
‘’Tesouro…’’
Foi a palavra
que começou a escrever entre os apontamentos.
‘’…da Ruína’’.
Acrescentou
logo abaixo.
Escreveu
aquilo por escrever naquele momento. Apenas um trocadilho engraçado com as
palavras. Mas pensar neles pouco interessava agora. Afinal, o que esse maldito
conto infantil de Paldea deveria ter de especial?
Há quem diga
que as quatro bestas dessa história são uma representação figurada das nossas frustrações
mais profundas.
E as
frustrações podem ser destrutivas se a água dos copos que as suportam
transbordar.
Mal a aula
chegara aos seus vinte minutos iniciais, Santiago já sentia o traseiro doer de
tanto tempo sentado e a enorme sensação de tédio no cérebro. Ele precisava
mesmo, nem que fosse só um pouquinho, de se aliviar ao soltar sua ‘’fera’’.
Sua sorte – se
isso se pudesse dizer sorte – é que o seu lugar ficava mesmo nas fileiras ao
lado das janelas da sala, assim, podia passar as aulas mais aborrecidas espreitando
o ambiente lá fora.
Amava observar
o mar que se estendia além do horizonte e relembrar-se das suas antigas
estadias em outras áreas de Paldea…
Uma menina
bonita aqui e ali passeando no meio da estrada também era uma visão magnífica
de se ver. Quanto a isso, Santiago não escondia o prazer.
Aproveitava bem
cada segundo que podia fitando tudo o que a sua vista conseguia alcançar, e só
não se entregava totalmente aos prazeres por tal não ser ético ali dentro
daquela sala.
Porém, a maldita
mulher lá na frente não olhava para trás e não prestava tanta atenção aos seus alunos,
e já deviam ter passado uns bons minutos que ela mantinha-se sempre fissurada
nos seus deveres de professora, a tagarelar explicações sem nexo enquanto
escrevia as anotações no quadro de ardósia.
Era uma
oportunidade de ouro.
Santiago tirou
as calças.
Aquele grupinho
de adolescentes folgados se distraiam com qualquer coisa menos com a matéria e
deveres dados – até as paredes brancas e sua textura áspera eram mais interessantes
nestas alturas. E uma coisa não dava para negar, eles adoravam quando Santiago
tirava a roupa para apreciar o mundo lá fora, e isso enchia sempre a sala com
longas gargalhadas animadas.
Era um hábito
típico dele. Ficar mais ‘’natural’’ para apreciar o momento. Animar quem se
sente mais em baixo e distante.
O garoto corou
e sorriu ao ver que seu hábito dera certo, mostrando umas covinhas engraçadas
em cada lado da sua face, pois ele gostava mesmo de animar todo o mundo mesmo
que isso implicasse o peso de situações vergonhosas em seus ombros.
A professora
começou aos berros para mandar todo o mundo se calar e parar quieto, e foi ai
que um pequeno ser bípede moveu-se lá fora, saindo detrás de um tronco de uma
árvore apodrecida.
Era bem rechonchudo,
sua face mais branca que o restante corpo encarnado, se assemelhando em muito a
um crocodilo cuja cabeça parecia uma maçã cortada a metade.
O ser abriu
sua grande boca, bocejando, pois sofria da mesma vaga amaldiçoada de monotonia
que parecia rondar todos os ares.
Deitou-se
mesmo ali, a cochilar.
Santiago
desfez o seu sorriso e vestiu as calças de imediato.
A paisagem já
não era tão prazerosa para se expor a tal ritual vergonhoso.
Ele não podia
acreditar que o maldito Fuecoco deixara seu esconderijo.
No mundo Pokémon
era uma tradição os jovens partirem em uma jornada com um Pokémon ao seu lado –
explorar o mundo, solucionar mistérios, fazer novas amizades, perseguir sonhos
e superar qualquer que fosse o desafio que pudesse surgir pela frente. Muitos ansiavam
deliciarem-se com tamanha aventura, pois a viam como uma espécie de rito de
passagem à idade adulta.
Mas apesar de já
ter ganho um, e estar ali mesmo o seu primeiro monstrinho de bolso, Santiago nunca
se interessara até o momento em nada daquilo, nem pensara no assunto sequer.
Tratava-se de uma
ideia estranha, talvez como sua própria vida já era algum tipo de aventura
desde que se lembrava.
Seus pais,
apesar de não saírem de Paldea há algum tempo, pertenciam a um grupo de
comerciantes nómadas que percorriam todas as regiões do mundo Pokémon que se
pudessem imaginar – a Guilda Ginkgo – uma Guilda muito conhecida desde os
tempos que a região de Sinnoh era chamada de Hisui.
Os Ginkgo
fragmentaram-se com o tempo em vários grupos, mas mantinham o mesmo nome e
essência, com comunidades bem numerosas e assentes em inúmeros pontos a nível
mundial. Eram tradicionalistas, seguindo fielmente os costumes de seus
ancestrais.
Santiago já
vira imensas coisas e já conhecera muitos tipos diferentes de Pokémon de Paldea
desde, praticamente, um bebé, pois sua família nunca ficava muito tempo parada
num único local – mas também nunca aproveitou muita coisa das estadias, e
sofrera bastante preconceito por causa da sua descendência.
O rapaz
respirou fundo enquanto fixava o Fuecoco lá fora, completamente alheio ao facto
da professora já ter mencionado seu nome umas cinco ou seis vezes para o chamar
à razão.
A mulher, dona
Marta, como era chamada, no fundo, sabia que o jovem em breve iria sair daquela
escola pacata e partir para outra na próxima paragem que sua família tivesse
como era costume – o que seria um alivio milagroso vindo de Arceus – mas isso
não a fazia ceder com frequência a sua desistência.
