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- Capítulo 8 – Astronomia Náutica – Parte 1
Primeiras
batalhas são sempre eventos importante na vida de alguém.
E, por algum
motivo, ver a Julie combater me trouxe algumas memórias, e com as memórias, vem
lições. Existem lições que se aprendem e ficam marcadas para toda a vida, mas
outras, por algum dos motivos incontáveis da rotina, são perdidas no
esquecimento.
E estas
memórias que vieram outra vez até mim, não são recordações simples da minha
primeira batalha Pokémon.
Mas tem
relação à minha última.
O dia estava
cinzento.
Devia ser um
dos dias mais cinzentos que eu vira desde o momento que eu saíra em jornada
anos atrás. Mas respirei fundo e procurei manter a calma. Há muito tempo que eu
me preparava para aquele momento. E naquela particular tarde, eu só queria
relaxar.
Deixei os
dedos deslizarem pelas teclas do piano. Quando comecei a tocar, a chuva no
exterior começou a cair, produzindo um constante pingue pingue no beiral do
apartamento, que acompanhava a minha melodia.
Não podia
levar o meu instrumento musical nas minhas aventuras – os motivos eram mais que
óbvios, quem arrastaria um grande e pesado piano? – Foram incontáveis as vezes
que, longe dali, eu me continha para não voltar a correr para casa para o poder
tocar.
Senti-lo
ressoar em mim era como um vício, e todos nós sabemos como são os vícios. Os
vícios podem ser prejudiciais, mas também muito prazerosos.
Os vícios
deixam-se levar.
Tal como eu
deixei-me levar naquele momento.
Explorei
várias músicas. Desbravei algumas outras que me deixavam sempre confusa,
repetindo notas as vezes necessárias para as aperfeiçoar. Parei poucas vezes
para comtemplar o dia negro que se fazia lá fora, através da marquise da sala. O
apartamento se localizava numa das ruas mais verdes e menos movimentadas na
periferia de Mesagoza, pois eu nunca fui fã da confusão do interior da maior
cidade de Paldea.
Eu iria sentir
falta dos dias passados ali, apesar de estar inquieta em voltar a viver nas
terrinhas que me viram nascer a sul da região.
Em poucos
minutos, raios começaram a ressoar no céu, como se fosse um combate de Pokémon
elétricos sendo realizado no meio das árvores mais próximas.
Respirei
fundo, inspirada pelo cenário.
Dias negros
como aquele costumavam ser vistos como dias tristes, mas posso garantir que,
apesar de alguns detalhes que por agora não são chamados para esta história,
nas próximas horas, a tristeza não foi a única coisa que me fora abençoada com
a chuva.
Virei-me para
a frente no meu lugar para continuar a tocar. As músicas que eu já conhecia transformaram-se,
gradualmente, em algo novo. Em algo que, até hoje, fluiu de tal maneira que eu
não sei explicar.
Sempre que
praticava, a música sempre se transformava, tal como o nosso crescimento ao
longo da vida. Muitas vezes, eu sentia que as minhas canções acompanhavam as
mudanças do meu próprio corpo.
Tanto que
algumas coisas só surgiam no momento certo.
E o que eu
estranhei naquele toque, foi como a música que eu comecei pareceu diferente.
Mais especial.
E continuei a
tocar, sentindo a fluidez do ritmo percorrer-me, até atingir o ápice do meu
espírito.
Mas, de
súbito, senti alguém agarrar-me pelas costas, no preciso instante que outro
trovão ressuou no cenário escuro com sua luz.
Meu coração
disparou, fazendo minhas mãos descambarem para o lado, produzindo uma longa e
arrepiante nota indesejada, que estragara o momento final da minha melodia.
Virei-me logo,
contra ele, afastando o seu abraço de mim.
– QUE SUSTO! –
lembro-me de lhe dizer, zangada. – NÃO SABES ESPERAR EU ACABAR, SEU PASPALHO!
Mas eu não
conseguia ficar muito tempo zangada sempre que ele me olhava com aquele maldito
sorriso e aqueles malditos olhos cor de avelã. De repente, só o vejo atirar-se
para trás no sofá, com uma cerveja na mão – o desgraçado acabava sempre o stock da bebida, e nunca deixava garrafa
alguma sequer para eu temperar a comida quando cozinhava.
– Paspalho… – ele repetiu a palavra, para
me provocar. – Agora no preciso momento final da nossa jornada, é que estás a
aprender algumas palavras no meu bom
português.
Aquilo
irritou-me tanto que só me apeteceu dar-lhe uma bofetada na cara.
