Posted by : Shiny Reshiram 31 de out. de 2023


Primeiras batalhas são sempre eventos importante na vida de alguém.


E, por algum motivo, ver a Julie combater me trouxe algumas memórias, e com as memórias, vem lições. Existem lições que se aprendem e ficam marcadas para toda a vida, mas outras, por algum dos motivos incontáveis da rotina, são perdidas no esquecimento.


E estas memórias que vieram outra vez até mim, não são recordações simples da minha primeira batalha Pokémon.


Mas tem relação à minha última.


O dia estava cinzento.


Devia ser um dos dias mais cinzentos que eu vira desde o momento que eu saíra em jornada anos atrás. Mas respirei fundo e procurei manter a calma. Há muito tempo que eu me preparava para aquele momento. E naquela particular tarde, eu só queria relaxar.


Deixei os dedos deslizarem pelas teclas do piano. Quando comecei a tocar, a chuva no exterior começou a cair, produzindo um constante pingue pingue no beiral do apartamento, que acompanhava a minha melodia.


Não podia levar o meu instrumento musical nas minhas aventuras – os motivos eram mais que óbvios, quem arrastaria um grande e pesado piano? – Foram incontáveis as vezes que, longe dali, eu me continha para não voltar a correr para casa para o poder tocar.


Senti-lo ressoar em mim era como um vício, e todos nós sabemos como são os vícios. Os vícios podem ser prejudiciais, mas também muito prazerosos.


Os vícios deixam-se levar.


Tal como eu deixei-me levar naquele momento.


Explorei várias músicas. Desbravei algumas outras que me deixavam sempre confusa, repetindo notas as vezes necessárias para as aperfeiçoar. Parei poucas vezes para comtemplar o dia negro que se fazia lá fora, através da marquise da sala. O apartamento se localizava numa das ruas mais verdes e menos movimentadas na periferia de Mesagoza, pois eu nunca fui fã da confusão do interior da maior cidade de Paldea.


Eu iria sentir falta dos dias passados ali, apesar de estar inquieta em voltar a viver nas terrinhas que me viram nascer a sul da região.


Em poucos minutos, raios começaram a ressoar no céu, como se fosse um combate de Pokémon elétricos sendo realizado no meio das árvores mais próximas.


Respirei fundo, inspirada pelo cenário.


Dias negros como aquele costumavam ser vistos como dias tristes, mas posso garantir que, apesar de alguns detalhes que por agora não são chamados para esta história, nas próximas horas, a tristeza não foi a única coisa que me fora abençoada com a chuva.


Virei-me para a frente no meu lugar para continuar a tocar. As músicas que eu já conhecia transformaram-se, gradualmente, em algo novo. Em algo que, até hoje, fluiu de tal maneira que eu não sei explicar.


Sempre que praticava, a música sempre se transformava, tal como o nosso crescimento ao longo da vida. Muitas vezes, eu sentia que as minhas canções acompanhavam as mudanças do meu próprio corpo.


Tanto que algumas coisas só surgiam no momento certo.


E o que eu estranhei naquele toque, foi como a música que eu comecei pareceu diferente.


Mais especial.



E continuei a tocar, sentindo a fluidez do ritmo percorrer-me, até atingir o ápice do meu espírito.


Mas, de súbito, senti alguém agarrar-me pelas costas, no preciso instante que outro trovão ressuou no cenário escuro com sua luz.


Meu coração disparou, fazendo minhas mãos descambarem para o lado, produzindo uma longa e arrepiante nota indesejada, que estragara o momento final da minha melodia.


Virei-me logo, contra ele, afastando o seu abraço de mim.


– QUE SUSTO! – lembro-me de lhe dizer, zangada. – NÃO SABES ESPERAR EU ACABAR, SEU PASPALHO!


Mas eu não conseguia ficar muito tempo zangada sempre que ele me olhava com aquele maldito sorriso e aqueles malditos olhos cor de avelã. De repente, só o vejo atirar-se para trás no sofá, com uma cerveja na mão – o desgraçado acabava sempre o stock da bebida, e nunca deixava garrafa alguma sequer para eu temperar a comida quando cozinhava.


Paspalho… – ele repetiu a palavra, para me provocar. – Agora no preciso momento final da nossa jornada, é que estás a aprender algumas palavras no meu bom português.


Aquilo irritou-me tanto que só me apeteceu dar-lhe uma bofetada na cara.