Tal como
qualquer instrutor que mantinha a sanidade mental, Marta procurava um pouquinho
de esperança até nos alunos mais perdidos que tivesse.
Só era uma
pena ser do género de pavio curto.
Mesmo com os
avós inválidos como companhia, e vários irmãos e primos pequenos para cuidar,
Santiago não podia ficar ‘’sozinho’’ na caravana que usavam para viajar e
viver. Seus pais sempre o incentivaram à educação, logo, era obrigado a estudar.
Estudar era o seu trabalho enquanto os familiares ‘’mais capazes’’ partiam para
Porto Marinada vender as suas mercadorias.
Por muito que
não gostasse, tinha que passar o dia na escola, nem que fosse por umas horas
miseráveis no primeiro estabelecimento de ensino que aparecesse na beira da
estrada daquela vila do litoral.
Chegara até
mesmo a frequentar um dia e meio a Academia Naranja e Uva, quando seus pais
decidiram realizar uma paragem rápida para negócios em Mesagoza, a maior cidade
da região. A Academia Uva e Naranja era a mais premiada e famosa escola de
Paldea, onde a paragem significava uma regra inegável para 90% da população
estudante da região. Mas custava caro, e seus pais deram-se ao trabalho de
pagar um balúrdio só para não terem o filho sem ordens de professores durante…
…um dia e
meio.
O problema
maior na sua rotina era precisamente aquele crocodilo que recebera logo no
primeiro dia que frequentara a Academia: um Pokémon inicial era sempre um presente
especial a novos alunos.
Piri-Piri era o
Fuecoco mais gordo e preguiçoso que se podia imaginar, Santiago jurava que ele
era o detentor do maior apetite de sempre, superando até mesmo um grupo de seis
Snorlax famintos. Era quase impossível controlá-lo, pois Piri-Piri fazia tudo o
que queria e não dava ouvidos a absolutamente ninguém.
Os avós tinham
uma espécie de alergia a ele, não o querendo por perto, era esse o motivo que o
fazia sentir-se na obrigação de o trazer sempre para a escola.
Mas naquela
escola em particular não era permitido a entrada de qualquer tipo de Pokémon. Apesar
de alguns estabelecimentos de ensino aceitarem a companhia dos bichinhos de
bolso e a verem como vantajosa para o ensino, os Pokémon ali eram considerados distrações
impiedosas, salvo raras excepções.
Portanto, Santiago
o escondia na zona de mato mais próxima da janela da sua sala e só o ia buscar
bem à tardinha quando todos já tinham ido para casa.
– Santiago Florêncio!!
– A professora chamou-o mais uma vez a atenção, em tom mais elevado.
Óbvio que o
segredo não ia durar para sempre, e, para a maior das sinceridades, eram poucos
os dias que a presença do crocodilo encarnado não dava nas vistas.
Dona Marta
soltou um grito esganiçado quando se aproximou de Santiago, olhou a janela, e
notou aquela coisa de pernas para o ar no meio do relvado. O bicho se retorcia
todo, enquanto esfregava as costas no solo e rebolava de barriga para cima.
– Que poucas
vergonhas! Já não te disse para botares aquele Fuecoco perverso dentro da
Pokébola, senhorito Santiago Florêncio!?
Ah-hãa… – o rapaz pensou para si. Limitou-se
a responder num gesto, apesar de tal gesto ter sido para a professora aquele
género de palavras que entravam por um ouvido e saiam por outro.
– Santiago
Florêncio Tavares da Silva Mendes Francisco Medeiros!! – A mulher chamou-o
outra vez, por nome completo.
É
sempre um mau sinal quando alguém nos chama pelo nosso nome completo. Principalmente
numa escola, em frente a outros adolescentes, pois logo era sinal de chacota, e
Santiago já começava a sentir nos seus ouvidos mais sininhos vindos dos
colegas. Ele gostava de ser uma piada, mas óbvio que as piadas tinham limites.
A face da
professora estava mais vermelha que a pele de Piri-Piri. Ela só não dava ao seu
aluno um valente puxão de orelhas pois seria um ato nada ético e contra seus
princípios de mentora, apesar da vontade não lhe faltar.
Santiago sabia
perfeitamente que levar um Pokémon para algumas escolas era a mesma coisa que
uma criança levar um brinquedo seu para o infantário, por outras palavras, uma
regra que ninguém devia desobedecer. E a dupla aprendera isso da maneira mais
dura: uma vez um grupo de pirralhos do piorio foram a sua mochila e roubaram a
Pokébola de Piri-Piri, usando-a como uma bola de futebol.
Chutaram-na
com tanta força de um lado para o outro que a coitada fora desfeita em pedaços
após embater nas paredes rochosas que separavam o pátio da estrada principal.
– Ginkgo! Ginkgo!
Ginkgo! – Gritavam os bullies, num ritmo amaldiçoado.
O Fuecoco, ao
sair, desnorteado, levou então um chute na sua própria barriga quando os
desordeiros o confundiram com a esfera bicolor. Vomitou todo o almoço em cima
de Santiago enquanto este o socorria. Piri-Piri desde então odeia entrar dentro
de Pokébolas. Seu apetite também aumentou pela infelicidade dos familiares de
Santiago.
– Santiago! –
A professora chamou-o mais uma vez, com a voz tão alta que era sinal de
veredicto final: um castigo tão traumático que Santiago nunca mais se iria
esquecer em sua vida inteira – Para a Biblioteca! AGORA!
Todos ali
dentro deixaram os risinhos baixos de troça e estremeceram.