Teria acabado
tudo ali mesmo se soubesse o que sei hoje. Porém, aquele Eu passado dele não se comparava nada ao que aquele homem se tornou
nos anos que se seguiram, como se fosse duas pessoas distintas.
Talvez, por
isso mesmo, ainda consigo lembrar-me tanto bem daqueles tempos simples, apesar
de já não sorrir pensando no quanto eu era feliz na época ao lado dele.
É uma pena que
não dá simplesmente para apagar uma pessoa nojenta que nos marcou tanto nas
nossas memórias, ou voltar atrás e procurar o momento certo para mudar a
trajetória das coisas…
– Bah… Déjame cabrón. Hijo de puta… – murmurei,
frustrada, e isso soltou uma gargalhada de meu antigo companheiro, pois ele
adorava brincar com minha cara, e se excitava ainda mais quando eu o maltratava
em Espanhol.
Virei-me então
para a frente, e procurei começar outra vez a tocar.
Mas agora eu
perdera aquele ritmo fantástico que eu encontrara e não sabia mais como voltar
à mesma estrada.
Ele
interrompeu-me outra vez, com sua vozinha irritante. Eu já devia ter aprendido
à muito tempo que ele gostava de me ver assim furiosa. Eu ficava sempre assim
irritadiça quando meus momentos eram estragados.
– Então,
quando vais desmontar e enfiar ai o meu
velhadas na caixa? – ele questionou,
apontando com sua garrafa de cerveja para o piano. Ele sempre tratava o nosso piano pelo nome de velhadas.
Parei de tocar
nas teclas.
Ao meu redor a
paisagem era dominada por grandes caixas espalhadas pelo chão cheias de tralhas,
algumas caixas empilhadas faziam torres tão altas que quase atingiam o teto do
apartamento.
Ainda estava a
ser difícil acreditar que iríamos mudar-nos. Aquelas caixas, e o ambiente ao
redor a se transformar e desaparecer era o sinal que relembrava constantemente
o rumo que a vida tomava, e todos os planos que tínhamos para tentar acompanhar
essa mesma mudança.
Era tudo um
sinal que mostrava a porta antiga a se fechar. E outra, nova, a se abrir.
– Depois eu o
arrumo, mas não agora. – disse, tocando mais algumas das notas. – Estou a me
preparar para o combate de amanhã.
– Ai estás?… –
ele arqueou a sobrancelha, pois para ele, que não entendia nada do assunto, via
o tocar no piano como algo banal. – Teus Pokémon nem estão fora da Pokéball.
– Estamos mais
que prontos. Sem falar que eu estava mal disposta de manhã, e quero dedicar o
resto do meu tempo a algo que goste, agora que estou me sentindo melhor.
– Mal
disposta? Chama-se ressaca – disse, sarcástico, mas ignorei. – Deve ter sido o
bolo de laranja que fizeste, os ovos estavam há muito tempo no frigorífico.
E deu mais um
trago na sua garrafa, o som de cada um dos seus goles rápidos me despontou os
nervos enquanto eu observava cada tecla cintilante do piano à minha frente.
– Mas a sério.
Devias estar treinando. Não pareces nada preocupada e é a Grande Final – ele disse, sobressaindo as palavras Grande Final na sua língua.
– Descanso mental
consegue ser mais importante que treinamento físico. – foi o que lhe respondi,
e, logo a seguir, lembrei-me de algo para o provocar. – Ah! Sim! Mas tu não
chegas-te a aprender isso pois nunca passas-te nem do terceiro ginásio!
– Claro que
passei! – ele começou a rir – Quando assisti o teu combate.
– Nem entraste
dentro do edifício para me veres lutar, seu triste. Ou te esqueces-te que nesse
dia comeste azeitonas estragadas em Cortondo e ficaste mais de doze horas confinado
na retrete?
O homem
levantou-se de súbito, muito sério, fazendo-me virar a cara outra vez para o
piano, encolher-me e corar. Ele tinha aquela magia estranha de me intimidar, e
eu não gosto nada de pensar nas vezes que eu caia sempre nos joguinhos malditos
dele.
Senti os seus
braços me envolverem, a pressão do corpo dele contra o meu naquele abraço. Procurou
agarrar-me, empurrando-me contra o piano e beijando o meu pescoço. Seus lábios
húmidos me dominavam pouco a pouco enquanto as mãos exploravam minuciosamente
as partes que mais excitavam no meu corpo. As suas dentadas me deixavam louca,
tanto que fora difícil não retribuir aquela súbita paixão incontrolável. Quando
dei por mim, nossas línguas molhadas dançavam ao som da chuva do exterior.