Teria acabado tudo ali mesmo se soubesse o que sei hoje. Porém, aquele Eu passado dele não se comparava nada ao que aquele homem se tornou nos anos que se seguiram, como se fosse duas pessoas distintas.


Talvez, por isso mesmo, ainda consigo lembrar-me tanto bem daqueles tempos simples, apesar de já não sorrir pensando no quanto eu era feliz na época ao lado dele.


É uma pena que não dá simplesmente para apagar uma pessoa nojenta que nos marcou tanto nas nossas memórias, ou voltar atrás e procurar o momento certo para mudar a trajetória das coisas…


– Bah… Déjame cabrón. Hijo de puta… – murmurei, frustrada, e isso soltou uma gargalhada de meu antigo companheiro, pois ele adorava brincar com minha cara, e se excitava ainda mais quando eu o maltratava em Espanhol.


Virei-me então para a frente, e procurei começar outra vez a tocar.


Mas agora eu perdera aquele ritmo fantástico que eu encontrara e não sabia mais como voltar à mesma estrada.


Ele interrompeu-me outra vez, com sua vozinha irritante. Eu já devia ter aprendido à muito tempo que ele gostava de me ver assim furiosa. Eu ficava sempre assim irritadiça quando meus momentos eram estragados.


– Então, quando vais desmontar e enfiar ai o meu velhadas na caixa? – ele questionou, apontando com sua garrafa de cerveja para o piano. Ele sempre tratava o nosso piano pelo nome de velhadas.


Parei de tocar nas teclas.


Ao meu redor a paisagem era dominada por grandes caixas espalhadas pelo chão cheias de tralhas, algumas caixas empilhadas faziam torres tão altas que quase atingiam o teto do apartamento.


Ainda estava a ser difícil acreditar que iríamos mudar-nos. Aquelas caixas, e o ambiente ao redor a se transformar e desaparecer era o sinal que relembrava constantemente o rumo que a vida tomava, e todos os planos que tínhamos para tentar acompanhar essa mesma mudança.


Era tudo um sinal que mostrava a porta antiga a se fechar. E outra, nova, a se abrir.


– Depois eu o arrumo, mas não agora. – disse, tocando mais algumas das notas. – Estou a me preparar para o combate de amanhã.


– Ai estás?… – ele arqueou a sobrancelha, pois para ele, que não entendia nada do assunto, via o tocar no piano como algo banal. – Teus Pokémon nem estão fora da Pokéball.


– Estamos mais que prontos. Sem falar que eu estava mal disposta de manhã, e quero dedicar o resto do meu tempo a algo que goste, agora que estou me sentindo melhor.


– Mal disposta? Chama-se ressaca – disse, sarcástico, mas ignorei. – Deve ter sido o bolo de laranja que fizeste, os ovos estavam há muito tempo no frigorífico.


E deu mais um trago na sua garrafa, o som de cada um dos seus goles rápidos me despontou os nervos enquanto eu observava cada tecla cintilante do piano à minha frente.


– Mas a sério. Devias estar treinando. Não pareces nada preocupada e é a Grande Final – ele disse, sobressaindo as palavras Grande Final na sua língua.


– Descanso mental consegue ser mais importante que treinamento físico. – foi o que lhe respondi, e, logo a seguir, lembrei-me de algo para o provocar. – Ah! Sim! Mas tu não chegas-te a aprender isso pois nunca passas-te nem do terceiro ginásio!


– Claro que passei! – ele começou a rir – Quando assisti o teu combate.


– Nem entraste dentro do edifício para me veres lutar, seu triste. Ou te esqueces-te que nesse dia comeste azeitonas estragadas em Cortondo e ficaste mais de doze horas confinado na retrete?


O homem levantou-se de súbito, muito sério, fazendo-me virar a cara outra vez para o piano, encolher-me e corar. Ele tinha aquela magia estranha de me intimidar, e eu não gosto nada de pensar nas vezes que eu caia sempre nos joguinhos malditos dele.


Senti os seus braços me envolverem, a pressão do corpo dele contra o meu naquele abraço. Procurou agarrar-me, empurrando-me contra o piano e beijando o meu pescoço. Seus lábios húmidos me dominavam pouco a pouco enquanto as mãos exploravam minuciosamente as partes que mais excitavam no meu corpo. As suas dentadas me deixavam louca, tanto que fora difícil não retribuir aquela súbita paixão incontrolável. Quando dei por mim, nossas línguas molhadas dançavam ao som da chuva do exterior.