Os locais viam
a biblioteca como um local assombrado.
Apesar de
Santiago nunca ter entendido os motivos exatos, ouvia os restantes falar da
biblioteca daquela escola como se esta fosse um dos piores sítios do mundo
inteiro, construído com blocos de cimento vindos diretamente das entranhas mais
profundas de Giratina.
Mas para
Santiago, a oportunidade de sair da sala e ir para outro lugar era quase como música
para os ouvidos – aulas de noventa minutos que nem aquela eram uma coisa entediante
que evitava sempre que existia a oportunidade
Sem palavras,
Santiago dirigiu-se até a porta e saiu.
Ele era mesmo
assim, entrava num local mudo e saia de lá calado, não emitia um som sequer.
A professora
insatisfeita, só não decidiu acompanhá-lo pessoalmente pois sair era sinal que
o próprio Giratina visitaria sua sala – aquela escola era pequena, e, pelos
vistos, não existia muitos mais funcionários para a tarefa de cuidar dos alunos
na ausência de um professor.
E para
melhorar ainda mais o ambiente de triunfo por estar fora da sala, tirou as
calças, incentivando mais gargalhadas no interior da sala.
O silêncio do
corredor parecia mais quieto do que o usual.
A biblioteca
se localizava no andar de cima, mas como estavam em obras para repor os degraus
de madeira apodrecida da grande escadaria velha que lhe dava acesso, os alunos
tinham que sair pela porta da frente e dar a volta a quase todo o edifício por
fora, entrando pela porta de emergência dos fundos do pátio.
Isso o
acalmava mais de certa maneira, pois podia apanhar o ar refrescante da tarde,
esvaziar a mente, e, mais importante acima de tudo, dar meia volta pelo jardim
do edifício e pegar em Piri-Piri quando passasse pela zona onde o deixara.
Voltou a
vestir as calças antes de sair para a rua. Não queria correr o perigo de
apanhar um resfriado.
E lá, a cena,
no geral, parecia vir diretamente dos filmes de faroeste produzidos em Unova.
Num lado,
Piri-Piri.
No outro,
Santiago.
Fitando-se, frente
a frente.
Um conflito
intenso de olhares.
Santiago foi
com a mão ao bolso, segurando a esfera bicolor.
O crocodilo
abriu a boca, comendo uma Oran Berry, com os olhos semicerrados intensamente na
direção dos de Santiago.
Santiago levou
a mão para cima da esfera, fazendo vários gestos em língua gestual que diziam:
Entra aqui dentro.
A plateia concentrava-se
nas janelas da escola. Até um dos jardineiros do jardim municipal de Porto
Marinada, que fazia na estrada principal lá a sua faxina, parou perto dos
portões da escola para ver a cena à distância, aprontando uma nova fofoca para
contar aos colegas quando fossem a um café ou ao famoso mercado local depois do
turno.
– Santi!
Santi! Santi! – Eram os gritos de apoio que se podiam ouvir, entre os berros da
professora Marta.
Berros
dirigidos ao rapaz, para este apanhar o bicho de vez e ir cumprir sua sentença de
morte na biblioteca.
E berros dirigidos
aos restantes alunos para se calarem, voltarem a seus lugares, ou seriam eles a
ir para a biblioteca no lugar de Santiago.
Acontece que,
no final, todos os alunos presentes sofreram o castigo. Até os mais
introvertidos, que pouco ou nada se manifestaram, apanharam o sermão por
tabela.
Tal como
qualquer biblioteca, o local era mais monótono que a sala de aula.
A diferença é
que ali o silêncio tinha que ser quase total – o que até não era um problema
para Santiago. Nas salas de aulas comuns os professores mandavam todos se calar
com um ‘’xiu’’, mas ali, os ‘’xius’’ eram sinais de um castigo fatal que podia
levar a expulsão.
Todos os
alunos encontravam-se intimidados, observando o redor e analisando cada estante
com um certo temor, como se estivessem a prever o surgimento súbito de qualquer
coisa aterradora.
Imóveis, em
suas cadeiras, apenas esperavam o tempo passar.
Santiago era o
único que não sentia tanta tensão, e, como típico de sempre, procurava alegrar
o mundo que o rodeava.
Às vezes
tentava visualizar a face de Giratina gravada nas lombadas dos livros como uma
silhueta negra, só para estimular seu raciocínio e procurar perceber o que os
outros viam ali que ele não via.
Mas para ele
era apenas mais uma biblioteca normal.
A professora
Marta fora até a mesa onde Santiago estava sentado, com uma pequena caixa de
primeiros socorros. Colocou-a sobre o tampo. Abriu e procurou vários pensos
entre medicamentos e produtos específicos que iria utilizar para curar as
feridas do rapaz.
– Estique o
braço, querido – e assim Santiago o fez, com ar tímido.
Ele sempre
ficava sem jeito na presença próxima de mulheres. A professora usou um spray
semelhante aos Potions usados nos Pokémon sobre uma zona da pele que sofrera
uma queimadura de uma chama. A dor não passou logo, mas aliviou, e bastante,
numa questão de vários segundos. Depois, dona Marta passou água oxigenada nuns arranhões
e mordidas que Santiago tinha nas mãos.
– Aquele
Fuecoco, é problemático, não é?
Santiago
acenou com a cabeça. Desejava explicar á professora os motivos com mais clareza,
mas não podia. Notou que a professora trouxe, em cima da caixa de primeiros
socorros, uma berry azulada, que devia ser um presente para Piri-Piri – ou, se
não era, era o seu próprio lanche.