Suas mãos
começaram a ir mais abaixo, trespassando as minhas roupas, já com segundas
intenções. Mas antes de deixar-me levar, como já me havia deixado tanta vez com
ele, levantei-me e empurrei-o contra o sofá, deixando-o cair de costas.
Fixei-o,
frente a frente.
– Agora não.
– Já que não
queres treinar… Vais dizer que não queres te divertir comigo? Nem um bocadinho?
– questionou-me com tom sedutor, e eu senti o bafo hipnotizante dele a cerveja
tocar-me na cara.
Acontece que
não resisti de ser jovem burra e ignorante e queria ser dominante, deixando-me
cair, ficando sentada por cima, usando meu peso para pressioná-lo contra o
assento. Hoje em dia sinto um certo nível de repulsa com as brincadeiras tolas
e imaturas que eu fazia. Ele sorria para mim com aqueles dentes brancos que foi
difícil evitar não retribuir o sorriso no momento. Éramos adultos jovens e nunca
nos cansávamos dos prazeres carnais. Sempre preferi torturá-lo e deixá-lo louco
mergulhado em desejo do que entregar-me logo a cem por cento.
Depois de
trocar-mos mais alguns beijos, fixei-o uns momentos, e senti uma pontada de
tristeza começar a surgir.
– A sério que
não vais ficar para me ver combater na final?
Ele
envolveu-me e puxou-me pelo pescoço, para mais perto dele, e murmurou no meu
ouvido.
– Meu amor, há
dias não fazemos nada… Vamos mais é… curtir…
– o comentário incrédulo, com sua voz de sacana, fez-me revirar os olhos e voltar
a empurrá-lo contra o assento, pois aquilo não era bem verdade. Ele apenas não
queria mudar de assunto.
E voltou a
beijar-me, começando a desabotoar o botão das calças, ansioso.
Eu o contive
de avançar.
– Eu disse,
agora não. – forcei um tom difícil, pois a verdade é que, bem lá no fundo, eu
queria o mesmo que ele. – Responde a minha pergunta.
Vi-o soltar um
suspiro de aborrecimento.
– Tu és uma
chata, sabias?... – fiz-lhe um olhar assassino, para ver se ele se explicava.
– Okay… Okay… Ouve. Eu sei o quanto é
importante para ti, mas tu sabes que combates Pokémon nunca foi meu tipo. E eu
tenho que, tipo, tratar com certa urgência de uns assuntos pendentes com os
tais gajos. Além disso…
E olhou para o
lado, encarando uma das pilhas dos grandes caixotes das mudanças que se
acumulavam no chão da marquise, perto do sofá.
– Vou levar
parte deste lixo para casa dos meus pais em Porto Marinada. Talvez consiga enganar
algum idiota e ganhar um bom dinheiro vendendo o que eu não quero no mercado, e
arranjar o suficiente para acelerar as obras na tua casa em Cabo Poco… Bom, se a
casa não for atingida por outro temporal antes e cair de vez.
– Não te
preocupes com isso. Vou fazer uma mansão reforçada com o dinheiro que ganhar
amanhã. Não preciso que te incomodes tanto... Mas é fofinho da tua parte.
Pensar na casa
dos meus pais não era um assunto que eu gostasse muito de recordar, mas tudo
iria ficar bem graças ao ápice da fama e glória que eu estava prestes a receber.
Só faltava o teste final e tudo seria perfeito. No final da próxima semana ia
voltar a morar lá com aquele pateta e o troféu da Liga Pokémon em mãos – sim,
eu me sentia muito optimista para o desafio, até demais, e as consequências
disso se mostraram.
Sai de cima
dele – pela tristeza dele, que tentou puxar-me de volta – e dirigi-me a uma das
caixas do monte em separado que ele passara as últimas semanas a organizar.
Comecei
removendo de lá vários objetos, roupas, decorações, e atirando tudo na direção
dele, só para me divertir.
– Para de
desarrumar as minhas coisas! – ele exclamou, irritado por levar com calças velhas
e sujas em cima da cabeça.
– Oh? O que é
isto?! – continuei a desbravar as coisas dele, com um sorriso travesso.
Finalmente
começava a o atingir. A bochechas dele ficavam sempre bem vermelhinhas quando
ele ficava irritado, e eu adorava, da mesma maneira que ele adorava ver-me
vermelha.
Continuei a
mergulhar mais, quase enfiando todo o meu corpo no interior do grande caixote.
Era tão bom
pegar em objetos familiares e recordar o local onde o mesmo fora obtido. Às
vezes era interessante pensar como a mais pequena e frágil coisa carregava
tanta energia preciosa, e ali dentro tinha tudo o que se podia imaginar que
fora acumulado nas nossas viagens.