Suas mãos começaram a ir mais abaixo, trespassando as minhas roupas, já com segundas intenções. Mas antes de deixar-me levar, como já me havia deixado tanta vez com ele, levantei-me e empurrei-o contra o sofá, deixando-o cair de costas.


Fixei-o, frente a frente.


– Agora não.


– Já que não queres treinar… Vais dizer que não queres te divertir comigo? Nem um bocadinho? – questionou-me com tom sedutor, e eu senti o bafo hipnotizante dele a cerveja tocar-me na cara.


Acontece que não resisti de ser jovem burra e ignorante e queria ser dominante, deixando-me cair, ficando sentada por cima, usando meu peso para pressioná-lo contra o assento. Hoje em dia sinto um certo nível de repulsa com as brincadeiras tolas e imaturas que eu fazia. Ele sorria para mim com aqueles dentes brancos que foi difícil evitar não retribuir o sorriso no momento. Éramos adultos jovens e nunca nos cansávamos dos prazeres carnais. Sempre preferi torturá-lo e deixá-lo louco mergulhado em desejo do que entregar-me logo a cem por cento.


Depois de trocar-mos mais alguns beijos, fixei-o uns momentos, e senti uma pontada de tristeza começar a surgir.


– A sério que não vais ficar para me ver combater na final?


Ele envolveu-me e puxou-me pelo pescoço, para mais perto dele, e murmurou no meu ouvido.


– Meu amor, há dias não fazemos nada… Vamos mais é… curtir… – o comentário incrédulo, com sua voz de sacana, fez-me revirar os olhos e voltar a empurrá-lo contra o assento, pois aquilo não era bem verdade. Ele apenas não queria mudar de assunto.


E voltou a beijar-me, começando a desabotoar o botão das calças, ansioso.


Eu o contive de avançar.


– Eu disse, agora não. – forcei um tom difícil, pois a verdade é que, bem lá no fundo, eu queria o mesmo que ele. – Responde a minha pergunta.


Vi-o soltar um suspiro de aborrecimento.


– Tu és uma chata, sabias?... – fiz-lhe um olhar assassino, para ver se ele se explicava. –  Okay… Okay… Ouve. Eu sei o quanto é importante para ti, mas tu sabes que combates Pokémon nunca foi meu tipo. E eu tenho que, tipo, tratar com certa urgência de uns assuntos pendentes com os tais gajos. Além disso…


E olhou para o lado, encarando uma das pilhas dos grandes caixotes das mudanças que se acumulavam no chão da marquise, perto do sofá.


– Vou levar parte deste lixo para casa dos meus pais em Porto Marinada. Talvez consiga enganar algum idiota e ganhar um bom dinheiro vendendo o que eu não quero no mercado, e arranjar o suficiente para acelerar as obras na tua casa em Cabo Poco… Bom, se a casa não for atingida por outro temporal antes e cair de vez.


– Não te preocupes com isso. Vou fazer uma mansão reforçada com o dinheiro que ganhar amanhã. Não preciso que te incomodes tanto... Mas é fofinho da tua parte.


Pensar na casa dos meus pais não era um assunto que eu gostasse muito de recordar, mas tudo iria ficar bem graças ao ápice da fama e glória que eu estava prestes a receber. Só faltava o teste final e tudo seria perfeito. No final da próxima semana ia voltar a morar lá com aquele pateta e o troféu da Liga Pokémon em mãos – sim, eu me sentia muito optimista para o desafio, até demais, e as consequências disso se mostraram.


Sai de cima dele – pela tristeza dele, que tentou puxar-me de volta – e dirigi-me a uma das caixas do monte em separado que ele passara as últimas semanas a organizar.


Comecei removendo de lá vários objetos, roupas, decorações, e atirando tudo na direção dele, só para me divertir.


– Para de desarrumar as minhas coisas! – ele exclamou, irritado por levar com calças velhas e sujas em cima da cabeça.


– Oh? O que é isto?! – continuei a desbravar as coisas dele, com um sorriso travesso.


Finalmente começava a o atingir. A bochechas dele ficavam sempre bem vermelhinhas quando ele ficava irritado, e eu adorava, da mesma maneira que ele adorava ver-me vermelha.


Continuei a mergulhar mais, quase enfiando todo o meu corpo no interior do grande caixote.


Era tão bom pegar em objetos familiares e recordar o local onde o mesmo fora obtido. Às vezes era interessante pensar como a mais pequena e frágil coisa carregava tanta energia preciosa, e ali dentro tinha tudo o que se podia imaginar que fora acumulado nas nossas viagens.