O Fuecoco
estava sentado na cadeira de uma mesa mais afastada. Se não estivesse ocupado, desejaria
comer aquela berry mal a visse, mas no momento encontrava-se demasiado fatigado.
Outros alunos brincavam com ele na esperança de quebrar o tédio, enfiando em
sua grande bocarra mais e mais berries, naquele que seria o recorde mundial de
o Fuecoco que conseguiria engolir mais berries de uma só vez.
Marta colocou
um penso numa das feridas mais profundas do arranhão, deslizando cuidadosamente
o dedo em cima da sua superfície para se certificar que estava bem preso à
pele. Fora um gesto tão suave e sensual que fez o jovem corar.
Não podia negar
que a professora, apesar da idade, era uma mulher atraente e muito bem vestida,
principalmente com aquele tom de voz.
Talvez seria suas
hormonas falando…
O rapaz
encolheu os ombros, evitando fitar um decote que realçava muito bem os seus…
É, talvez seria
efeitos colaterais de alguma pancada que levou na cabeça vinda dos golpes do
Fuecoco.
Ou o que quer
que seria que amansara a imagem da professora que via agora? O que iria
justificar sua atual simpatia em comparação com o momento ‘’’quero ver-te
morto’’ que experienciara menos de vinte minutos atrás?
A mulher
colocou cada medicamento, muito bem organizado, dentro da caixinha, e saiu para
a arrumar no seu devido lugar atrás do balcão afastado da biblioteca.
Santiago
pensava que finalmente estaria em paz, e soltou o ar, de alívio.
Agora livre da
professora, encostou as costas na cadeira para relaxar.
Procurou em
seu bolso um pequeno e velho rádio de pilhas. Ele não tinha um Rotom Phone de
ultima tecnologia igual a tantos outros jovens da sua idade pelo mundo inteiro,
portanto, aquele presente velho era muitas vezes sua única distração.
Procurou uma
estação com alguma música de que gostasse, e baixou o áudio do dispositivo para
fazer com que o ruído não fosse tanto perceptível ao redor de todos, caso
contrário, levaria com sermão mais uma vez.
O objetivo era
deixar o som tão baixo que só ele conseguisse ouvir a música, apesar do
silencio total circundante.
Acontece que o
velho rádio estava a teimar em não funcionar como devia.
Santiago repôs
as pilhas, e pousou o objeto em cima da mesa, lhe dando umas pancadas para ver
se conseguia ligar a música à rebeldia das regras do espaço.
Se a coisa não
ligava de uma maneira, precisava de apenas um empurrãozinho para ligar de
outra.
Acontece que
quando conseguiu ligar o rádio, o mesmo solta um berro enormíssimo que ecoou em
todas as prateleiras.
EU GOSTO DE MAMAR
NOS PEITOS DA GOGOAT
EU GOSTO DE MAMAR
NOS PEITOS DA GOGOAT
MAMO A HORA QUE EU QUERO
PORQUE A GOGOAT É MINHA
Uma das suas músicas
pimba favoritas de Paldea Ocidental era mesmo um dos seus maiores truques para
quebrar o tédio quando não tinha mais que fazer, mas não em tamanhas circunstâncias.
Atrapalhado,
Santiago tentou parar com a música, que já evocava olhares de todas as
atenções.
Mas se antes o
rádio não ligava.
Agora apenas
não desligava e muito menos baixava o som.
(…)
Quando eu nasci a minha mãe não tinha leite
Fui criado como um bezerro…
(…)
Quando finalmente conseguiu parar a música, a professora Marta já estava ao seu lado, com uma pilha de livros nos braços, e sentou-se ao lado dele.
O rapaz
estremeceu, analisando e esperando o seu novo castigo.
Eram manuais escolares comuns, apesar de Santiago notar que um deles, na sua capa encarnada com adornados dourados, continha um título gravado em letras que não eram legíveis, além dos códigos comuns de classificação de livros em bibliotecas numa faixa branca.
Era um livro
de aspeto bastante antigo e muito bonito.
A professora
abriu o seu livro, revelando imagens em traçado medieval de um par de espadas,
um vaso, umas tábuas com escrituras e missangas.
Os Tesouros da Ruína.
– Consegues
ouvir bem, não é? Esse problema que tens na voz…
Santiago desviou
os olhos do livro e olhou-a com certa emoção. A frase da professora removera
por completo sua atenção das belas ilustrações do livro pois nunca ninguém
tinha perguntado as origens do seu problema assim abertamente.
A maioria o
diria por outras palavras, como se ele fosse um anormal, outros nem sequer
tocariam no assunto, já os mais novos, outros jovens da sua idade, ou o
ignoravam, ou gozavam com ele e o ofendiam com palavras tolas – tal como
ocorrera durante o tão afamado evento da Pokébola roubada.
Santiago não conseguia
falar.
Era mudo.
O que o
deixava com dificuldades em adaptar-se ao mundo, e o mundo a adaptar-se a ele.
Muitas vezes
escondia os seus medos e frustrações atrás dos seus gestos de brincadeira que
alegravam quem o rodeava, mesmo sabendo que o tirar as calças dele era mais uma
forma para os outros gozarem dele do que outra coisa.
Os pais não o
levavam para os mercados pois acreditavam que ele não tinha a eloquência
suficiente para convencer as massas a comprar os produtos da família. Era um
assunto delicado.
– Peço
desculpa por qualquer coisa, principalmente se sou exigente nas aulas - ela
começou, do nada, como se estivesse a desabafar. – Não é bem por eu querer… É
porque… Ele não deixa.
Ele? – Santiago olhou bem fundo nos
olhos da professora.
Seus lábios
moveram a questionar, mas nenhum som saiu.