E também o que
não se esperava encontrar.
Parei algum
tempo analisando o estranho instrumento de cordas que achei cobrindo o fundo da
caixa, entre várias meias e boxers soltos. Depois, retirei aquilo com cuidado,
mostrando-lhe o achado.
– Por Arceus! Tu
vais deitar isto fora?! – exclamei para ele, ao remover do fundo da caixa uma
velha guitarra.
Uma guitarra
de Paldea Ocidental. Uma guitarra genuína.
O homem fixou-me,
incrédulo.
– Porque
queres que eu guarde isso?
– Talvez
porque é a tua imagem de marca?!
– Faz semanas
que nem toco nela e só agora te lembras que ela existe?! – ele começou a rir,
depois mudou de tom. – Pretendo comprar uma melhor e mais moderna quando tiver
oportunidade no futuro. Eu não preciso mais dela.
Arqueei a
sobrancelha na direção dele. No momento, foi difícil acreditar que aquele
sacana queria deitar mesmo aquilo fora, porque era a coisa mais preciosa dele.
Mas depois, comecei a sorrir, maliciosamente.
Era uma
oportunidade de ouro.
– Nesse caso…
Então acho que posso finalmente DESFAZER A MINHA RAIVA! – comecei, segurando no
objeto com tamanha força, pronta para o esbarrar contra a parede.
– O QUÊ? – ele
exclamou, arrependido, tentando me conter. – Eu ainda estou sem tocar isso para
não te incomodar nos treinos e é assim que pagas?!
Vocês não
sabem o ódio que eu tinha naquela coisa.
Todos os dias
de manhã eu acordava com ele a afinar o som irritante das cordas daquela
porcaria, e cantando umas quantas músicas todas desafinadas. Pior era quando
ele me fazia serenatas desajeitadas quando estava bêbado, ajoelhado, quase
caindo para o lado. Até quando foi o dia de nosso noivado ele não largava aquilo
por nada, tanto que no baile dançou mais com aquela coisa na mão do que comigo,
a sua própria esposa!
Graças a
Arceus que isso estava para mudar.
Porém, eu não
tive coragem de destruir o objeto, parando bem a tempo, antes de o partir
contra a parede. Quando fixei os olhos assustadiços dele, senti uma pontada de
pena.
Verdade seja
dita, há muito tempo que ele não tocava nela, e eu a odiava tanto que me tinha
esquecido que ela existia quando esta e seu som tinham desaparecido da minha
vida naquelas miseráveis semanas.
E na altura
pensei que bem que podia ter desaparecido para sempre.
O tempo muda em qualquer lugar
no brinquedo a cor vai desvanecer
Ver as coisas num ângulo diferente.
Minha querida, podes crer...
E maldita foi
a hora que evitei esbarrar a guitarra contra a parede.
Quando dei por
mim, ele a tinha removido das minhas mãos, e lá estava ele, deitado no sofá a
vibrar as cordas e a cantar a irritante musiquinha favorita dele, que na altura
não tinham sentido nem propósito algum além de, provocar-me, para ver se
conquistava o que queria de mim.
Ouviria o som
das cordas daquele instrumento muitos mais anos do que aqueles que eu desejava.
Mas, na altura
eu não liguei as pontas.
O dia cinzento. A música celestial no piano.
A guitarra desaparecida…
Era difícil
imaginar que eram sinais para uma brincadeira que para breve Arceus entregaria.
Os
especialistas da área do competitivo diziam que a Geeta, a mais recente Campeã
da Liga Pokémon de Paldea, era uma das Campeãs mais fracas do mundo Pokémon.
Uns defendiam
a ideia que tal fraqueza era intencional por parte da jovem adulta, que já conquistara
uma grande legião de fãs pelo seu carisma. Já outros comentavam que Geeta não devia
ser subestimada e podia dar uma dor de cabeça se os treinadores fossem
apanhados desprevenidos.
Qual a opção
mais correta? Muitos não sabiam o dizer.
Eu devia ter
esperado e acreditar no que acreditasse por minha própria experiência, mas eu
estava cega, acreditando vivamente que ia ganhar aquela final. Os rumores alimentavam
meu ego sempre que eu estudava e lia os artigos nas revistas para me preparar,
formulando as mais diversas estratégias na cabeça, decorando até mesmo o moveset conhecido dos seis monstrinhos
que La Primera sempre apresentava em
campo.
Paldea tinha
mais de um treinador com o título de Campeão, mas Geeta era a que estava no
topo de todos eles, por isso os motivos de ela ser chamada por todos de La Primera.
E todos diziam
o mesmo nos artigos que eu encontrava:
Geeta.