E também o que não se esperava encontrar.


Parei algum tempo analisando o estranho instrumento de cordas que achei cobrindo o fundo da caixa, entre várias meias e boxers soltos. Depois, retirei aquilo com cuidado, mostrando-lhe o achado.


– Por Arceus! Tu vais deitar isto fora?! – exclamei para ele, ao remover do fundo da caixa uma velha guitarra.


Uma guitarra de Paldea Ocidental. Uma guitarra genuína.


O homem fixou-me, incrédulo.


– Porque queres que eu guarde isso?


– Talvez porque é a tua imagem de marca?!


– Faz semanas que nem toco nela e só agora te lembras que ela existe?! – ele começou a rir, depois mudou de tom. – Pretendo comprar uma melhor e mais moderna quando tiver oportunidade no futuro. Eu não preciso mais dela.


Arqueei a sobrancelha na direção dele. No momento, foi difícil acreditar que aquele sacana queria deitar mesmo aquilo fora, porque era a coisa mais preciosa dele. Mas depois, comecei a sorrir, maliciosamente.


Era uma oportunidade de ouro.


– Nesse caso… Então acho que posso finalmente DESFAZER A MINHA RAIVA! – comecei, segurando no objeto com tamanha força, pronta para o esbarrar contra a parede.


– O QUÊ? – ele exclamou, arrependido, tentando me conter. – Eu ainda estou sem tocar isso para não te incomodar nos treinos e é assim que pagas?!


Vocês não sabem o ódio que eu tinha naquela coisa.


Todos os dias de manhã eu acordava com ele a afinar o som irritante das cordas daquela porcaria, e cantando umas quantas músicas todas desafinadas. Pior era quando ele me fazia serenatas desajeitadas quando estava bêbado, ajoelhado, quase caindo para o lado. Até quando foi o dia de nosso noivado ele não largava aquilo por nada, tanto que no baile dançou mais com aquela coisa na mão do que comigo, a sua própria esposa!


Graças a Arceus que isso estava para mudar.


Porém, eu não tive coragem de destruir o objeto, parando bem a tempo, antes de o partir contra a parede. Quando fixei os olhos assustadiços dele, senti uma pontada de pena.


Verdade seja dita, há muito tempo que ele não tocava nela, e eu a odiava tanto que me tinha esquecido que ela existia quando esta e seu som tinham desaparecido da minha vida naquelas miseráveis semanas.


E na altura pensei que bem que podia ter desaparecido para sempre.


 

O tempo muda em qualquer lugar


no brinquedo a cor vai desvanecer


Ver as coisas num ângulo diferente.


Minha querida, podes crer...

 

E maldita foi a hora que evitei esbarrar a guitarra contra a parede.



Quando dei por mim, ele a tinha removido das minhas mãos, e lá estava ele, deitado no sofá a vibrar as cordas e a cantar a irritante musiquinha favorita dele, que na altura não tinham sentido nem propósito algum além de, provocar-me, para ver se conquistava o que queria de mim.


Ouviria o som das cordas daquele instrumento muitos mais anos do que aqueles que eu desejava.


Mas, na altura eu não liguei as pontas.


O dia cinzento. A música celestial no piano. A guitarra desaparecida…


Era difícil imaginar que eram sinais para uma brincadeira que para breve Arceus entregaria.



Os especialistas da área do competitivo diziam que a Geeta, a mais recente Campeã da Liga Pokémon de Paldea, era uma das Campeãs mais fracas do mundo Pokémon.


Uns defendiam a ideia que tal fraqueza era intencional por parte da jovem adulta, que já conquistara uma grande legião de fãs pelo seu carisma. Já outros comentavam que Geeta não devia ser subestimada e podia dar uma dor de cabeça se os treinadores fossem apanhados desprevenidos.


Qual a opção mais correta? Muitos não sabiam o dizer.


Eu devia ter esperado e acreditar no que acreditasse por minha própria experiência, mas eu estava cega, acreditando vivamente que ia ganhar aquela final. Os rumores alimentavam meu ego sempre que eu estudava e lia os artigos nas revistas para me preparar, formulando as mais diversas estratégias na cabeça, decorando até mesmo o moveset conhecido dos seis monstrinhos que La Primera sempre apresentava em campo.


Paldea tinha mais de um treinador com o título de Campeão, mas Geeta era a que estava no topo de todos eles, por isso os motivos de ela ser chamada por todos de La Primera.


E todos diziam o mesmo nos artigos que eu encontrava:


Geeta.