Depois notou
Piri-Piri. Os alunos todos divertidos ao seu redor, com a nova atração.
Em situações
normais, aquilo não, seria possível.
Pois a
professora mandaria, aos berros, todos parar, cheia de fúria.
Como é que o clima
mudou sem que ele notasse?
Antes estavam
todos com um medo medonho em viver, e agora pareciam zombies inundados de
alegria.
A professora
abriu um dos grandes livros que trazia e expos o mesmo ao lado do livro sobre
os Tesouros da Ruina, e apontou para certos exercícios que queria que o jovem
realiza-se, eram os suficientes para o restante tempo da aula passar a voar.
E, para além
de suficientes, bem acessíveis. Aquele género de tarefas tão simples e fáceis que
deixam sempre na boca uma sensação deliciosa de dever cumprido.
A professora nada
mais disse sobre o assunto, foi como se já tivesse falado demais.
Naquele
instante que a mulher deixara a mesa para auxiliar outros alunos, Santiago sentiu
mais uma presença além da sua, emprenhada nas prateleiras e nas paredes
empoeiradas.
Uma coisa era
certa, aquele inusitado castigo na biblioteca fora muito mais produtivo do que
qualquer outra aula normal que alguma vez tivera naquela escola.
E quando acabou mais cedo os exercícios, o jovem acabou por prestar atenção ao popular conto dos quatro tesouros amaldiçoados de Paldea.
Não queria que
ninguém o seguisse e descobrisse onde estava a ficar, por isso, limitava-se a
observar os familiares virem nos seus carros modernos ou montarias Pokémon
buscar os filhos.
Só quando ficava
completamente sozinho é que sentia que podia ir embora – nem que tivesse que
esperar horas a fio depois da última aula do dia – certificava-se sempre que
todos os alunos já tinham desaparecido do pátio para ser a sua vez de abalar dali.
Não precisava
de segurar Piri-Piri e se arriscar a sofrer outra mordida ou queimadura, pois o
Pokémon parecia já saber o caminho de volta a casa de cor e salteado, até
melhor do que seu treinador. Desaparecia ocasionalmente no meio do mato para
pegar alguma berry que avistava à distância, ou confiscar alguns baldes de lixo
depositados ao longo da estrada, mas tirando isso, seguia sempre a caminhada na
estrada de calçada com a maior das calmas alguns metros à frente do jovem.
A estrada que
saia de Porto Marinada ia sempre a subir pelo promontório. Aos poucos, a
calçada dava lugar a terra batida e atrás de si os edifícios coloridos da vila
tornavam-se pontos distantes, com o telhado de vidro brilhante do grande
mercado local embelezando o centro da paisagem.
A pé, a viagem
durava quase uma hora e meia, pois, como era óbvio, Piri-Piri parava para fazer
um cochilo e outras coisas aleatórias consoante a sua vontade. Os dois iam
sempre subindo a ladeira, passando por um Centro Pokémon no topo do
promontório, uma região de árvores dispersas e uns campos agrícolas
parcialmente abandonados, nunca falando um com o outro.
Quando
Piri-Piri fazia lá as suas pausas e tarefas ao ritmo pior do que aquele que era
o típico dos Fuecocos, Santiago sentava-se na beira da estrada em alguma pedra
ou muro de rochas, observando o ambiente.
Por vezes,
quando a pausa de Piri-Piri era mais prolongada, aproveitava para estudar e
realizar as tarefas da escola enquanto ouvia os cantos encantadores que o
crocodilo proferia para outros Pokémon da paisagem.
Apesar de não
ter muita vontade para essas tarefas como usual, fazia-o para matar o tempo –
tinha coisas mais interessantes para fazer quando chegasse a casa do que
dedicar-se lá aos deveres escolares.
Todas as
escolas por onde passara tinham um ritmo de ensino diferente, era muito
complicado manter-se num padrão, e, de certa maneira, sabia que seus professores
reconheciam que esse podia ser um dos maiores empecilhos na sua educação além
da sua falta de vontade nos estudos – verdade seja dita, com o incentivo certo,
Santiago tirava boas notas.
Gostava de
sentir o vento sacudir-lhe os cabelos, o ar puro da natureza e olhar os Tauros
Paldeanos nas pastagens com sua pelagem negra sacudida pelo vento. Por vezes, trazida
por ventos distantes, sentia na pele um pouco do calor do Deserto Assado, cujas
dunas mais altas cobriam grande parte do horizonte a norte.
Nada melhor
que um pouquito de música alta em seu rádio velho para o acompanhar na viagem.
(…)
AI O MEU GATO LAMBE-ME A PASSARINHAAA
QUANDO PASSA A LINGUA NELA FICA TODA
MOLHADINHAA
(…)
Era estes
pequenos momentos que usava para reflectir sobre si e sobre a vida, sem pressa
alguma, desejando que as viagens com a família também adotassem o mesmo tipo
pacato de ritmo para poder ficar muito mais tempo a apreciar cada lugar que
Paldea tinha para oferecer.
Acontece que
da forma que ele era azarado, óbvio que seria atacado por algum Pokémon
selvagem atraído pela música bizarra do rádio.
Quando dera
por si, o Fuecoco sorria de modo malicioso na sua direção.
Foi quando
tropeça numa formiga cinzenta.
Este tipo de
formiga geralmente portava um cesto encarnado cheio de moedas ou uma moeda
encarnada nas costas, mas aquela pequena Gimmighoul não era portadora de nada.
A cicatriz que lhe esboçava o olho era familiar, pois o jovem a reconhecia de muitos
encontros anteriores
Oh… Olá amiguinha… És tu outra vez! – Santiago baixou-se para a receber, com um
sorriso.