A campeã mais fácil do Mundo Pokémon.
Podia ter
chegado longe, mas existia uma verdade que na altura nunca se tinha revelado ao
certo na minha jornada, por culpa da minha sorte contra todos os desafios: Eu ainda
tinha muito que aprender sobre o real sentido do termo fraqueza.
Muita coisa
não era o que parecia ser. E, às vezes, combates Pokémon envolvem não só o
Pokémon, mas também o próprio treinador.
Estava tanto cega
e certa sobre o desfecho do meu próximo combate, que aguardar pelas batalhas
contra os membros da Elite Quatro foram uma situação mais assustadora que o
tempo de espera do início daquele conflito.
Derrubara os
Quatro com uma perna às costas, Geeta dizia-se ser fácil, então a derrubaria
com as duas.
Continuei
sentada na bancada. Já tinha tomado horas antes uma aspirina para ver se a dor
de cabeça passava, e agora bebia água gaseificada para ver se arrotava e ficava
me sentindo mais leve. Não queria sentir outro mal-estar antes da hora do
combate. Não sabia o que estava ocorrendo, mas acordei sentindo-me assim, tal
como na véspera. Estava despenteada mas isso não importava, poucos iriam
reparar, pois estariam mais atentos aos movimentos dos meus Pokémon do que à
imagem da própria treinadora.
O homem da
recepção do edifício chegou-se até mim com toda a papelada necessária.
Diferente do
que ocorria em outras regiões, onde os combates atraiam milhares de pessoas e
eram realizados em estádios enormes e muito bem iluminados, com transmissões televisivas
em direto para o mundo inteiro, em Paldea, a Liga Pokémon e as batalhas de Ginásio
eram vistas como eventos restritos, muito pessoais, que ocorriam em espaços
mais casuais.
Treinadores de
outras regiões estavam habituados às grandes multidões e aos gritos eufóricos de
apoio vindos nas arquibancadas. Mas aqui em Paldea, tínhamos a opção de combater
sem público à porta fechada, ou com um público muito limitado à nossa escolha,
e muitos optavam pela primeira opção para não passarem vergonha em frente às
famílias.
Já eu, enquanto
assinava, marquei o quadrado ‘’autorizo’’.
Queria que o
mundo inteiro visse a minha batalha contra a famosa La Primera.
Depois de ler
o contrato melhor e assinar os espaços necessários, tomei uma cópia para mim e
devolvi a papelada ao homem, que me pediu para aguardar enquanto tratava do
resto.
Senti uma
pontada de dores de cabeça. A aspirina já não tinha efeito. Fui com a mão à
testa, para me certificar se estava ou não com febre. Não queria nada cancelar
o evento por causa de uma pequena mal disposição qualquer, pois não sabia quando
teria outra oportunidade destas.
Ali perto,
dois homens comiam à boca cheia o que eu tinha preparado em casa à algum tempo
atrás. Não tinha tomado o pequeno-almoço, nem almoçado, nem nada disso o resto
do dia, caso contrário, vomitava. Tinha trazido alguns doces caseiros para ver
se engolia alguma coisa antes da grande final.
– Estás com má
cara, tens certeza que querer prosseguir? – um dos homens questionou-me,
preocupado.
– Este bolo
está muito bom! Já te disse, tens que investir em pastelaria e vender para
fora! – o outro disse, levando uma cotovelada do mais velho por ter comentado
algo tão inoportuno de boca cheia.
– Acordei
assim, também estava assim ontem, e á alguns dias atrás, mas passou. Mas parece
que hoje estou pior que nunca. – respondi, contendo um enjoo.
– Não devias
combater assim…
– Acho que foi
os ovos do bolo de laranja que fiz. É a única coisa diferente que ando a comer –
acrescentei, fazendo o mais novo cuspir uma das fatias que ingeria à boca
cheia, e isso fez-me rir, apesar do meu estado. – Bem… Obrigado por virem me apoiar,
já que aquele paspalho fugiu com o
rabo entre as pernas para casa dos pais.
– A Geeta tem
uma personalidade que muitos descrevem como forte. Tem cuidado.
Não liguei
muito à recomendação de Maurício, apesar de me ter apercebido que o olhar do
meu amigo desejava traduzir algo mais. E mesmo que ele dissesse esse algo mais,
ele sabia que não dava para mudar minhas ideias na hora.
Naquele instante,
o homem da recepção voltou, com as papeladas prontas. Cheguei-me até o balcão.