A campeã mais fácil do Mundo Pokémon.


Podia ter chegado longe, mas existia uma verdade que na altura nunca se tinha revelado ao certo na minha jornada, por culpa da minha sorte contra todos os desafios: Eu ainda tinha muito que aprender sobre o real sentido do termo fraqueza.


Muita coisa não era o que parecia ser. E, às vezes, combates Pokémon envolvem não só o Pokémon, mas também o próprio treinador.


Estava tanto cega e certa sobre o desfecho do meu próximo combate, que aguardar pelas batalhas contra os membros da Elite Quatro foram uma situação mais assustadora que o tempo de espera do início daquele conflito.


Derrubara os Quatro com uma perna às costas, Geeta dizia-se ser fácil, então a derrubaria com as duas.


Continuei sentada na bancada. Já tinha tomado horas antes uma aspirina para ver se a dor de cabeça passava, e agora bebia água gaseificada para ver se arrotava e ficava me sentindo mais leve. Não queria sentir outro mal-estar antes da hora do combate. Não sabia o que estava ocorrendo, mas acordei sentindo-me assim, tal como na véspera. Estava despenteada mas isso não importava, poucos iriam reparar, pois estariam mais atentos aos movimentos dos meus Pokémon do que à imagem da própria treinadora.


O homem da recepção do edifício chegou-se até mim com toda a papelada necessária.


Diferente do que ocorria em outras regiões, onde os combates atraiam milhares de pessoas e eram realizados em estádios enormes e muito bem iluminados, com transmissões televisivas em direto para o mundo inteiro, em Paldea, a Liga Pokémon e as batalhas de Ginásio eram vistas como eventos restritos, muito pessoais, que ocorriam em espaços mais casuais.


Treinadores de outras regiões estavam habituados às grandes multidões e aos gritos eufóricos de apoio vindos nas arquibancadas. Mas aqui em Paldea, tínhamos a opção de combater sem público à porta fechada, ou com um público muito limitado à nossa escolha, e muitos optavam pela primeira opção para não passarem vergonha em frente às famílias.


Já eu, enquanto assinava, marquei o quadrado ‘’autorizo’’.


Queria que o mundo inteiro visse a minha batalha contra a famosa La Primera.


Depois de ler o contrato melhor e assinar os espaços necessários, tomei uma cópia para mim e devolvi a papelada ao homem, que me pediu para aguardar enquanto tratava do resto.


Senti uma pontada de dores de cabeça. A aspirina já não tinha efeito. Fui com a mão à testa, para me certificar se estava ou não com febre. Não queria nada cancelar o evento por causa de uma pequena mal disposição qualquer, pois não sabia quando teria outra oportunidade destas.


Ali perto, dois homens comiam à boca cheia o que eu tinha preparado em casa à algum tempo atrás. Não tinha tomado o pequeno-almoço, nem almoçado, nem nada disso o resto do dia, caso contrário, vomitava. Tinha trazido alguns doces caseiros para ver se engolia alguma coisa antes da grande final.


– Estás com má cara, tens certeza que querer prosseguir? – um dos homens questionou-me, preocupado.


– Este bolo está muito bom! Já te disse, tens que investir em pastelaria e vender para fora! – o outro disse, levando uma cotovelada do mais velho por ter comentado algo tão inoportuno de boca cheia.


– Acordei assim, também estava assim ontem, e á alguns dias atrás, mas passou. Mas parece que hoje estou pior que nunca. – respondi, contendo um enjoo.


– Não devias combater assim…


– Acho que foi os ovos do bolo de laranja que fiz. É a única coisa diferente que ando a comer – acrescentei, fazendo o mais novo cuspir uma das fatias que ingeria à boca cheia, e isso fez-me rir, apesar do meu estado. – Bem… Obrigado por virem me apoiar, já que aquele paspalho fugiu com o rabo entre as pernas para casa dos pais.


– A Geeta tem uma personalidade que muitos descrevem como forte. Tem cuidado.


Não liguei muito à recomendação de Maurício, apesar de me ter apercebido que o olhar do meu amigo desejava traduzir algo mais. E mesmo que ele dissesse esse algo mais, ele sabia que não dava para mudar minhas ideias na hora.


Naquele instante, o homem da recepção voltou, com as papeladas prontas. Cheguei-me até o balcão.