Um sorriso
completamente alheio a tudo o que acontecia sempre que ele tinha o encontro
fatídico com aquela formiga.
Todo o dia.
Todos os dias
desde que viera estudar para Porto Marinada.
A formiga deu
um pulo, e sumiu na direção atrás das costas de Santiago.
Santiago olhou
para trás, e notou a cara furiosa de um grande e imponente Tauros de fogo quase
encostado a si, bufando seu hálito quente e seus chifres em brasa.
O pobre garoto
engole a seco.
Entre o pelo
da testa do touro negro, lá estava a maldita formiga travessa, e em cada um dos
lados do Tauros, dois Sableyes aprontando encrenca.
Roubem tudo o que conseguirem! Apanhem-no
sem fracasso desta vez! – brandiu a Gimmighoul, como um pirata que apontava
uma espada ao ar ao comandar seus marinheiros.
Santiago
desata a correr.
Estava
habituado a andar tanto tempo a pé, por isso, ainda lhe restava imensas forças
para tamanha maratona.
Se ele tivesse
cordas vocais, de certeza absoluta que estaria na maior gritaria de sempre,
enquanto era perseguido pelo grupo peculiar comandado pela pequena formiga
cinzenta.
No final do
trilho, a Cavidade Colunata erguia-se com suas longas colunas de pedra e
telhado rochoso, e, com ela, um campo cheio de carroças bem à moda antiga. Apesar
da evolução da tecnologia no mundo Pokémon estar mais avançada que nunca, estas
carroças ainda dependiam de tração animal para se moverem.
Os Ginkgo não
gostavam nada de expor suas vidas privadas, portanto montaram todo o
acampamento numa das zonas mais distantes de Porto Marinada – onde, nos últimos
tempos, todas as manhãs iam fazer negócio.
O primeiro a
se dar conta da aproximação de Santiago e Piri-Piri fora um Wyrdeer de pelagem
extremamente branca, deitado a repousar, perto do portão de entrada dos campos,
que nem um Growlithe de guarda. O cansaço em seu olhar denunciava ser o Pokémon
mais velho da família, acompanhando-os já há inúmeras gerações. Ergueu as
orelhas e um pouco da cabeça para cima, ao ouvir o som das pisadas apressadas do
humano na terra batida da estrada, e, atrás dele, o som de algo mais. Era tanto
velho que até já lhe faltava um chifre e parte do outro estava quebrada, por
isso o pessoal o chamava de Elliot, em homenagem a um personagem de um desenho
animado antigo.
Quando entrou
no acampamento, ofegante, e desejando toda a proteção do mundo, o rapaz acenou
a todos num desespero único, que retribuíram o gesto, o recebendo com boa
disposição como quem entendiam que tal movimento era apenas uma maneira de
dizer ‘’pessoal, estou em casa’’.
Acontece que
quase ninguém compreendia o que ele estava a querer dizer mesmo, pelo menos até
o Wyrdeer avistar o grupo liderado pelo Tauros furioso e se erguer com
dificuldade, mostrando-lhes o seu chifre afiado á distância.
O chifre era
único, intimidante.
A formiga
estremece com a visão, reconhecendo que aquele não era território onde devia
penetrar, e apesar de odiar desistir, entregou-se outra vez ao fracasso, ordenando
então a seus recrutas para darem meia volta, e assim desaparecem na mata,
enquanto prometiam um regresso.
Santiago solta
um suspiro de alívio, escondido atrás da densa pelagem branca do velho Wyrdeer.
Mais um dia
que conseguiu sobreviver.
Apesar da sua
sobrevivência ser quase como um fantasma para a família.
Enquanto
recuperava o fôlego, notou que todos já haviam chegado dos pontos estratégicos
que estipularam durante a manhã para as actividades mercantes, e se preparavam
para jantar. Descarregavam e organizavam as carroças, pelos vistos o dia fora
em cheio para seus negócios.
O Fuecoco
comilão procurou o aroma indistinguível da refeição a ser preparada na zona
central do acampamento. Santiago aproximou-se do velho Elliot, acariciou-lhe o
focinho e deu-lhe uma baga que tinha colhido durante a caminhada: uma das
poucas que encontrara e que sobrevivera ao Fuecoco faminto, como agradecimento
por ele ser sempre a sua salvação.
As carroças
eram expostas em semicírculos, uns dentro de outros, todos ao redor da grande
fogueira central onde o jantar era preparado e servido. As que obtinham
mercadorias mais valiosas tais como os alimentos da guilda, eram posicionadas no
círculo interior, enquanto as que serviam para pernoitar eram as do exterior, adotando
a pose de grande muralha de proteção.
Todas eram
praticamente iguais, seguindo o padrão de cores azul, amarelo e branco e o brasão
clássico dos Gingko, mas Santiago sabia perfeitamente que a sua era a carruagem
que ficava mesmo perto da entrada, guardada e puxado pelo velho Elliot.
Desligou o
rádio, para não levar sermão de ninguém com relação a maus ensinamentos que
podiam ser passados com aquelas músicas de Giratina.
Isto porque a
carroça não era apenas dele.
Ao abrir a
lona que cobria a entrada, Santiago viu-se envolto numa chuva intensa de
abraços calorosos que o receberam na sua chegada. Aquele era um dos principais
motivos de não poder estudar as matérias nem conseguir fazer grande coisa de
trabalhos escolares em casa.
Tinha que dar
uma de babysitting a todo aquele
grupinho composto pelos integrantes mais novos da família.
Tinha que
partilhar o seu quarto com uns cinco ou seis irmãos ou primos bem mais novos
que ele.