– A final será
realizada às nove e meia da noite. Pedimos desculpa por não conseguirmos marcar
a hora mais cedo… A Geeta prefere combater a horas tardias. Ainda foi uma sorte
ela não ter escolhido as quatro da manhã…
Não era por
acaso que a embarcação vista como símbolo da Liga Pokémon de Paldea era uma
caravela. Ali em cima, parecíamos navegar num barco no meio do nada, em alto
mar, em busca do desconhecido, almejando um mundo novo.
Estávamos
entre montanhas. O grande edifício a céu aberto se situava bem à beira das
escarpas que circundavam a Grande Cratera de Paldea. A vista até ela era de
cortar a respiração. As nuvens constantes saiam como fumaça do interior da cratera
e inundava todo o nosso redor num nevoeiro baixo e tão concentrado que lembrava
as ondas do mar embatendo no litoral.
A maresia que
vinha das profundezas da região parecia diferente, mais leve do que o ar em qualquer
outro canto que eu alguma vez visitara.
Era estranho
pensar que iria combater mesmo ao lado de uma das zonas mais enigmáticas da
região, que contribuíra para a perdição de tanta gente ao longo da nossa
história. O abismo trazia ganância que atraia muitas pobres almas para suas
profundezas com falsas promessas.
Estava tão
concentrada a apreciar a enormíssima cavidade cheia de nuvens mesmo ali ao lado
que mal dei conta dos gritos eufóricos da multidão se intensificando ao meu
redor, quando uma mulher surgiu e se posicionou do outro lado do campo. O campo
de batalha era feito em azulejo com um padrão que lembrava uma bússola ou rosa
dos ventos colorida, com seus ponteiros procurando a direção certa.
Quando ouvi
outra vez os gritos dos espectadores, respirei fundo e encarei-a.
A mulher
realizou um gesto para me saudar, encostando o dedo indicador em frente à cara.
Tal gesto deu a impressão de copiar o ponteiro da bússola estampada debaixo dos
nossos pés, como se ela rezasse os dogmas de alguma doutrina desconhecida.
Não consigo
traduzir por outras palavras o efeito que aquela saudação me transmitiu.
Notá-la, pela
primeira vez, entre a escuridão, foi como se ela tivesse sempre existido ao meu
lado, a me observar com seu olhar constante. A mulher era mais nova do que eu
alguns anos, mas, agora, vista em pessoa, não parecia humana.
Suas roupas
eram justas, escuras como a noite, e seus longos cabelos negros contavam com
manchas brilhantes, em cores tão profundas que se enquadravam com o céu
cintilante que existia por cima de nós, muito além das nuvens.
Nunca me tinha
apercebido dos motivos de La Primera combater
apenas durante a noite. Mas a resposta atingiu-me ali, estivera sempre à minha
frente, pois ela vestia-se subtilmente como um céu estrelado.
Alguns não
gostavam de encarar sozinhos o universo cintilante, estampado em milhões de
pontinhos faiscantes, que a noite nos entregava por cima de nossas cabeças.
Outros tinham medo por não entenderem o desconhecido. Já muitos sentiam
desconforto com a sensação sufocante de escuridão total que ficava quando as
nuvens cobriam a paisagem até o horizonte.
Os holofotes
do estádio se intensificaram para dar abertura ao combate com a chegada da
Campeã, e quase me cegaram quando cortaram o meio da penumbra.
Eu estava
optimista com o desafio, todos diziam que ela era fraca. Mas só então notei o que já devia ter notado: eu não estava
olhando para uma treinadora qualquer.
As vozes da
multidão nos rodeando cessaram, dando lugar ao silêncio total, para conseguirem
escutar o seu sussurro. Senti um arrepio quando finalmente ouvi a sua voz. A sensação
que me dominou foi como se o meu subconsciente se tivesse materializado de um
segundo para o outro.
E agora,
encontrava-se a conversar, diretamente comigo.
– Vou fazer
uma pergunta, se não parecer muito oportuno. – ela começou, numa afirmação um
tanto caricata.
Seus olhos
brilhantes me fixavam, e mal piscavam. Ela me analisava não só por fora, mas
também por dentro, explorando cada um dos meus mais íntimos pensamentos, procurando
arrancar alguma verdade à muito tempo esquecida no interior de mim.
Senti uma gota
de suor escorrer-me da testa.
Recuei um
passo.
O sorriso
estampado na sua face pareceu se intensificar ao ver a forma como eu estava
descambando.
E não vou
mentir que senti uma pontada de pânico. Durante todo o dia acreditei que estava
tudo controlado, mas não estava, agora que finalmente a escutava e a fitava à
minha frente.
A presença
dela transmitia uma energia surreal, como se todos os meus medos estivessem a
se manifestar, apesar de não saber bem quais deles eram, nem entender o porquê.