– A final será realizada às nove e meia da noite. Pedimos desculpa por não conseguirmos marcar a hora mais cedo… A Geeta prefere combater a horas tardias. Ainda foi uma sorte ela não ter escolhido as quatro da manhã…



Não era por acaso que a embarcação vista como símbolo da Liga Pokémon de Paldea era uma caravela. Ali em cima, parecíamos navegar num barco no meio do nada, em alto mar, em busca do desconhecido, almejando um mundo novo.


Estávamos entre montanhas. O grande edifício a céu aberto se situava bem à beira das escarpas que circundavam a Grande Cratera de Paldea. A vista até ela era de cortar a respiração. As nuvens constantes saiam como fumaça do interior da cratera e inundava todo o nosso redor num nevoeiro baixo e tão concentrado que lembrava as ondas do mar embatendo no litoral.


A maresia que vinha das profundezas da região parecia diferente, mais leve do que o ar em qualquer outro canto que eu alguma vez visitara.


Era estranho pensar que iria combater mesmo ao lado de uma das zonas mais enigmáticas da região, que contribuíra para a perdição de tanta gente ao longo da nossa história. O abismo trazia ganância que atraia muitas pobres almas para suas profundezas com falsas promessas.


Estava tão concentrada a apreciar a enormíssima cavidade cheia de nuvens mesmo ali ao lado que mal dei conta dos gritos eufóricos da multidão se intensificando ao meu redor, quando uma mulher surgiu e se posicionou do outro lado do campo. O campo de batalha era feito em azulejo com um padrão que lembrava uma bússola ou rosa dos ventos colorida, com seus ponteiros procurando a direção certa.


Quando ouvi outra vez os gritos dos espectadores, respirei fundo e encarei-a.


A mulher realizou um gesto para me saudar, encostando o dedo indicador em frente à cara. Tal gesto deu a impressão de copiar o ponteiro da bússola estampada debaixo dos nossos pés, como se ela rezasse os dogmas de alguma doutrina desconhecida.


Não consigo traduzir por outras palavras o efeito que aquela saudação me transmitiu.


Notá-la, pela primeira vez, entre a escuridão, foi como se ela tivesse sempre existido ao meu lado, a me observar com seu olhar constante. A mulher era mais nova do que eu alguns anos, mas, agora, vista em pessoa, não parecia humana.


Suas roupas eram justas, escuras como a noite, e seus longos cabelos negros contavam com manchas brilhantes, em cores tão profundas que se enquadravam com o céu cintilante que existia por cima de nós, muito além das nuvens.


Nunca me tinha apercebido dos motivos de La Primera combater apenas durante a noite. Mas a resposta atingiu-me ali, estivera sempre à minha frente, pois ela vestia-se subtilmente como um céu estrelado.


Alguns não gostavam de encarar sozinhos o universo cintilante, estampado em milhões de pontinhos faiscantes, que a noite nos entregava por cima de nossas cabeças. Outros tinham medo por não entenderem o desconhecido. Já muitos sentiam desconforto com a sensação sufocante de escuridão total que ficava quando as nuvens cobriam a paisagem até o horizonte.


Os holofotes do estádio se intensificaram para dar abertura ao combate com a chegada da Campeã, e quase me cegaram quando cortaram o meio da penumbra.


Eu estava optimista com o desafio, todos diziam que ela era fraca. Mas só então notei o que já devia ter notado: eu não estava olhando para uma treinadora qualquer.


As vozes da multidão nos rodeando cessaram, dando lugar ao silêncio total, para conseguirem escutar o seu sussurro. Senti um arrepio quando finalmente ouvi a sua voz. A sensação que me dominou foi como se o meu subconsciente se tivesse materializado de um segundo para o outro.


E agora, encontrava-se a conversar, diretamente comigo.


– Vou fazer uma pergunta, se não parecer muito oportuno. – ela começou, numa afirmação um tanto caricata.


Seus olhos brilhantes me fixavam, e mal piscavam. Ela me analisava não só por fora, mas também por dentro, explorando cada um dos meus mais íntimos pensamentos, procurando arrancar alguma verdade à muito tempo esquecida no interior de mim.


Senti uma gota de suor escorrer-me da testa.


Recuei um passo.


O sorriso estampado na sua face pareceu se intensificar ao ver a forma como eu estava descambando.


E não vou mentir que senti uma pontada de pânico. Durante todo o dia acreditei que estava tudo controlado, mas não estava, agora que finalmente a escutava e a fitava à minha frente.


A presença dela transmitia uma energia surreal, como se todos os meus medos estivessem a se manifestar, apesar de não saber bem quais deles eram, nem entender o porquê.