Os apertos
eram tantos que o pobre miúdo não conseguiu respirar e muito menos podia pedir
ajuda.
Tenham calma – Santiago tentou pedir
entre sulplicas, mas estava difícil. As crianças gostavam mesmo dele. – Já vamos brincar. Deixem organizar minhas
coisas primeiro.
Face a tamanho
reboliço, o velho Wyrdeer vigilante manteve a cabeça na entrada da carroça,
observando cada movimento dos humanos, como quem esperava mais berries.
O ar sério e
presença súbita do Pokémon pareceu acalmar mais as crianças, que se
enfileiraram.
O interior da
carroça parecia bem mais espaçoso e acolhedor do que visto por fora, lembrando
muito um quarto normal, apesar de mais pequeno e todo coberto por uma grande e pesada
lona que protegia do vento, frio, e chuva.
Santiago
arrumou sua mochila num canto e depois mudou suas roupas – seus pais exigiam
sempre que todos usassem os trajes típicos da família em casa. Depois sentou-se
no meio das crianças, que formavam um círculo no chão de madeira.
Algum silêncio
instalou-se, apesar do mesmo não ter sido lá muito prolongado.
– O que vamos
fazer hoje, Florian? – começou um dos meninos.
– Estou com
fome, o jantar já está pronto? – disse outra das crianças.
Piri-Piri
surgiu algum tempo depois, com um grande naco de carne de Tauros e bochechas de
Lechonk mal cozidas na boca, rasgando gargalhadas dos miúdos. Piri-Piri tinha
sempre a resposta quando o assunto era comida.
O crocodilo escondeu-se
debaixo da cama, saboreando cada peça num prazer indescritível enquanto
cantarolava a sua felicidade. Devorou tudo em instantes. Saiu e voltou várias
vezes, sempre com algo variado na boca, até mesmo alimentos crus. Lá fora
Santiago ouvia constantemente sua avó – a cozinheira – rogando pragas a altos
berros, para o maldito Fuecoco desaparecer de uma vez por todas e parar de lhe
roubar a comida e estragar o jantar, pois se o ritmo continuasse, não iriam ter
nada pronto na hora certa.
Entre os
berros histéricos da mulher, as crianças começaram a inundar o jovem de
perguntas, pois desejavam toda a atenção do mundo ao saber como correra o seu
dia.
– O avô é um
chato e não nos deixou subir naquela árvore que tem no fundo da estrada,
podemos ir lá contigo? Por favorrr – pediu uma delas, quase numa súplica.
O garoto
sorriu com suas covinhas, mas disse não com a cabeça. Não se importaria de as
levar lá, mas se era um não dos mais velhos, era um não.
– Vamos ouvir
música? – falou outra das crianças, mexendo na mochila escolar do rapaz ao se
sentar ao lado desta em cima da cama e descobrindo o seu velho rádio a pilhas á
medida que fofocava o interior da bolsa.
Em poucos
minutos, todo o seu material encontrara-se espalhado por todo o interior da
carroça, mas Santiago não pareceu se importar com isso, muito pelo contrário,
se divertia sem os repreender muito.
O que
importava era as crianças estarem a se divertir com a nova distração, e, pelo
menos, se o caderno dos seus deveres fosse estragado acidentalmente, tinha em
mãos as provas e não tinha que voltar a inventar aos professores que um Wyrdeer
velho e barbudo lhe comera os trabalhos de casa.
Entre toda a
zaragata que as crianças começaram a fazer com os papéis e chuva de lápis e
livros, e ainda a tentar descobrir como o rádio funcionava, o olhar de Santiago
cruzou-se com o de uma das meninas mais novas do grupo.
A pequena
abraçou mais o seu boneco de trapos, e falou, baixinho, entre as vozes altas de
todos.
– Hoje encontraste-te com Raika, a Pirata? –
perguntou ela, de forma inocente e quase inaudível.
Mas Santiago tinha
a sua audição bem aguçada.
Aquela menina
era uma garotinha tímida e quieta que andava quase sempre com um típico vestido
rosa, e Santiago gostava muito dela por ela ser, entre todas aquelas crianças,
a mais bem comportada, e aquela que sempre vinha com ideias criativas de
atividades para fazer em primeiro lugar.
Sim – respondeu-lhe em língua gestual.
Os seus olhos
encheram-se de brilho. Ela em particular gostava muito das histórias de Raika,
a Pirata, que era, nada mais, nada menos, o nome que o grupo deu à Gimmighoul
maldita que monta um imprudente Tauros de fogo e ainda tem dois Sableyes como
seus lacaios.
Santiago
sentiu um calafrio, não era grande fã de se relembrar daqueles ladrões que o
tentavam assaltar em todos os seus encontros, mas respirou fundo e tentou
contar o encontro do dia a todos através de seus gestos. Fazia tudo por aquelas
crianças.
Uma a uma,
todas começaram a ficar interessadas no encontro daquele dia. Era sempre a
mesma perseguição, o encontro e a fuga, sem tirar nem por, mas vez ou outra o
jovem lá inventava algo, para os meninos não perderem o interesse por completo
pela personagem e sua história.
Para as
crianças que não entendiam língua gestual, o garoto escrevia a história numa
folha a parte para as crianças lerem e compreenderem.
Quando foi com
a mão a uma das folhas soltas do seu caderno arrancada pelas crianças,
surpreendeu-se ser a folha que escrevera com os apontamentos daquele mesmo dia
nas aulas.
‘’Tesouro…’’
‘’…da Ruína’’.
Bateu com os
olhos na palavra que escreveu entre os apontamentos e lembrou-se do livro da
professora.