– Quem és tu? – ouvia questionar-me.
A sensação que
me dominou foi como se eu soubesse, desde o início da minha história, que Geeta
me faria aquela pergunta quando o momento chegasse. Afinal, estava olhando para
a personificação da zona mais profunda do meu próprio iceberg.
Nunca ninguém fez
aquela questão para mim, assim tão abertamente. Admito que também nunca pensei
muito nela. Quem és tu? vindo com sua
voz, era uma pergunta bem diferente, e eu não queria apenas dizer o simples
sobre o meu nome e sobre a pessoa que eu era, ou que eu na época acreditava que
me tinha tornado graças à jornada que passei.
Mas se não
fosse isso, então, o que eu lhe iria responder?
Hesitei uns
instantes, sem saber. Aquela era uma pergunta clássica, que sempre via
personagens fictícias realizar em histórias, filmes, livros… Mas agora, na vida
real, era complicado formular uma resposta adequada para entregar a tamanha
figura e a tanta gente atenta que me fitava.
Afinal aquele
combate era a Grande Final. Aquele
combate era o ápice.
Respirei
fundo. E soltei o que me lembrai, insegura. Não era exactamente o que eu queria
dizer, mas não me veio nada melhor ao pensamento, e não a quis deixar muito
tempo à espera.
– Chamo-me
Haruka. Tenho vinte e sete anos e estou aqui para ganhar e conquistar o título
de Campeã.
La Primera foi com a mão ao bolso, vi
uma esfera encarnada surgindo devagar, cintilando em seus dedos.
Decidi também
me preparar.
– Muito bem –
comentou de modo automático, fechando os olhos lentamente. – São poucos os que chegam
até aqui. Achas mesmo que este é o teu destino, Haruka?
– Destino?
Pff… Eu não acredito muito nisso – disse-lhe, tomada por um pouco de surpresa
pelo tema que ela abordava. – Estou aqui porque conquistei o lugar com o poder dos
meus Pokémon. E estou prestes a te tirar o título de Campeã, tomando-o para
mim.
A multidão
agitou-se com a minha frase. Consegui distinguir meus dois melhores amigos nas
arquibancadas. Até hoje não sei como tive coragem para aquela ameaça face ao
medo que me percorria. Maurício fez-me um sinal quando reparou que eu o olhava,
me encorajando, e Bombur continuava com a caixa cheia de pastelarias,
enfardando os meus bolos tamanha era a ansiedade que sentia.
– Eu vim de um
lugar distante, e, durante muito tempo, não sabia como navegar nos caminhos de
Paldea. Até descobrir que podia tomar qualquer trajetória. – La Primera começou a dizer, elevando a
Pokéball ao nível do peito, e realizando outra vez aquele gesto sinistro que
lhe era característico. – Se é esta a rota que traças no mapa, então vamos
começar.
E soltou a sua
esfera ao ar.
Vi o raio
descer no céu como uma estrela cadente, materializando à minha frente um pesado
Pokémon como se tivesse testemunhado a queda de um meteoro sob a terra. O
elefante de Geeta tinha um corpo semelhante a um bloco de cimento, a pele dura
esverdeada era adornada com várias manchas de cobre.
A multidão
começou a gritar, eufórica, e eu também revi meus cálculos. Ninguém esperava
que ela solta-se um grande e imponente Copperajah, pois não era um Pokémon que
constasse na sua equipa no histórico de batalhas que ela realizou até então. A
estreia do monstrinho despontou em mim uma adrenalina que me dizia para dar
tudo de mim naquele combate.
Por momentos,
comecei a pensar que não devia ter ligado tanto ao que me diziam os
especialistas e as revistas, nem confiado em toda a sorte que gastei contra a
Elite Quatro e contra os Líderes de Ginásio.
E Geeta não esperava outra coisa.
A vida de
Padeira de Cabo Poco obrigava Haruka se deitar cedo para cedo erguer.
Já fazia parte
da rotina elevar-se de madrugada, bem antes do sol nascer, para ter as
encomendas de pão e outros produtos frescos a tempo da abertura da loja. Os
seus Pokémon ajudavam e aceleravam bastante no processo, mas a humana, mesmo
assim, dava preferência ao ato de deitar-se cedo e ficar a ver televisão na
cama até o João Pestana chegar para a cumprimentar.
Mal chegara a
casa, Juliana já sabia onde encontrar sua mãe.
A porta da
frente estava trancada, para evitar clientes entrando nas horas que a loja encontrava-se
fechada, por isso, a das traseiras era sempre aberta para uso restrito às
habitantes da casa.