Quem és tu? – ouvia questionar-me.


A sensação que me dominou foi como se eu soubesse, desde o início da minha história, que Geeta me faria aquela pergunta quando o momento chegasse. Afinal, estava olhando para a personificação da zona mais profunda do meu próprio iceberg.


Nunca ninguém fez aquela questão para mim, assim tão abertamente. Admito que também nunca pensei muito nela. Quem és tu? vindo com sua voz, era uma pergunta bem diferente, e eu não queria apenas dizer o simples sobre o meu nome e sobre a pessoa que eu era, ou que eu na época acreditava que me tinha tornado graças à jornada que passei.


Mas se não fosse isso, então, o que eu lhe iria responder?


Hesitei uns instantes, sem saber. Aquela era uma pergunta clássica, que sempre via personagens fictícias realizar em histórias, filmes, livros… Mas agora, na vida real, era complicado formular uma resposta adequada para entregar a tamanha figura e a tanta gente atenta que me fitava.


Afinal aquele combate era a Grande Final. Aquele combate era o ápice.


Respirei fundo. E soltei o que me lembrai, insegura. Não era exactamente o que eu queria dizer, mas não me veio nada melhor ao pensamento, e não a quis deixar muito tempo à espera.


– Chamo-me Haruka. Tenho vinte e sete anos e estou aqui para ganhar e conquistar o título de Campeã.


La Primera foi com a mão ao bolso, vi uma esfera encarnada surgindo devagar, cintilando em seus dedos.


Decidi também me preparar.


– Muito bem – comentou de modo automático, fechando os olhos lentamente. – São poucos os que chegam até aqui. Achas mesmo que este é o teu destino, Haruka?


– Destino? Pff… Eu não acredito muito nisso – disse-lhe, tomada por um pouco de surpresa pelo tema que ela abordava. – Estou aqui porque conquistei o lugar com o poder dos meus Pokémon. E estou prestes a te tirar o título de Campeã, tomando-o para mim.


A multidão agitou-se com a minha frase. Consegui distinguir meus dois melhores amigos nas arquibancadas. Até hoje não sei como tive coragem para aquela ameaça face ao medo que me percorria. Maurício fez-me um sinal quando reparou que eu o olhava, me encorajando, e Bombur continuava com a caixa cheia de pastelarias, enfardando os meus bolos tamanha era a ansiedade que sentia.


– Eu vim de um lugar distante, e, durante muito tempo, não sabia como navegar nos caminhos de Paldea. Até descobrir que podia tomar qualquer trajetória. – La Primera começou a dizer, elevando a Pokéball ao nível do peito, e realizando outra vez aquele gesto sinistro que lhe era característico. – Se é esta a rota que traças no mapa, então vamos começar.


E soltou a sua esfera ao ar.


Vi o raio descer no céu como uma estrela cadente, materializando à minha frente um pesado Pokémon como se tivesse testemunhado a queda de um meteoro sob a terra. O elefante de Geeta tinha um corpo semelhante a um bloco de cimento, a pele dura esverdeada era adornada com várias manchas de cobre.


A multidão começou a gritar, eufórica, e eu também revi meus cálculos. Ninguém esperava que ela solta-se um grande e imponente Copperajah, pois não era um Pokémon que constasse na sua equipa no histórico de batalhas que ela realizou até então. A estreia do monstrinho despontou em mim uma adrenalina que me dizia para dar tudo de mim naquele combate.


Por momentos, comecei a pensar que não devia ter ligado tanto ao que me diziam os especialistas e as revistas, nem confiado em toda a sorte que gastei contra a Elite Quatro e contra os Líderes de Ginásio.


E Geeta não esperava outra coisa.





A vida de Padeira de Cabo Poco obrigava Haruka se deitar cedo para cedo erguer.


Já fazia parte da rotina elevar-se de madrugada, bem antes do sol nascer, para ter as encomendas de pão e outros produtos frescos a tempo da abertura da loja. Os seus Pokémon ajudavam e aceleravam bastante no processo, mas a humana, mesmo assim, dava preferência ao ato de deitar-se cedo e ficar a ver televisão na cama até o João Pestana chegar para a cumprimentar.


Mal chegara a casa, Juliana já sabia onde encontrar sua mãe.


A porta da frente estava trancada, para evitar clientes entrando nas horas que a loja encontrava-se fechada, por isso, a das traseiras era sempre aberta para uso restrito às habitantes da casa.