E as crianças,
tão atenciosas que eram, seguiram o olhar do jovem, lendo também o que chamara
tanto a atenção dele.
– O que é um
Tesouro da Ruína? – perguntou uma delas, já entusiasmada pela informação nove
que acabara de receber.
– É algum
doce? Dá para comer? – questionou outra.
– A Pirata
arruinou sua própria moeda? – falou um garoto, que não compreendera nada do que
estava a ocorrer e interpretara tudo errado.
De facto,
apesar de ser um conto popular em Paldea, aquelas crianças não pareciam lá
muito familiarizadas com este. Logo, a curiosidade estava desperta. E muito.
E o próprio
rapaz viu-se perdido, pois não se recordava de nada daquela história em
particular que, de um instante para o outro, todos ambicionavam ouvir.
Olhou para o
seu Fuecoco, talvez ele conseguisse ajudar.
Só talvez…
Piri-Piri
atirou uma pequena bola de chama, causada por um arroto monótono, e caiu para o
lado, adormecido em tédio.
Era uma ideia
mesmo idiota pensar que ele lhe podia ajudá-lo.
E as crianças
começaram a ficar ainda mais inquietas, em busca de respostas que o jovem não
lhes conseguiria dar.
Foi quando sentiu
o som das carroças vizinhas a se movimentarem. Não hesitou, espreitando o que
ocorria lá fora por um buraco na lona que servia como janela.
A carroça que
ficava mesmo estacionada atrás da sua fora substituída por uma outra, e agora
pertencia ao círculo interior. Santiago estranhou, aquela carruagem não era o
dormitório de ninguém, sendo aquela onde se guardava livros e manuscritos
empoeirados que ninguém lembrava mais da existência.
Talvez, por
lá, existisse algum livro que falasse sobre os Tesouros da Ruína.
Bingo.
Fiquem aqui e não saiam daqui, vou buscar o
que vocês querem – disse ele, com gestos apressados, às crianças. – Portem-se bem.
– O que ele
disse? – falou uma delas, que não entedia língua gestual, após ver o jovem
sair.
Hoje em dia jovens
e adultos com seus Rotom phones acediam a qualquer tipo de informação e
qualquer tipo de livro em menos de um segundo através da Internet. Por isso,
poucos lhes compravam aquele tipo de material, assim aquela carroça era
considerada parte das mercadorias menos valiosas da família.
A não ser que
o principal avaliador dos produtos tivesse visto algum valor naquele amontoado
de papelada velha, em vez de estar ali somente á espera de ser descartada,
tornando-se lenha na fogueira durante as noites mais frias.
Santiago saiu
da sua carruagem e aproximou-se, tendo como companhia o velho Wyrdeer. Um homem
na casa dos cinquenta com o traje típico dos Gingkgo dava ordens a uma vasta galinha
bípede cor de fogo. Apesar de seu corpo lingrinhas, o Pokémon dava todo o
esforço para posicionar a carruagem no local pretendido e agradar seu
treinador.
O Blaziken
parou o serviço quando seu treinador acenou na direção do filho, notando a
aproximação silenciosa deste.
– Então,
Santi, a escola correu bem, filho? – cumprimentou-o.
O rapaz moveu
a cabeça de modo afirmativo, com um sorriso leve, e, de seguida, apontou com
seu dedo indicador para a carroça que estava a ser movida.
– Hã, isto
filho? Bem, apenas hoje saiu-nos um golpe de sorte. – explicou, e Santiago
acenou em concordância, como quem já esperava uma resposta seca daquelas.
– Tá tudo
marado – disse um outro homem nas proximidades, com o seu sotaque
característico.
O tio de
Santiago era bem semelhante ao seu irmão, e vinha acompanhado de um enorme Rillaboom,
mas diferente do pai de Santiago, aquele homem tinha um ar bem mais carrancudo,
daquele tipo que tinha que se meter nos assuntos de todos e suas palavras serem
o veredicto final, mesmo que ele não tivesse nada haver com aquilo.
– Algum
problema? – Questionou o pai de Santiago, com desconfiança, já a começar a
ignorar o filho.
– Pra quê isto?
Ninguém vai comprar nada! – Exclamou o irmão.
– Foi um livro
encontrado debaixo da escadaria da escola local durante as obras, um dos
edifícios mais antigos de cá, como não pode valer nada? Um livro raro e muito
antigo que não deve existir em mais lugar nenhum.
– Lixo! Desperdício
de dinheiro!
– Deve ser um
balúrdio para coleccionadores!
Santiago
revirou os olhos, quando era ele a questionar algo dos negócios, nunca falavam
nada, e isso o deixava revoltado. Não o deixavam ajudar, e muito menos
conversavam sobre o tema.
Afastou-se,
regressado a sua carroça de mãos vazias, pela infelicidade das crianças.
Ele depois
inventaria algo para as entreter e esquecer aqueles devaneios.
Ver seu pai e
seu tio discutirem por causa do valor das mercadorias recém-adquiridas era um
espectáculo excêntrico, que sempre podia ir além dos limites, e, para ninguém
apanhar por tabela, o melhor era manter sempre distância quando ocorria algo
que tivesse o assunto de dinheiro envolvido.
Mas não deixou
de sentir uma certa inquietação pelo misticismo daquela informação.
Será que tinha
alguma coisa relacionada com o acontecimento estranho que ocorrera na
biblioteca naquele dia? A sensação misteriosa que sentira nas prateleiras
quando a professora afastou-se da sua mesa? A súbita mudança de energia, que
tanto estava ruim, como ficou boa?
Não sabia, e
não havia certezas se iria descobrir assim tão cedo.