Juliana entrou
assim pela cozinha, cumprimentou os Pokémon que nela ainda trabalhavam em
algumas limpezas mais minuciosas, subiu a enorme escadaria da casa e atravessou
o corredor na direção do quarto da mãe.
O quarto
ficava muito próximo do seu, isso fazia com que, muitas noites, quando saia de
casa às escondidas, a mãe notasse a sua chegada a meio da noite, antes de
acordar para o serviço, pois sentia suas passadas.
Bateu à porta,
e esperou ouvir um ‘’entra’’ para o fazer.
A televisão do
quarto estava ligada, mas com o som baixo em algum canal de música clássica.
Haruka encontrava-se deitada, fixando um livro, iluminada pela luz pálida de um
abajur que existia por cima do seu criado-mudo.
Juliana
aproximou-se devagar.
– Porque não
ficaste até o final do meu combate?
A mulher marcou
a página, fechou o livro e pouso o objeto debaixo do abajur, ao lado de uma
esfera bicolor.
Ela ainda
demorou um pouco a processar o que fazer a seguir, fitando o local. Eventualmente
agarrou na esfera, e atirou-a na direção da filha, como quem não queria aquilo
assim tão perto dela.
A rapariga
conseguiu amparar o objeto como uma bola antes desta cair no chão.
– Eu cumpro
minha palavra. Fica lá com ele. Mas posso garantir-te que vai existir algumas regras
aqui dentro quanto a ele fora da Pokéball. – disse, virando-lhe a cara. – Agora
se me deres licença, eu preciso de estar um pouco sozinha…
Juliana
concordou sem palavras. Era o mais correto dar-lhe espaço. Ela sabia que a mãe
sentia um certo nível de remorso.
Todavia, estava
tão entusiasmada com sua conquista que correra porta fora, abraçando a sua
Pokéball como quem não tinha nada mais de valioso, e desrespeitando um pouco as
regras que ainda não tinham sido implementadas.
O diálogo com
a mãe não iria parar por ali, e, mal por mal, Juliana tinha noção disso, porém,
não deixou de soltar a enorme criatura no meio do corredor e apresentar-lhe
todos os cantos da nova casa.
Haruka retomou
a leitura do seu livro, envolta em pensamentos, quando sentiu um estrondo na
parte da cozinha no andar debaixo da casa.
– NÃOO! VOLTA
AQUI COM MEU SUMO DE LARANJA! – ouviu a voz da rapariga entre mais outro
estrondo e outro estrondo.
E, depois de
ainda mais um estrondo na cozinha, o ambiente foi tomado por um silêncio
absoluto.
A mulher suspirou.
Esfregou as
têmporas, pensativa.
Não tinha
disposição alguma para gritar com ela agora, iria deixar ela limpar os estragos
sozinha e não comentar absolutamente nada sobre, para ver mesmo se ela o fazia.
Esperava encontrar a cozinha impecável quando acordasse, na hora do serviço.
Outro assunto
pendente percorreu-lhe o pensamento quando fixou o relógio para confirmar as
horas. Passava pouco das nove e meia da noite.
– Eu… Eu tenho
que a contar… – murmurou Haruka para o seu Skwovet, que encontrava-se dentro de
uma cesta que existia por cima de uma prateleira atrás dela. – Mas… Como é que
eu o vou fazer?...
Senhor Nozes desceu
a parede e esfregou a sua bochecha na da treinadora, encorajando-a a avançar.
Mas antes de
ir ter com ela, a mulher precisava de continuar a rever cantos profundos das
suas memórias, em busca da mensagem mais adequada para a ocasião.
O mais interessante nesse capítulo é que esperando pra ver o desfecho da batalha da Juliana, onde ela finalmente ganharia o direito a ter o Koraidon, a gente é surpreendido com alguns flashbacks da Haruka.
ResponderExcluirÉ interessante trazer o background dela, porque isso nos ajuda a entender algumas coisas por trás da relação dela com a Juliana. Desde esse relacionamento problemático do passado, até sua carreira como treinadora, que aparentemente não terminou muito bem após a batalha contra a Geeta.
Mas no fim a Juli conseguiu o Koraidon. Vamos ver no que isso vai acarretar. Espero que a Haruka não venha a se arrepender de ter cumprido com a sua palavra kkkkkkkkkkkk
Até a próxima! õ/
O arrependimento da Haruka tá batendo á porta neste preciso momento. kkk
ExcluirMuito obrigado pelo comentário, Shads! Este e o 9 são os meus Capítulos favoritos de AEP até agora e fico muito feliz em saber que gostou e surpreendeu! Os dois eram para ser um só mas cortei por motivo de tamanho kkk sorry
Até a próxima!