Juliana entrou assim pela cozinha, cumprimentou os Pokémon que nela ainda trabalhavam em algumas limpezas mais minuciosas, subiu a enorme escadaria da casa e atravessou o corredor na direção do quarto da mãe.


O quarto ficava muito próximo do seu, isso fazia com que, muitas noites, quando saia de casa às escondidas, a mãe notasse a sua chegada a meio da noite, antes de acordar para o serviço, pois sentia suas passadas.


Bateu à porta, e esperou ouvir um ‘’entra’’ para o fazer.


A televisão do quarto estava ligada, mas com o som baixo em algum canal de música clássica. Haruka encontrava-se deitada, fixando um livro, iluminada pela luz pálida de um abajur que existia por cima do seu criado-mudo.


Juliana aproximou-se devagar.


– Porque não ficaste até o final do meu combate?


A mulher marcou a página, fechou o livro e pouso o objeto debaixo do abajur, ao lado de uma esfera bicolor.


Ela ainda demorou um pouco a processar o que fazer a seguir, fitando o local. Eventualmente agarrou na esfera, e atirou-a na direção da filha, como quem não queria aquilo assim tão perto dela.


A rapariga conseguiu amparar o objeto como uma bola antes desta cair no chão.


– Eu cumpro minha palavra. Fica lá com ele. Mas posso garantir-te que vai existir algumas regras aqui dentro quanto a ele fora da Pokéball. – disse, virando-lhe a cara. – Agora se me deres licença, eu preciso de estar um pouco sozinha…


Juliana concordou sem palavras. Era o mais correto dar-lhe espaço. Ela sabia que a mãe sentia um certo nível de remorso.


Todavia, estava tão entusiasmada com sua conquista que correra porta fora, abraçando a sua Pokéball como quem não tinha nada mais de valioso, e desrespeitando um pouco as regras que ainda não tinham sido implementadas.


O diálogo com a mãe não iria parar por ali, e, mal por mal, Juliana tinha noção disso, porém, não deixou de soltar a enorme criatura no meio do corredor e apresentar-lhe todos os cantos da nova casa.



Haruka retomou a leitura do seu livro, envolta em pensamentos, quando sentiu um estrondo na parte da cozinha no andar debaixo da casa.


– NÃOO! VOLTA AQUI COM MEU SUMO DE LARANJA! – ouviu a voz da rapariga entre mais outro estrondo e outro estrondo.


E, depois de ainda mais um estrondo na cozinha, o ambiente foi tomado por um silêncio absoluto.


A mulher suspirou.


Esfregou as têmporas, pensativa.


Não tinha disposição alguma para gritar com ela agora, iria deixar ela limpar os estragos sozinha e não comentar absolutamente nada sobre, para ver mesmo se ela o fazia. Esperava encontrar a cozinha impecável quando acordasse, na hora do serviço.


Outro assunto pendente percorreu-lhe o pensamento quando fixou o relógio para confirmar as horas. Passava pouco das nove e meia da noite.


– Eu… Eu tenho que a contar… – murmurou Haruka para o seu Skwovet, que encontrava-se dentro de uma cesta que existia por cima de uma prateleira atrás dela. – Mas… Como é que eu o vou fazer?...


Senhor Nozes desceu a parede e esfregou a sua bochecha na da treinadora, encorajando-a a avançar.


Mas antes de ir ter com ela, a mulher precisava de continuar a rever cantos profundos das suas memórias, em busca da mensagem mais adequada para a ocasião.



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  1. O mais interessante nesse capítulo é que esperando pra ver o desfecho da batalha da Juliana, onde ela finalmente ganharia o direito a ter o Koraidon, a gente é surpreendido com alguns flashbacks da Haruka.

    É interessante trazer o background dela, porque isso nos ajuda a entender algumas coisas por trás da relação dela com a Juliana. Desde esse relacionamento problemático do passado, até sua carreira como treinadora, que aparentemente não terminou muito bem após a batalha contra a Geeta.

    Mas no fim a Juli conseguiu o Koraidon. Vamos ver no que isso vai acarretar. Espero que a Haruka não venha a se arrepender de ter cumprido com a sua palavra kkkkkkkkkkkk

    Até a próxima! õ/

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    1. O arrependimento da Haruka tá batendo á porta neste preciso momento. kkk

      Muito obrigado pelo comentário, Shads! Este e o 9 são os meus Capítulos favoritos de AEP até agora e fico muito feliz em saber que gostou e surpreendeu! Os dois eram para ser um só mas cortei por motivo de tamanho kkk sorry

      Até a próxima!

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